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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

SANTUÁRIOS: Aqui está Ambrósio, com seus amigos prediletos

A fachada da Basílica de Santo Ambrósio | 30Giorni

Arquivo 30Dias nº  01/02 - 2006

Aqui está Ambrósio, com seus amigos prediletos

Essa era uma das quatro Basílicas que ele construiu para a sua Milão. Mas era a “sua” Basílica, onde celebrava a missa e onde quis ser sepultado entre Gervásio e Protásio, os dois mártires cujos despojos encontrou.

de Giuseppe Frangi

“Mesmo não merecendo ser mártir, providenciei-vos estes mártires.” Era 20 de junho do ano de 386, um sábado. E Ambrósio, bispo de Milão, do púlpito da Basílica que familiarmente chamavam ‘ambrosiana’ (“quam appellant ambrosianam”, escreve numa carta à irmã, Marcelina) e que oficialmente era a Basílica Martyrum, anunciava a consagração daquele altar. De fato, sob a mesa acabavam de ser depositadas as relíquias dos santos Gervásio e Protásio, encontradas três dias antes, a poucas centenas de metros dali.

O episódio não tem nada de lendário. Ambrósio, bispo de Milão a partir de 374, mandou logo construir grandes Basílicas nas vias de acesso da cidade, para adaptar a Milão que adotava ao modelo de sua cidade de origem, Roma. A Basílica Apostolorum ficava no caminho para Roma; a Basílica Virginum (a última da série, hoje São Simpliciano) na estrada que levava a Como; a Basílica Salvatoris, ou de São Dionísio, junto à porta oriental (hoje não existe mais); e, por fim, a Basílica Martyrum, ao lado da Porta Vercellina. Cada uma delas despontava sobre uma área de cemitério, onde já estavam sepultadas gerações de cristãos. Por exemplo, a poucos passos da Basílica Ambrosiana ficava o sacelo que conservava os restos de São Vítor, onde o próprio Ambrósio, em 378, depositou o corpo de seu tão amado irmão, Sátiro. Esse sacelo existe até hoje, ainda que atualmente faça parte da própria estrutura da Basílica.

Pouco mais adiante, onde hoje aparece o quartel da Polícia, de frente para a praça, ficava a igreja que guardava os corpos veneradíssimos dos santos Nabor e Félix. Escavando bem na frente dela, Ambrósio encontrou os restos de Gervásio e Protásio. O episódio foi contado por ele nos mínimos detalhes na Epístola XXII à irmã Marcelina, que naqueles meses estava afastada de Milão. “Eu tinha acabado de fazer a dedicação de uma Basílica [a Basílica Martyrum, ndr.] quando muitos começaram a dizer: ‘O que farás para poder dedicar a Basílica da Porta Romana?’ [a Basílica Apostolorum, ndr.]. E eu respondi: ‘Certamente o farei, se encontrar relíquias de mártires’ [...]. O Senhor me concedeu essa graça. Ainda que o clero demonstrasse certo temor, mandei tirar as pedras do terreno que se estende diante da capela dos Santos Nabor e Félix. Naquele lugar, encontrei vestígios inequívocos [...]. Começaram a surgir do terreno os santos mártires de modo tal que, enquanto ainda estávamos em silêncio, foi possível trazer a urna para a superfície e depositá-la no chão. Dentro, encontramos dois homens de enorme estatura [...]; os ossos estavam intactos [...]. Nós os perfumamos completamente com aromas”.

Ambrósio é preciso nos detalhes: apenas um mês antes, em 9 de maio daquele 386, ele realmente depusera sob o altar maior da Basílica da Porta Romana as relíquias dos três apóstolos, André, João e Tomé. Hoje, essa mesma Basílica, que ainda existe, é mais conhecida como São Nazário, do nome do mártir que o mesmo Ambrósio fez sepultar ali em 395.

“Piae latebant ostiae”, escreve ainda Ambrósio no hino dedicado ao encontro de Gervásio e Protásio. Mas “latere sanguis non potest qui clamat ad Deum patrem”. E o uso desse substantivo “ostiae” explica a assimilação entre os restos daqueles corpos e o lugar - o altar - onde se realiza o sacrifício de Cristo. “Ele, que morreu por todos, está sobre o altar; estes, que foram resgatados pela sua paixão, estarão sob o altar”, escreve ainda à irmã Marcelina.

