Para um feminismo cristão: reflexões sobre a Carta
Apostólica “Mulieris Dignitatem”
Estudo de Jutta Burggraf, Doutora em Sagrada Teologia e em Pedagogia, publicado em “Romana”, nº 7 (1988).
14/08/2020
5. Maternidade física e maternidade espiritual
A unidade e a igualdade do homem e da mulher não anulam, no
entanto, a diversidade. Tendo insistido até aqui na radical paridade dos dois
sexos, o Santo Padre busca, na segunda parte da Carta Apostólica, as dimensões
específicas. A especificidade não está, sem dúvida, na qualidade ou nos dotes
humanos que caracterizam a um ou a outro. Com efeito, segundo dados
estatísticos, a maior ou menor frequência com que os diversos talentos aparecem
nos homens ou nas mulheres não nos diz nada acerca das pessoas concretas.
Nenhum indivíduo é determinado somente pelo sexo: além de ser homem ou mulher,
possui disposições e aptidões próprias que lhe conferem individualmente
condições para a atividade artística, técnica, científica, social, etc.
A especificidade é, pois, bem mais radical e consiste na
maternidade ou na paternidade (cfr. MD, 17). O Papa fala longamente sobre a
maternidade como dimensão da vocação da mulher (cfr. MD, 18), que implica desde
o início uma especial abertura à concepção ou ao nascimento. Dessa forma, a
mulher se realiza admiravelmente mediante um “dom sincero de si” (MD, 18).
O homem, mesmo sendo pai, encontra-se necessariamente fora
do processo da gestação e do nascimento. A sua contribuição para a paternidade
comum é, inicialmente menos comprometida com relação à da mulher: daí as
obrigações especiais que surgem para ele com relação à sua mulher. João Paulo
II afirma que o marido é devedor de sua esposa e recorda que
“nenhum programa de igualdade de direitos das mulheres e dos
homens é válido se isto não é tido em conta de modo essencial” (MD, 18). A
sensibilidade de cada um deverá prever como tais deveres serão efetivados, mas
não parece fora de lugar prever uma colaboração do homem nas tarefas
domésticas, como por outro lado a mulher colabora no sustento econômico da
família.
A maternidade não é apenas um processo fisiológico. É
sobretudo um acontecimento que envolve o ser da mulher em sua mais íntima raiz
e corresponde à inteira estrutura psicofísica da feminilidade. O documento
pontifício conclui por isso que o “modo único de contato com o novo homem que
está se formando, cria, por sua vez uma atitude para com o homem – não só para
com o próprio filho, mas para com o homem em geral – tal que caracteriza
profundamente toda a personalidade da mulher” (MD, 18). A antropologia filosófica[14] e
as ciências experimentais recentes confirmam, por exemplo, que a mulher oferece
uma contribuição mais concretamente humana às relações interpessoais: ela
possui uma capacidade toda sua de descobrir o indivíduo na massa e de
promovê-lo como tal. “Deus – afirma João Paulo II – lhe confia de uma maneira
especial o homem, o ser humano” (MD, 30). Subtrair o indivíduo do anonimato da
sociedade massificada, salvá-lo da fria tirania das tecnologias, protegê-lo em
um contexto de relações pessoais, tudo isto é missão e conquista da mulher[15].
Isto não significa, no entanto, que as mulheres criem um
mundo mais humano só com a sua presença e mais do que os homens. A nossa
sociedade só poderá mudar se ambos os sexos souberem acolher o convite do Papa
para dar vida a uma nova cultura, marcada pela compreensão, o amor, o dom de si
e aquela recíproca atitude de serviço que Deus inscreveu em cada um deles no
princípio da criação e da redenção (MD, 18). Mas, em tudo isto a mulher tem
muito a oferecer (cfr. MD, 3) e o homem, na medida em que está por natureza
mais distante da vida, muito que aprender. O que adquire uma especial aplicação
à paternidade no período pós-natal (MD, 18).
