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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta Apostólica “Mulieris Dignitatem” (Parte 1/3)

Para um feminismo cristão (Crédito: Opus Dei)

Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta Apostólica “Mulieris Dignitatem”

Estudo de Jutta Burggraf, Doutora em Sagrada Teologia e em Pedagogia, publicado em “Romana”, nº 7 (1988).

14/08/2020

A Carta Apostólica Mulieris dignitatem foi publicada numa época em que se pode observar uma mudança no movimento feminista. Já não estava tão na moda o feminismo radical, de matiz ecologista, com seus cultos rituais de bruxaria e a proclamação do poder mágico-materno da mulher; havia-se estendido, antes, um feminismo “moderado” social (corporate feminism) das assim chamadas “mulheres de carreira”. N’Ele, o casamento é tolerado, contanto que não ameace a autonomia da mulher e não limite as suas possibilidades profissionais com a “armadilha da maternidade”. Na atualidade, os partidos políticos mais contrapostos, do ponto de vista ideológico, convergem para o compromisso de ampliar a quota de acesso das mulheres às diversas profissões, incluída a militar. Por outro lado, apesar de todas as tentativas de emancipação, avança de modo alarmante a comercialização da mulher na publicidade, no cinema, no turismo e até nas belas artes.

Faz tempo que a insegurança sobre a questão feminina penetrou inclusive em alguns setores da teologia e da vida eclesial. Cresce na medida em que as confissões cristãs, que surgiram da Reforma protestante, permitem, cada vez mais, o acesso de mulheres às funções pastorais.

Talvez nunca se tenha discutido e polemizado tanto sobre os direitos femininos. E as frentes que se formaram a partir destes debates, talvez nunca tenham sido tão compactas: uma é acusada de encaixotar a mulher entre a cozinha e o jardim da frente da casa, limitando-a ao campo das funções domésticas; outra é admoestada por alimentar reivindicações egocêntricas e individualistas. O caráter esquemático dessas reduções é evidente, mas de qualquer forma é inegável que o diálogo entre as duas posições acima indicadas chega a ser cada vez mais difícil. Precisamente por isto, as reflexões desenvolvidas por João Paulo II na Mulieris dignitatem são tão reconfortantes. Com extraordinária sensibilidade o Santo Padre supera as barreiras já consolidadas e, mantendo-se aberto às verdades presentes em cada uma das duas concepções, une-as – sob a luz da fé viva – em um nível superior.

A meditação do Papa não tem como ponto de partida os dados empíricos sobre a situação da mulher, já que são aparentemente insuficientes, não só por sua intrínseca variabilidade, mas também pelas diferenças existentes, por exemplo, entre países industrializados e os de terceiro mundo. Considera, no entanto, a concepção cristã da mulher e tira dela os pressupostos para uma avaliação de fundo da realidade presente e das exigências que derivam dela para a mulher e para o homem.

Tal avaliação de fundo não é constituída pelas vicissitudes do movimento para a emancipação feminina e sim pela história da salvação. João Paulo II propõe como tema da própria reflexão tudo o que o Evangelho de Cristo diz “à Igreja e à humanidade” a respeito da dignidade e da vocação da mulher (MD, 2). Enquadra, por conseguinte, o problema num contexto bíblico muito atraente e profundo. Sobre o fundamento da revelação desenvolve um feminismo cristão que, na mesma medida em que se propõe promover todas as possibilidades de crescimento da mulher, afasta-se das tendências que a separam do plano da criação e da salvação.

Mulieris dignitatem responde a uma petição dos participantes da VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, que teve lugar em Roma no ano de 1987, sobre o tema: “A vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo, vinte anos depois do Concílio Vaticano II”. No princípio não parecia que a questão feminina devesse ser incluída entre os problemas do Sínodo. Efetivamente, os Lineamenta preparatórios de 1/02/1985, enviados às diversas Igrejas particulares não faziam alusões explícitas à mulher. No entanto, o Instrumentum laboris do ano de 1987, quer dizer, o documento de trabalho do Sínodo, já fazia alusão ao tema em três passagens diferentes. Por fim, encontravam-se realmente vinte e oito mulheres entre os sessenta representantes dos leigos que estavam presentes na Assembleia. E o Card. Hyacinthe Thiandoum, Arcebispo de Dakar, enfrentou diretamente a questão no discurso de abertura; quando falou nada menos que da necessidade de eliminar as discriminações “não objetivas” do sexo feminino.

A relação de todas as propostas surgidas durante as discussões, elaborada ao termo dos trabalhos, contém dois longos parágrafos dedicados à mulher (proposições 46 e 47)[1]. Nela se expressa o desejo de estudar atentamente os fundamentos antropológicos e teológicos da feminilidade, de aprofundar na teologia do matrimônio e de revalorizar tanto a maternidade como a virgindade. A Mulieris dignitatem constitui precisamente o cumprimento de tais desejos. O fato de que o Santo Padre tenha querido dedicar uma Carta Apostólica a esta única questão, em vez de limitar-se a incluí-la entre outros temas no documento conclusivo do Sínodo, demonstra a sua importância.

