Na entrevista ao VN, o pesquisador Luca Ruggieri recorda que
a arte é um instrumento necessário para a evangelização, algo que foi
desafiador para os jesuítas no contexto dos índios guaranis, onde não existia
uma “cultura visiva como no contexto europeu, mas uma cultura visiva
diferente”. Com o passar do tempo, os próprios guaranis passaram a imprimir as
próprias características nas esculturas sacras, um patrimônio com uma “riqueza
polifônica pela sua diversidade na expressão”.
Jackson Erpen - Cidade do Vaticano
Quando se fala de Missões e Reduções Jesuítico-Guaranis,
recorda-se o grupo das trinta cidades fundadas pela Companhia de Jesus a partir
do século XVII, entre os indígenas guaranis, na chamada Província de Paraguaia,
jurisdição localizada no Vice-Reino do Peru e que abrangia regiões onde hoje é
o Paraguai, Argentina, Uruguai e partes da Bolívia, Brasil e Chile.
Em 18 de maio último, o Governo do Estado do Rio Grande do
Sul deu início às celebrações oficiais pelos 400 anos das Missões Jesuíticas
Guaranis, marco histórico que será comemorado em 2026.
As Missões testemunharam, entre outros, o nascimento da
primeira fundição de aço da América, o que levou a região a ser chamada por
Montesquieu de “o primeiro Estado industrial da América”. Mas não só. A
pecuária, o desenvolvimento do comércio da erva-mate, da carne, do couro, da
lã, foram elementos fundamentais que moldaram a cultura gaúcha. E paralelamente
ao desenvolvimento econômico, surgiram as escolas, a música, a arte sacra.
E precisamente a “Arte produzida nas Missões Jesuíticas” é o
tema do Mestrado em História da Arte na Universidade Roma Tre de Luca
Ruggieri (cujo orientador da dissertação é o Prof. Mauro Vincenzo
Fontana), que em visita ao Brasil, Argentina e Paraguai, pode ter
um contato mais direto com algumas das Reduções, como São Miguel, Santo Inácio,
Loreto, Corpus, um patrimônio não só da América do Sul, mas de toda a
humanidade, como fez questão de ressaltar na entrevista ao Vatican News.
A história dessa região, não obstante tenha sido enaltecida
no passado por escritores, historiadores e filósofos de renome, voltou a
despertar interesse com o filme "The Mission", de Roland
Joffé. No entanto, "poucas pessoas na Europa conhecem a história da arte,
da produção artística nas Reduções Jesuíticas", observa o jovem
pesquisador.
Mas, o que levou um jovem italiano da região das Marcas a se interessar pela arte de uma região tão distante da Itália, berço do Renascimento? Quem o introduziu nesse "mundo das Missões, dos jesuítas", durante seu período da Graduação na Universidade de Macerata, de fato, foi a Prof. Sabiana Pavone, importante pesquisadora deste tema. A partir daí, ele passou a focar seus estudos nas Missões Jesuíticas do Paraguai:
Nossa Senhora de Loreto e a evangelização do Novo Mundo
Mas há uma outra razão que o aproximou deste tema: Loreto.
No conhecido Santuário mariano, localizado a poucos quilômetros de sua cidade
natal, Mogliano, ele colaborou com o Museu Pontifício. E precisamente de suas
leituras e pesquisas na biblioteca brotou a compreensão de que "Loreto foi
uma academia espiritual dos jesuítas. De lá, por exemplo, partiu o jesuíta
Giuseppe Cataldini, responsável pela Redução de Loreto, no Paraguai."
Luca explica, ademais, que Nossa Senhora de Loreto foi a
iconografia que os jesuítas utilizaram para evangelizar o mundo. "Eles
tinham consciência de que a Virgem de Loreto não havia sido utilizada por
outras Ordens religiosas no Novo Mundo", e por isso decidiram "levar
a Virgem de Loreto a todos os lugares da América do Sul e Central.
O jovem pesquisador italiano recorda que a arte foi e é um
instrumento necessário para a evangelização. Isso, no entanto, "foi mais
difícil para os jesuítas, pois chegaram em um contexto, como o dos guaranis,
onde não havia uma cultura visiva como no contexto europeu, mas uma cultura
visiva diferente, definida por um pesquisador como “cultura visiva
antimimética”. E essa combinação desses dois aspectos diferentes - espanhol
(europeu) e o aspecto indígena -, acabou por despertar o interesse de Luca na
condução de seus estudos.
Para um historiador de arte - observa ele - a coisa mais
importante "é estudar a obra de arte, compreendê-la bem, e na sua
linguagem visual". Um dos mais importantes historiadores da arte das
reduções na Argentina, fala de “evolução diacrônica entre a produção artística
missioneira. Evolução da cultura castelhana que caracterizava as peças de
arte".
E com seu olhar atento de pesquisador, Ruggeri destaca na
entrevista o momento em que os guaranis passaram a imprimir nas estátuas, características
suas.
Quando guaranis se tornaram hábeis na construção das
obras, "foi o momento onde a peculiaridade deles chegou". Tem muitas
estátuas que tem uma peculiaridade particular na realização dos olhos. Uma
característica tipicamente da cultura guarani, mas também a qualidade do rosto.
E isso facilita para datar as peças, que seriam mais perto do século XVIII,
pois neste século já se sabia que muitos guaranis trabalhavam em conhecido
atelier.
Para ilustrar, ele cita a estátua de São Lorenço, nos Museus
das Missões, onde há a presença da flor do maracujá, "uma flor muito
importante na cultura figurativa indígena guarani".
A "riqueza polifônica desse patrimônio" e sua
valorização
A bibliografia é fundamental em uma pesquisa ou trabalho
científico. Nesse sentido, Luca fala da dificuldade em encontrar bibliografia
sobre este tema na Europa, o que é natural, carência esta superada pelo
material existente e disponibilizado, por exemplo, em Museus e Bibliotecas na
América do Sul, incluindo o Pátio do Colégio, em São Paulo, o Museu Júlio de
Castilhos em Porto Alegre.
Nessa revisão bibliográfica, o jovem italiano constata a
existência de uma falta de comunicação entre a crítica do mundo hispânico
(Argentina e Paraguai), que usa uma modalidade mais europeia, e a produção
bibliográfica lusófona. "Existe uma impostação muito diferente entre elas
em relação ao assunto da arte, o que gera considerações extremamente
diferentes".
De qualquer forma, Luca faz questão de destacar que
"a riqueza desse patrimônio é uma riqueza polifônica, pela sua
diversidade na expressão. E para bem compreender essa riqueza, é preciso
estudá-la, principalmente a estátua. É a coisa mais importante, que “não fala”;
depois, todas as outras fontes e arquivos, fontes documentais que podem ajudar
na leitura das obras. Por isso também um trabalho “polifônico” de pesquisadores
pode ajudar na valorização das peças. Um trabalho polifônico que é um trabalho
dos historiadores da arte, europeus, mas majoritariamente na América do
sul.".
Luca Ruggieri lamenta que o Museu de São Miguel das Missões,
que é tão importante, ainda está fechado. "Não é possível! Pois não é só o
patrimônio do Brasil, é um Patrimônio da Humanidade São Miguel das Missões,
onde estão as peça artísticas e se pode admirar a sua qualidade".
Neste sentido, ele recorda a importância do trabalho de
valorização deste patrimônio também no campo político: "As pessoas que
trabalham na política precisam compreender que o patrimônio artístico das
Missões não é só um patrimônio a ser admirado, mas é um patrimônio que também
pode gerar dinheiro, com o turismo, e por isso tem uma qualidade que não é num
breve período, mais num longo prazo".