Formação da personalidade (2): Protagonistas da nossa
vida
Quando explicamos o porquê de nossas reações espontâneas, muitas vezes, em vez de dizer “é que sou assim”, teríamos que admitir: “eu me fiz assim”. Editorial sobre a formação do caráter na vida do cristão.
20/01/2015
«Eu peço para serem protagonistas desta mudança.
Continuem a vencer a apatia, dando uma resposta cristã às inquietações sociais
e políticas que estão surgindo em várias partes do mundo. Peço-lhes para serem
construtores do mundo, trabalharem por um mundo melhor. Queridos jovens, por
favor, não 'olhem da sacada' a vida, entrem nela. Jesus não ficou na sacada,
mergulhou… 'Não olhem da sacada' a vida, mergulhem nela, como fez Jesus»[1].
Diante destas palavras do Papa Francisco aos jovens, surgem imediatamente
algumas perguntas, que o próprio Romano Pontífice formulava a seguir: «Por
onde começamos? A quem pedimos para iniciar isso? Por onde começamos? Por ti e
por mim! Cada um, de novo em silêncio, se interrogue: se devo começar por mim,
por onde principio? Cada um abra o seu coração, para que Jesus lhe diga por
onde começar»[2].
Para ser protagonistas dos acontecimentos do mundo é indispensável começar por
ser protagonistas da nossa própria vida.
Livres e condicionados
Este protagonismo implica reconhecer que as circunstancias
familiares ou sociais influem em nosso caráter, mas não o determinam
absolutamente. O mesmo é válido para os instintos mais básicos que provém da
constituição corporal, e também para a herança genética: assinalam algumas
tendências, mas estas podem ser moldadas e orientadas através do exercício da
vontade que segue a inteligência bem formada.
Nossa personalidade se forja na medida em que tomamos
decisões livres, já que ações humanas não se dirigem unicamente a mudar nosso
ambiente, mas também influem em nosso modo de ser. Embora às vezes aconteça de
uma maneira não muito consciente, a repetição de atos faz que adquiramos certos
costumes ou adotemos uma postura ante a realidade. Por isso, quando explicamos
o porquê de nossas reações espontâneas, mais que dizer "é que sou
assim", muitas vezes teríamos que admitir: "me tornei assim".
Temos condicionamentos que muitas vezes são difíceis de
controlar, como a qualidade das relações familiares, o ambiente social em que
crescemos, uma doença que nos limita de alguma maneira, etc. Frequentemente,
não é possível ignorá-los ou remediá-los, mas pode-se mudar a atitude com que
os enfrentamos, principalmente se formos conscientes de que nada fica fora dos
cuidados providentes de Deus: É necessário repetir muitas e muitas
vezes que Jesus não se dirigiu a um grupo de privilegiados, mas veio revelar-nos
o amor universal de Deus. Todos os homens são amados por Deus, de todos espera
amor[3].
Em qualquer circunstância, inclusive com grandes limitações, podemos dar a Deus
e ao próximo obras de amor, por menores que pareçam. Não se pode medir o valor
de um sorriso no meio da tribulação; do oferecimento da dor a Deus, procurando
a união com a Cruz; da aceitação paciente das contrariedades! Um amor sem
limites, mais forte que a dor, que a solidão, que o abandono, que a traição,
que a calúnia, que o sofrimento físico e moral, que a própria morte, não pode
ser vencido por nada.
Artífices da própria vida
Uma tarefa da nossa liberdade é descobrir os talentos
pessoais, virtudes, capacidades, competências, agradecê-los e aproveitá-los.
Porém, temos de recordar que o que mais estrutura a personalidade cristã são os
dons de Deus, que incidem na parte mais íntima do nosso ser. Entre estes se
encontra, de modo eminente, o imenso presente da filiação divina, que recebemos
com o Batismo. Graças a ele, o Pai vê em nós a imagem - se bem que imperfeita,
pois somos criaturas limitadas - de Jesus Cristo, que se torna cada vez mais
clara com o sacramento da Confirmação, o perdão transformador da Penitência e,
especialmente, a comunhão com seu Corpo e seu Sangue.
Partindo destes dons recebidos das mãos de Deus, cada
pessoa, querendo ou não, é autora de sua existência. Nas palavras de São João
Paulo II, « todo o homem recebeu a tarefa de ser artífice da própria
vida: de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima»[4].
Somos donos de nossos atos - o Senhor desde o princípio, criou o homem e o
deixou nas mãos seu próprio arbítrio[5]-;
somos nós, se quisermos, que assumimos a direção das nossas vidas no meio de
tormentas e dificuldades.
Somos livres! Experimentamos este descobrimento com alguma
incerteza: para onde levarei a minha vida? Mas em primeiro lugar com
alegria: Deus, ao criar-nos, correu o risco e a aventura da nossa
liberdade. Quis uma história que fosse uma história verdadeira, feita de
autênticas decisões, e não uma ficção nem um jogo[6]. Nesta
aventura não estamos sós: contamos, em primeiro lugar, com a ajuda do próprio
Deus, que nos propõe uma missão, e também com a colaboração dos outros:
familiares, amigos, inclusive pessoas que cruzam casualmente conosco em algum
momento da existência. O protagonismo na própria vida não implica negar que em
muitos aspectos somos dependentes, e se considerarmos que esta dependência é
recíproca, então poderíamos dizer que somos interdependentes. A liberdade, por
si só, não é suficiente: fica vazia se não a utilizarmos para nos
comprometermos com coisas grandes, magnânimas. Como veremos, a liberdade é para
a entrega ou, dito de outro modo, só pode existir una liberdade entregue.
Um caminho para percorrer
São Josemaria recordava um cartaz que encontrou em Burjasot
(Valencia), pouco tempo depois do fim da guerra civil espanhola, com uma frase
que muitas vezes citou em sua pregação: "Cada caminhante siga o
seu caminho". Cada alma vive a sua própria vocação de um modo
pessoal, com a sua própria marca: podemos andar pela direita, pela
esquerda, em zigue-zague, caminhando a pé, a cavalo. Há cem mil maneiras de ir
pelo caminho divino[7]. Cada
pessoa é autora principal da sua história de santidade, cada uma tem seu selo
distintivo, na configuração de qualquer faceta da sua existência e da sua
personalidade, evitando o simples "deixar-se levar" pelos fatos.
Livremente - como filhos, insisto, não como escravos
-, seguimos a senda que o Senhor marcou a cada um de nós. Saboreamos esta
liberdade de movimentos como uma dádiva de Deus [8].
Esta desenvoltura -soberania humana- vai de mãos dadas com a responsabilidade,
do saber que somos "criaturas de Deus": um sonho divino que se torna
realidade na medida em que experimentarmos o amor sem condições, que pede nossa
resposta. O amor de Deus afirma nossa liberdade, e a eleva a altitudes
impensáveis com sua graça.
J.R. García-Morato
[1] Papa
Francisco, Vigília de oração com os jovens (Rio de Janeiro, 27 de julho de
2013)
[2] Ibid.
[3] São
Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, n. 110
[4] São
João Paulo II, Carta aos artistas, n. 2
[5] Cfr.
Sir, 15,14
[6] São
Josemaria Escrivá, "As riquezas da fé", artigo publicado no jornal
ABC, de Madri, em 02 de novembro de 1969.
[7] São
Josemaria, Carta, 2 de ferreiro de 1945, n. 19
[8] São
Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, 35
Nenhum comentário:
Postar um comentário