Antes de passar ao exame do conteúdo do documento, não é demais recordar que esta Carta se dirige tanto às mulheres como aos homens, já que a aproximação de João Paulo II do feminismo cristão se baseia precisamente no fato de envolver toda a humanidade na superação dos problemas velhos e novos.

1. Maria, modelo para a mulher e para o homem

Mulieris dignitatem foi publicada no fim de um Ano Mariano e representa de certa forma o seu fruto e o seu legado. João Paulo II mostra-o amplamente quando precisa que o modelo para a mulher não pode estar na base só de definições conceituais de caráter filosófico ou teológico e sim dirigindo o olhar sobretudo para a “Mulher” da Escritura, para Maria que, graças à sua união excepcional com Deus, constitui a expressão mais perfeita da dignidade e da vocação humanas. O acontecimento central da história da salvação, está inseparavelmente unido a uma extraordinária elevação da mulher (cfr. MD, 3). Deus, com efeito, escolheu uma mulher para estreitar a aliança definitiva com a humanidade e, por isso mesmo, faz dela a representante e o modelo da Igreja e da humanidade inteira, homens e mulheres. A partir desta perspectiva, qualquer argumentação que diminua o papel da mulher, perde inclusive o último pingo de razão.

Maria participa da redenção precisamente como mulher. Como tal, é a primeira a receber, conservar e transmitir a Boa Nova; é em sua feminilidade que o amor de Deus se interioriza e aprofunda em medida sem igual. “Aquela plenitude de graça, concedida à Virgem de Nazaré para chegar a ser Theotókos, significa ao mesmo tempo, a plenitude da perfeição do que é característico da mulher, daquilo que é feminino” (MD, 5).

Em Maria, encontram-se completas, na forma mais sublime, todas as possibilidades da mulher. Por isso, vivendo unida à Mãe de Deus, imitando-a e procurando imitá-la, a mulher desenvolve em grau máximo a própria personalidade. Esta é uma ideia que João Paulo II já havia claramente formulado na Encíclica Redemptoris Mater (25/03/1987): “Com efeito, a feminilidade acha-se em uma relação singular com a Mãe do Redentor (...). Pode-se, portanto, afirmar que a mulher, olhando a Maria, encontra nela o segredo para viver dignamente sua feminilidade e realizar sua verdadeira promoção” (n. 46).

É bem sabido que certas correntes do feminismo rejeitam veementemente a imagem de Maria como ponto de referência da realização da mulher, acusando-a de haver oferecido no passado um pretexto teológico à tendência católica de colocar a mulher em posições subordinadas[2]. Contra esta atitude, João Paulo II sublinha a liberdade de Maria que entrou com uma “participação plena” de seu “eu pessoal e feminino” naquela relação única com Deus (MD, 49). Doou consciente e voluntariamente todo seu ser físico e espiritual a Deus, quando se definiu a si mesma como a escrava do Senhor (Lc 1, 38).

Reconhecer que uma interpretação errônea dessa expressão pode induzir à manutenção da mulher em situações de subordinação, ao ponto de fazer passar, como qualidades femininas, a timidez e o ânimo encolhido, não significa que a virtude da caridade e da disponibilidade para servir, tenham que ser simplesmente liquidadas como um fragmento de escravidão. A rejeição do “serviço” coincide com efeito com a exaltação prática do egoísmo, quer dizer, com a atitude espiritual que constitui a maior ameaça à realização pessoal, tanto da mulher como do homem. É necessário, no entanto, sondar as palavras em que Maria declara ser a “serva” do Senhor em toda a sua incomparável profundidade.

O Santo Padre sublinha, sobretudo, que também Cristo se define a si mesmo como “servo” (cfr. MD, 5). Justamente no momento mais intenso da declaração de sua missão messiânica, afirma com desconcertante simplicidade: “O Filho do homem, com efeito, não veio para ser servido e sim para servir” (Mc 10, 45). Palavras que, além de manifestar a intensa união espiritual entre o Filho e a Mãe, revelam como é excelsa a dignidade de servir do homem[3].

Quem é capaz de dar-se livremente aos outros, reflete em si a imagem de Deus e realiza, portanto, a própria humanidade com singular plenitude. Isto é amplamente desenvolvido no capítulo seguinte da Mulieris dignitatem que trata da relação entre ser pessoa e o serviço.

Jutta Burggraf


[1] Cfr. Elenchus definitivus propositionum, em “La Documentation Catholique”, 21 (1987) 1088-1100.

[2] Cfr. C. HALKES, Gott hat nicht nur starke Söhne, Güttersloh 1980, p. 117.

[3] O argumento está também desenvolvido na Encíclica Redemptor hominis, 4-III-1975, n. 21.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/para-um-feminismo-cristao-reflexoes-sobre-a-carta-apostolica-mulieris-dignitatem/

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