A pressa de Ambrósio

Provavelmente, naquele momento, a obra de construção da igreja não estivesse completamente concluída. Ambrósio era um homem decidido, que nunca adiava as coisas. Talvez fosse o homem mais respeitado, naquele período de história, em todo o Império Romano. Teve relações tumultuosas com mais de um imperador, quase sempre vencendo as disputas. Mas, justamente por isso, como documenta Richard Krautheimer em seu extraordinário livro Três capitais cristãs, Ambrósio não podia contar com os recursos das caixas-fortes imperiais. Suas Basílicas, assim, do ponto de vista da construção parecem espartanas: os fundamentos são feitos de pedras de rio, com bases de argamassa altas e emendas em forma de espinha de peixe. Krautheimer conclui: “No meu modo de ver, a técnica de baixa qualidade das igrejas ambrosianas foi determinada por um apoio financeiro menos generoso e por uma maior pressa na edificação. Ambrósio tinha muita urgência, e os meios à sua disposição, mesmo sendo amplos, não eram ilimitados”.

Exatamente o contrário acontecia na construção da outra grande Basílica milanesa, depois dedicada a São Lourenço, que naqueles mesmos anos, por influência da imperatriz-mãe, Justina, estava sendo construída perto do palácio imperial, com a ideia de que fosse destinada aos arianos. Também nesse caso Ambrósio enfrentou o Império e, no final, conseguiu o que queria, com todo o povo do seu lado. Em 2 de abril de 386, quando soube que as guardas imperiais haviam relaxado o assédio à Basílica Porciana (como se chamava então São Lourenço), o bispo pôde escrever à irmã: “Como foi grande então a alegria de toda a gente, como o povo todo aplaudiu, como estava agradecido!”. Dois meses depois, esse mesmo povo acompa­nharia com comoção o encontro dos despojos de Gervásio e Protásio, como já contamos. Para Ambrósio, era a vitória sobre as pretensões do Império e dos arianos.

Santo Ambrósio, mosaico, sacelo de São Vítor no Céu feito de ouro | 30Giorni

Os amigos mártires

Não resta muito da Basílica de Ambrósio, que tinha 53 metros de comprimento, 26 de largura e uma orientação ligeiramente deslocada com relação à atual. O bispo foi sepultado lá por Simpliciano, seu sucessor, em 397 (ele sempre dizia que um sacerdote deve ser sepultado onde celebrou a missa em vida). Poucos meses depois, seria seguido pela adorada irmã, Marcelina, dez anos mais velha do que ele, à qual Ambrósio havia escrito os textos dedicados à virgindade. Uma lápide na cripta lembra o lugar no qual ela foi encontrada, no final de 1700, “ad pedem Ambrosii ad latus Satyri fratris”. Hoje repousa na terceira capela da nave da direita, dentro de uma fria urna neoclássica. Na capela que a precede, entre duas grandes telas de Tiépolo, está o irmão, Sátiro. Ambrósio, por sua vez, ficou onde queria estar. Por séculos, seu corpo foi guardado num grande sarcófago de pórfiro vermelho, encostado a dois túmulos vazios, que ainda se vê na cripta. Em 8 de agosto de 1871, o sarcófago foi aberto: continha os despojos dos três santos, lado a lado. No meio, Ambrósio; dos lados, Gervásio e Protásio. Na mesma formação, os corpos são conservados hoje na urna de vidro que fica bem debaixo do altar: Gervásio e Protásio estão vestidos com uma dalmática vermelha e têm nas mãos a palma do martírio; Ambrósio, por sua vez, veste um solene hábito pontifical branco.

