Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta
Apostólica “Mulieris Dignitatem”
Estudo de Jutta Burggraf, Doutora em Sagrada Teologia e em Pedagogia, publicado em “Romana”, nº 7 (1988).
14/08/2020
A Carta Apostólica Mulieris dignitatem foi publicada numa época em
que se pode observar uma mudança no movimento feminista. Já não estava tão na
moda o feminismo radical, de matiz ecologista, com seus cultos rituais de
bruxaria e a proclamação do poder mágico-materno da mulher; havia-se estendido,
antes, um feminismo “moderado” social (corporate feminism) das assim
chamadas “mulheres de carreira”. N’Ele, o casamento é tolerado, contanto que
não ameace a autonomia da mulher e não limite as suas possibilidades
profissionais com a “armadilha da maternidade”. Na atualidade, os partidos
políticos mais contrapostos, do ponto de vista ideológico, convergem para o
compromisso de ampliar a quota de acesso das mulheres às diversas profissões,
incluída a militar. Por outro lado, apesar de todas as tentativas de
emancipação, avança de modo alarmante a comercialização da mulher na
publicidade, no cinema, no turismo e até nas belas artes.
Faz tempo que a insegurança sobre a questão feminina
penetrou inclusive em alguns setores da teologia e da vida eclesial. Cresce na
medida em que as confissões cristãs, que surgiram da Reforma protestante,
permitem, cada vez mais, o acesso de mulheres às funções pastorais.
Talvez nunca se tenha discutido e polemizado tanto sobre os
direitos femininos. E as frentes que se formaram a partir destes debates,
talvez nunca tenham sido tão compactas: uma é acusada de encaixotar a mulher
entre a cozinha e o jardim da frente da casa, limitando-a ao campo das funções
domésticas; outra é admoestada por alimentar reivindicações egocêntricas e
individualistas. O caráter esquemático dessas reduções é evidente, mas de
qualquer forma é inegável que o diálogo entre as duas posições acima indicadas
chega a ser cada vez mais difícil. Precisamente por isto, as reflexões
desenvolvidas por João Paulo II na Mulieris dignitatem são tão
reconfortantes. Com extraordinária sensibilidade o Santo Padre supera as
barreiras já consolidadas e, mantendo-se aberto às verdades presentes em cada
uma das duas concepções, une-as – sob a luz da fé viva – em um nível superior.
A meditação do Papa não tem como ponto de partida os dados
empíricos sobre a situação da mulher, já que são aparentemente insuficientes,
não só por sua intrínseca variabilidade, mas também pelas diferenças
existentes, por exemplo, entre países industrializados e os de terceiro mundo.
Considera, no entanto, a concepção cristã da mulher e tira dela os pressupostos
para uma avaliação de fundo da realidade presente e das exigências que derivam
dela para a mulher e para o homem.
Tal avaliação de fundo não é constituída pelas vicissitudes
do movimento para a emancipação feminina e sim pela história da salvação. João
Paulo II propõe como tema da própria reflexão tudo o que o Evangelho de Cristo
diz “à Igreja e à humanidade” a respeito da dignidade e da vocação da mulher
(MD, 2). Enquadra, por conseguinte, o problema num contexto bíblico muito
atraente e profundo. Sobre o fundamento da revelação desenvolve um feminismo
cristão que, na mesma medida em que se propõe promover todas as possibilidades
de crescimento da mulher, afasta-se das tendências que a separam do plano da
criação e da salvação.
A Mulieris dignitatem responde a uma
petição dos participantes da VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, que
teve lugar em Roma no ano de 1987, sobre o tema: “A vocação e a missão dos
leigos na Igreja e no mundo, vinte anos depois do Concílio Vaticano II”. No princípio
não parecia que a questão feminina devesse ser incluída entre os problemas do
Sínodo. Efetivamente, os Lineamenta preparatórios de
1/02/1985, enviados às diversas Igrejas particulares não faziam alusões
explícitas à mulher. No entanto, o Instrumentum laboris do ano
de 1987, quer dizer, o documento de trabalho do Sínodo, já fazia alusão ao tema
em três passagens diferentes. Por fim, encontravam-se realmente vinte e oito
mulheres entre os sessenta representantes dos leigos que estavam presentes na
Assembleia. E o Card. Hyacinthe Thiandoum, Arcebispo de Dakar, enfrentou
diretamente a questão no discurso de abertura; quando falou nada menos que da
necessidade de eliminar as discriminações “não objetivas” do sexo feminino.
A relação de todas as propostas surgidas durante as
discussões, elaborada ao termo dos trabalhos, contém dois longos parágrafos
dedicados à mulher (proposições 46 e 47)[1].
Nela se expressa o desejo de estudar atentamente os fundamentos antropológicos
e teológicos da feminilidade, de aprofundar na teologia do matrimônio e de
revalorizar tanto a maternidade como a virgindade. A Mulieris
dignitatem constitui precisamente o cumprimento de tais desejos. O
fato de que o Santo Padre tenha querido dedicar uma Carta Apostólica a esta
única questão, em vez de limitar-se a incluí-la entre outros temas no documento
conclusivo do Sínodo, demonstra a sua importância.
