O TEMPO EM SANTO AGOSTINHO: ENTRE A ETERNIDADE DE DEUS E
A FRAGMENTAÇÃO HUMANA
04/07/2025
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
A pergunta provocativa — “Que fazia Deus antes de criar o
céu e a terra?” — introduz, no Livro XI das Confissões de
Santo Agostinho, uma das mais belas e profundas meditações já feitas sobre o
tempo. Longe de ser uma curiosidade irrelevante ou uma especulação vazia,
diante da qual se poderia responder jocosamente, como ele mesmo ironiza —
“Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos” (Confissões,
XI, 12) — trata-se, na verdade, de uma interrogação existencial sincera,
nascida do desejo de compreender a própria condição humana à luz da fé.
Recusando as respostas simplistas, Agostinho confessa: não
sei. Mas logo afirma algo essencial: antes da criação, não havia tempo,
pois o próprio tempo é criatura de Deus. “Não houve, pois, tempo algum em que
nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo” (Confissões, XI, 14). Com
essa afirmação, Agostinho nos convida a reconhecer que o tempo não é eterno,
apenas Deus o é. E se Deus é eterno, é porque nele não há sucessão de
instantes, nem começo ou fim. Tudo o que para nós é passado, presente ou
futuro, em Deus é um eterno presente. “Teu hoje é a eternidade” (Confissões,
XI, 13), afirma ele, com a força de quem contempla esse mistério com reverência
e assombro. A eternidade divina não se mede, não se divide, não se conta; nela
tudo é, tudo permanece, tudo está presente.
Essa reflexão se mostra atual em nossa cultura, marcada por
um paradoxo profundo: nunca se correu tanto e nunca se sentiu tanto cansaço,
dispersão e tédio. Vivemos como fugitivos do próprio tempo. As agendas estão
lotadas, os compromissos se sobrepõem e o tempo escorre por entre os dedos. Há
quem se sinta oprimido pela pressa; outros, esmagados pelo vazio, pelo tempo
ocioso e sem sentido. O tempo, que deveria ser dom, tornou-se fardo.
Essa experiência de inquietação diante do tempo já habitava
o coração de Agostinho. “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei;
mas se quiser explicar, já não sei” (Confissões, XI, 14). A célebre frase não
expressa ignorância, mas sabedoria: o tempo é familiar a todos nós, mas nos
escapa quando tentamos traduzi-lo em conceitos. Para Agostinho, o tempo não é
uma entidade física mensurável em si mesma, mas uma experiência da alma. Ele
está no interior do ser humano, como uma tensão entre o que foi, o que é e o
que ainda virá. Por isso, Agostinho distingue o presente do passado (memória),
o presente do presente (atenção) e o presente do futuro (expectativa).
Ao refletir sobre o tempo, Agostinho distingue claramente
entre a eternidade divina e a temporalidade humana. Deus é eterno, imutável,
pleno. Nós somos temporais, instáveis, limitados. Deus não espera, não começa
nem termina. Ele simplesmente é. Perguntar o que Deus fazia ‘antes’ de criar o
mundo é um erro conceitual, pois o ‘antes’ só faz sentido dentro do tempo, e
este só começou quando Deus criou todas as coisas. O tempo, o espaço e todas as
criaturas foram criados por Deus. Ele está fora do tempo, mas entra nele por
amor, por meio da Encarnação do Verbo. O Eterno fez-se tempo e, por isso, o
tempo foi redimido.
Embora Agostinho não utilize os termos gregos chronos e kairós,
sua teologia nos ajuda a compreendê-los com clareza. Chronos é
o tempo cronológico, linear, o tempo dos relógios e calendários. Já kairós é
o tempo oportuno, o instante carregado de sentido, o momento da graça. Quando
Agostinho suplica: “Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei
[…] tua palavra é minha alegria” (Confissões, XI, 2), ele não está pedindo mais
horas no dia, mas um tempo novo, um tempo pleno, fecundado pela presença de
Deus. Trata-se de transformar o tempo comum em tempo habitado, em tempo de
salvação.
Essa visão agostiniana do tempo como dom e espaço de
encontro com o Eterno nos interpela profundamente. Vivemos em uma cultura que
perdeu a capacidade de esperar, de contemplar, de simplesmente estar. Falta
tempo para Deus, para os outros, para si mesmo. Refletir sobre o tempo, nesse
contexto, não é evasão, mas resistência. É uma forma de resgatar o sentido da
vida. O tempo, vivido com sabedoria, torna-se lugar de comunhão, espaço de
graça, escola de paciência.
As implicações dessa visão são múltiplas. Teologicamente,
ela nos lembra que Deus, eterno, não apenas criou o tempo, mas quis entrar nele
para salvá-lo. O tempo é, portanto, o lugar da revelação e da salvação.
Espiritualmente, somos convidados a habitar o tempo com profundidade, atenção e
gratidão. Cada instante pode ser kairós, um tempo favorável, uma
visita da graça. E pastoralmente, há urgência de uma autêntica pedagogia do
tempo. Precisamos redescobrir o valor do descanso, da alternância entre ação e
contemplação, do domingo como dia do Senhor. A administração do tempo se tornou
um desafio pastoral. Não basta ensinar a fazer mais coisas em menos tempo, é
preciso aprender a viver com mais sentido e menos pressa.
O tempo pode ser opressor quando mal vivido, mas torna-se
libertador quando habitado com fé. Agostinho nos ensina que o tempo não é
condenação, mas caminho. Somos peregrinos do tempo, destinados à eternidade.
Quando vivemos o presente com fé e amor, já tocamos, em parte, o eterno. Em
Cristo, o eterno entrou no tempo para transfigurá-lo. Viver bem o tempo é
preparar-se para a eternidade. É permitir que a esperança nos modele. É
compreender que até mesmo os instantes mais difíceis podem ser sagrados. E quando
nos sentimos dispersos, vazios ou perdidos, resta-nos a oração que resume toda
a vida de Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está
inquieto enquanto não repousa em Ti” (Confissões, I, 1).
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