João Paulo II descreve a educação dos filhos como dimensão
espiritual da paternidade, na qual os dois cônjuges são igualmente
responsáveis. A mulher é, no entanto, de alguma forma, a “primeira educadora”
dos filhos (MD, 19). Daí se deriva, entre outras coisas que, inclusive, as
legítimas aspirações à emancipação parecem enganosas, se dirigidas unicamente
no âmbito exterior à casa. Seguindo o Concílio Vaticano II[16],
o Papa reivindica a necessidade de reconhecer o valor do empenho doméstico e
educativo das mães (cfr. MD, 18). É a mãe, com efeito, que lança os alicerces
da formação “de uma nova personalidade humana” com a assiduidade dos seus
cuidados nos primeiros anos do desenvolvimento. Se a maternidade também mostra,
no sentido biofísico, uma aparente passividade, é, no entanto, sumamente
criativa do ponto de vista ético e psicológico: o homem não aprende de outra
forma a amar, a perdoar, a ser fiel. Como mãe, portanto, a mulher “possui uma
precedência específica sobre o homem” (MD, 19).
Ninguém poderá, pois, considerar fora de lugar, a chamada
que se levanta de tantos lugares para que a mulher seja adequadamente protegida
pelo legislador em sua mais necessária atividade específica e que seu
compromisso na família receba o necessário reconhecimento econômico e
sócio-político[17].
Emancipação vem então a significar para a mulher “possibilidade real de
desenvolver plenamente as virtudes próprias; as que tem em sua singularidade e
as que tem como mulher. A igualdade perante o direito, a igualdade de
oportunidades em face da lei, não suprime, antes pressupõe e promove essa
diversidade, que é riqueza para todos”[18].
Passando da dimensão natural à sobrenatural da educação, a
tarefa da mulher pode ser delineada afirmando que, como ela (cada mulher)
recebe o próprio filho de Deus (na medida em que a geração é sempre
participação no ato criador), assim o filho (cada filho) existe em última
instância para Deus. Neste sentido cada mulher participa de algum modo, na
aliança definitiva estabelecida por Deus com Maria: porque cada mulher
contribui para a temporalidade e a eternidade de seu filho. Assim, a
maternidade “entendida à luz do Evangelho, não é só da carne e do sangue (...).
Com efeito, são os nascidos de mães terrenas (...)que recebem do Filho de Deus
o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12)” (MD, 19).
6. A virgindade pelo Reino dos céus
Há uma segunda dimensão constitutiva do desenvolvimento da
personalidade feminina que João Paulo II analisa em Mulieris
Dignitatem: o celibato, a virgindade “pelo Reino dos Céus” (MD, 17).
Poucas realidades cristãs chocam como esta com os costumes de uma sociedade
permissiva e consumista, na qual os comportamentos ditados pela sensualidade e
o egoísmo se generalizaram. Também hoje, no entanto, na virgindade “pelo Reino
dos Céus”, é que se dá, de modo insubstituível a experiência vital da plenitude
do amor. Como o Papa já havia feito na sede de Cracóvia[19],
dedica amplo espaço em sua própria pregação para ilustrar o sentido da
virgindade na consciência cristã[20] e
a Mulieris Dignitatem confirma-o com especial profundidade.
A escolha do celibato também introduz o homem e a mulher no
mistério esponsal da união com Cristo e a Igreja. A Carta Apostólica sublinha
que a virgindade os projeta numa entrega cheia de amor a um Tu, na qual se
encontra a totalidade do dom de si que caracteriza o matrimônio, mas de modo
diverso: nela cada um, separadamente, põe-se em relação direta e pessoal com
Cristo vivo e presente. Homem e mulher entregam-se exclusivamente a si mesmos a
quem primeiro se entregou a cada ser humano, amando-o “até o fim” (cfr. Jo
13,1). A pessoa humana amada por Deus até tal extremo “entrega-se a Ele e só a
Ele”[21],
e o Papa esclarece: “isto não pode ser comparado com o simples celibato porque
a virgindade não se restringe ao simples ‘não’, mas contém um profundo ‘sim’ na
ordem esponsal: dar-se por amor de modo total e indiviso” (MD 20).