Antes de passar ao exame do conteúdo do documento, não é
demais recordar que esta Carta se dirige tanto às mulheres como aos homens, já
que a aproximação de João Paulo II do feminismo cristão se
baseia precisamente no fato de envolver toda a humanidade na superação dos
problemas velhos e novos.
1. Maria, modelo para a mulher e para o homem
A Mulieris dignitatem foi publicada no fim
de um Ano Mariano e representa de certa forma o seu fruto e o seu legado. João
Paulo II mostra-o amplamente quando precisa que o modelo para a mulher não pode
estar na base só de definições conceituais de caráter filosófico ou teológico e
sim dirigindo o olhar sobretudo para a “Mulher” da Escritura, para Maria que,
graças à sua união excepcional com Deus, constitui a expressão mais perfeita da
dignidade e da vocação humanas. O acontecimento central da história da salvação,
está inseparavelmente unido a uma extraordinária elevação da mulher (cfr. MD,
3). Deus, com efeito, escolheu uma mulher para estreitar a aliança definitiva
com a humanidade e, por isso mesmo, faz dela a representante e o modelo da
Igreja e da humanidade inteira, homens e mulheres. A partir desta perspectiva,
qualquer argumentação que diminua o papel da mulher, perde inclusive o último
pingo de razão.
Maria participa da redenção precisamente como mulher. Como
tal, é a primeira a receber, conservar e transmitir a Boa Nova; é em sua
feminilidade que o amor de Deus se interioriza e aprofunda em medida sem igual.
“Aquela plenitude de graça, concedida à Virgem de Nazaré para chegar a
ser Theotókos, significa ao mesmo tempo, a plenitude da
perfeição do que é característico da mulher, daquilo que é feminino”
(MD, 5).
Em Maria, encontram-se completas, na forma mais sublime,
todas as possibilidades da mulher. Por isso, vivendo unida à Mãe de Deus,
imitando-a e procurando imitá-la, a mulher desenvolve em grau máximo a própria
personalidade. Esta é uma ideia que João Paulo II já havia claramente formulado
na Encíclica Redemptoris Mater (25/03/1987): “Com efeito, a
feminilidade acha-se em uma relação singular com a Mãe do Redentor (...).
Pode-se, portanto, afirmar que a mulher, olhando a Maria, encontra nela o
segredo para viver dignamente sua feminilidade e realizar sua verdadeira
promoção” (n. 46).
É bem sabido que certas correntes do feminismo rejeitam
veementemente a imagem de Maria como ponto de referência da realização da
mulher, acusando-a de haver oferecido no passado um pretexto teológico à
tendência católica de colocar a mulher em posições subordinadas[2].
Contra esta atitude, João Paulo II sublinha a liberdade de Maria que entrou com
uma “participação plena” de seu “eu pessoal e feminino” naquela relação única
com Deus (MD, 49). Doou consciente e voluntariamente todo seu ser físico e
espiritual a Deus, quando se definiu a si mesma como a escrava do
Senhor (Lc 1, 38).
Reconhecer que uma interpretação errônea dessa expressão
pode induzir à manutenção da mulher em situações de subordinação, ao ponto de
fazer passar, como qualidades femininas, a timidez e o ânimo encolhido, não
significa que a virtude da caridade e da disponibilidade para servir, tenham
que ser simplesmente liquidadas como um fragmento de escravidão. A rejeição do
“serviço” coincide com efeito com a exaltação prática do egoísmo, quer dizer,
com a atitude espiritual que constitui a maior ameaça à realização pessoal,
tanto da mulher como do homem. É necessário, no entanto, sondar as palavras em
que Maria declara ser a “serva” do Senhor em toda a sua incomparável
profundidade.
O Santo Padre sublinha, sobretudo, que também Cristo se
define a si mesmo como “servo” (cfr. MD, 5). Justamente no momento mais intenso
da declaração de sua missão messiânica, afirma com desconcertante simplicidade:
“O Filho do homem, com efeito, não veio para ser servido e sim para servir” (Mc
10, 45). Palavras que, além de manifestar a intensa união espiritual entre o
Filho e a Mãe, revelam como é excelsa a dignidade de servir do homem[3].
Quem é capaz de dar-se livremente aos outros, reflete em si
a imagem de Deus e realiza, portanto, a própria humanidade com singular
plenitude. Isto é amplamente desenvolvido no capítulo seguinte da Mulieris
dignitatem que trata da relação entre ser pessoa e o serviço.
Jutta Burggraf
[1] Cfr. Elenchus
definitivus propositionum, em “La Documentation Catholique”, 21 (1987)
1088-1100.
[2] Cfr.
C. HALKES, Gott hat nicht nur starke Söhne, Güttersloh 1980,
p. 117.
[3] O
argumento está também desenvolvido na Encíclica Redemptor hominis, 4-III-1975,
n. 21.
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