Seu retrato

Nós também o vemos vestido de branco no extraordinário mosaico, pouco posterior a sua morte, que fica no sacelo de São Vítor. Lá também é representado entre os dois mártires “amigos”, enquanto, do outro lado, estão defronte a ele outras presenças familiares: Nabor, Félix e Materno. O retrato realizado pelo mosaicista anônimo é muito verossímil e realista: Ambrósio tem uma barba curta emoldurando um rosto magro, um início de calvície na região das têmporas, duas ore­lhas notáveis e, sobretudo, um o­lhar absorto e ao mesmo tempo arregalado para a realidade. Os pés grandes e a túnica branca, quase como os de um antigo senador romano, o reconstituem como um homem concreto, plantado firmemente na terra.

Nós encontramos Ambrósio em trajes civis nos relevos do tabernáculo que se eleva no coração do presbitério, bem na vertical em relação à urna das relíquias conservadas na cripta. Obra de fim de milênio, no lado voltado para a abside, ela ainda representa o santo plantado firmemente sobre os grandes pés. A despeito da pose hierática, a cena é um concentrado de eventos: dos lados, vemos Gervásio e Protásio, que levam à presença de Ambrósio, num gesto protetor, dois personagens vestidos com escapulário e cogula. O da esquerda é o abade Gaudêncio, que oferece ao santo o modelo em miniatura do tabernáculo. O monge da direita, por sua vez, move as mãos entre o sentimento de espera e o aplauso. No alto, onde o frontão se estreita, curiosamente aparece um menino de auréola: é o Filho em feições humanas. Mas, segundo uma interpretação, poderia ser também o menino que, no meio da multidão, naquele ano de 374, deu o primeiro grito, depois seguido por todos os fiéis: “Ambrósio bispo”.

O altar com o tabernáculo | 30Giorni

O tesouro mais precioso

Sob o tabernáculo está a joia mais brilhante da Basílica, e talvez uma das jóias mais extraordinárias de toda a história cristã. É o altar de ouro encomendado pelo arcebispo Angilberto II na época carolíngia a um mestre que certamente devia ser célebre, visto o espaço que dá a si mesmo nos relevos: Vuolvínio. Na parte posterior, o altar tem uma portinhola que revela a função para a qual foi pensado: realmente, esse altar deveria conter a urna com os corpos dos três santos, vindo, assim, totalmente ao encontro do desejo de Ambrósio. Uma escrita que serve de moldura aos relevos declara claramente a intenção de Angilberto II: “Thesauro tamen haec cuncto potiore metallo ossibus interius pollet donata sacratis”; “Mas tem por dentro um tesouro mais precioso do que todos os metais, pois ganhou de presente os ossos sagrados”. Na realidade, os corpos ficaram conservados até o século passado na grande urna de pórfiro vermelho que ainda se encontrada na cripta, e não se sabe por qual motivo o altar permaneceu vazio.

Os relevos são em lâmina irregular: na frente, os ladrilhos representam a vida de Cristo, dos lados estão as glórias da Igreja milanesa, na parte de trás, em lâminas de prata com ornamentos em mercúrio, é contada minuciosamente a vida de Ambrósio. É um relato agitado, onde não faltam os momentos de virada, como no belíssimo episódio no qual Ambrósio, em fuga de Milão para evitar a investidura como bispo, é praticamente “arpoado” pela mão de Deus e quase corre o risco de cair do cavalo, que se enfureceu. Uma cena que poderia ter como legenda a estupenda síntese da história que o próprio Ambrósio escreveu entre 387 e 390 no De Paenitentia: “Eis que dirão: aí está alguém que não foi alimentado no seio da Igreja [...]; preso pelos tribunais e arrancado às vaidades deste século, da voz do pretor passou ao canto do salmista, e vive agora o sacerdócio, não por virtude sua, mas por graça de Cristo [...]. Conserva, Se­nhor, o teu dom, guarda-o tu, que o deste a quem dele fugia. Pois eu sabia ser indigno de ser chamado bispo. Por graça de Deus, porém, sou o que sou, sou o mais ínfimo entre os bispos, ínfimo em dignidade. Mas, sendo que eu também fiz algum esforço pela tua Igreja, toma conta dos frutos; se, perdido, me chamaste ao episcopado, bispo, não permitas que eu me perca”.

Fonte: https://www.30giorni.it/

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