A vocação para o celibato é profundamente pessoal, concreta,
única (MD 21). Nela o homem e a mulher realizam-se plenamente como pessoas: a
feminilidade e a masculinidade entram plenamente, com todas as suas qualidades
e fraquezas, em relação com Cristo, e se abrem possibilidades e perspectivas
novas. Na plena comunhão do eu com o Tu divino, o coração humano é cumulado
pela superabundância do amor, que se dá até abraçar a humanidade inteira. A
mulher que renunciou à maternidade física poderá compreender mais rapidamente
às exigências da maternidade espiritual, já que também esta pertence à sua
interioridade mais profunda (cfr. MD, 21). Como uma mãe ama em primeiro lugar o
marido e os próprios filhos, assim a mulher que se deu inteiramente a Deus na
virgindade, torna-se capaz de oferecer a própria vida por todos. O grau de tal
entrega depende da profundidade vital de sua união com Cristo. E se consuma
também no dirigir-se espontaneamente aos mais fracos, aos indefesos, aos
inocentes, e aos culpados, abandonados por uma sociedade cada vez mais
competitiva. Neste contexto, João Paulo II recorda os grandes méritos
históricos das ordens femininas, que se distinguiram pela aceitação da
maternidade espiritual a favor dos marginalizados (cfr. MD, 21): exemplos
eloquentes de como, dando-se aos outros, por amor a Cristo, a mulher alcança
uma realização frequentemente heroica da própria vocação e oferece um
testemunho vivo de papel insubstituível da feminilidade. O celibato pelo Reino
dos Céus põe-se assim em estreita relação com a fecundidade do matrimônio:
“Existem, por conseguinte, muitas razões para ver nestes dois caminhos diversos
– duas vocações diversas de vida da mulher – uma profunda complementaridade e
até uma profunda união no interior do ser da pessoa” (MD, 22).
7. A Igreja, Esposa de Cristo
A Mulieris Dignitatem apresenta amplamente
a missão eclesial da mulher, tendo em conta que a Igreja não é uma sociedade
como as outras, mas um mistério cuja mais profunda compreensão excede as
possibilidades humanas.
A Igreja é termo feminino, também consolidado entre outras
coisas pela célebre analogia paulina que faz dela a Esposa de Cristo (cfr. Ef
5,23-32). Como sujeito coletivo, compreende obviamente homens e mulheres de
modo que o feminino surge aqui como “símbolo do humano” (MD, 25). Não é o homem
com seu espírito ativista, mas a mulher com sua abertura à vida, que representa
em seu próprio ser a natureza da Igreja: acolhida do homem por parte de Deus e
comunhão íntima com Cristo.
E o sacerdócio? A resposta do Santo Padre não dá lugar a
nenhum possível equívoco a este propósito. Pode-se deduzir então que não tem
sentido fazer depender a questão da dignidade da mulher do sim ou do não a seu
acesso ao sacerdócio ministerial[22].
É sabido que alguns setores da opinião pública, sensibilizados pela emancipação
da mulher e pela igualdade de direitos entre os dois sexos, entenderam como uma
espécie de discriminação o fato de que, na tradição católica, o sacerdócio
ministerial seja reservado aos homens. João Paulo II, fazendo-se eco da
declaração Inter insigniores da Congregação para a Doutrina da
Fé (1976), argumenta fundamentando-se na conduta mantida a este respeito pelo
próprio Cristo: mesmo tendo-se oposto radicalmente, até desafiar a prática
social dominante, e seus propugnadores, a qualquer discriminação contra a
mulher, ordenou sacerdotes somente os homens e o fez “com a mesma liberdade com
que, em todo o seu comportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da
mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também
pela legislação do tempo” (MD, 26). Os Apóstolos atuaram atendo-se ao exemplo
do Mestre e a Igreja sempre sentiu o dever de seguir fielmente o que Cristo e a
comunidade apostólica fizeram. O cristianismo, com efeito, é, em muitos
sentidos, uma comunidade histórica[23]:
as atuações de Cristo não representam apenas um ponto de partida, mas têm um
conteúdo normativo, que define para sempre os seus traços fundamentais.
Poder-se-ia inclusive imaginar um eventual modo de atuar
diferente de Cristo, e talvez isto não estivesse em contraste com o resto da
economia sacramental nem com a forma global da redenção. Mas é inegável que, de
fato, o plano de Deus seguiu seu caminho, muito distinto e bem determinado.
Esse plano revelou-se num momento concreto da história e em circunstâncias
específicas, mas o seu caráter é permanente[24].
A razão pela qual a mulher não pode receber a ordenação sacerdotal não deriva
pois, da racionalidade humana, porque ascende a uma dimensão infinitamente mais
profunda que só pode ser explicada e aceita pela fé.
A referência do sacerdócio ao homem acha-se enraizada no
próprio centro da substância do ministério da Igreja. Quando o sacerdote exerce
o ministério, não atua em nome próprio, mas in persona Christi. Em
sua natureza de homem, representa Cristo, Esposo da Igreja como autor da graça
(cfr. MD, 26). O que não implica que sejam proibidas à mulher funções
relevantes na Igreja, como esclareceu o Concílio Vaticano II, por exemplo, no
n.9 do decreto Apostolicam actuositatem: “Posto que além disso, em
nossos dias as mulheres tomam parte cada vez mais ativa em toda a vida social,
é de grande importância que ela participe cada vez mais amplamente nos vários
campos de apostolado da Igreja”. Por outro lado, a doutrina do sacerdócio comum
dos fiéis mostra que na Igreja não se dá uma discriminação da mulher com
relação ao homem, mas antes uma complementaridade de funções e condições (cfr.
MD, 27).
8. A dignidade da mulher e a ordem do amor
A necessidade do sacerdócio ministerial ou hierárquico e a
sua excelsa dignidade estão evidentemente fora de discussão, o que não
representa, no entanto, o ápice da Igreja de Deus. João Paulo II detém-se em
outra hierarquia, que transcende infinitamente a primeira em importância: a
hierarquia da santidade que, apesar de escondida a nossos olhos, possui uma
eficácia histórica superior a qualquer avaliação (cfr. MD, 27). Neste contexto,
o Santo Padre examina a dimensão mariana e apostólica – petrina -- da Igreja,
explicando que o exemplo de santidade provém de Maria para todos os cristãos,
antes e mais do que dos Apóstolos. Nela, Virgem e Mãe ao mesmo tempo, (MD, 17)
a Igreja adquiriu já a própria plenitude. E, já que Ela é modelo também dos
Apóstolos, segue-se que todos os sacerdotes devem recorrer à escola de Maria:
uma mulher que não foi investida da ordem sacerdotal, mas que justamente
veneramos como Mãe da Igreja (cfr. MD, 27).
Maria supera e precede todos os cristãos no caminho da
santidade. É o modelo da perfeita semelhança com Deus que, na vida
intratrinitária como no mistério salvífico, revelou-se como Amor que se entrega
a si mesmo (cfr. MD, 29). Nela, a mulher compreende que “não pode se encontrar
a si mesma senão doando amor aos outros” (MD, 30). E isto vale para qualquer
criatura humana[25].
O aprofundamento de tal missão leva o Santo Padre a voltar, na conclusão do
documento, ao ideal cristão de serviço. A moral ensinada por Jesus implica uma
mudança completa do valor mundano do poder ao da humildade, que está, na
verdade, muito mais em consonância com as exigências fundamentais da natureza
humana. Só quem ama, homem ou mulher, pode notar a existência dos outros e
ajudar efetivamente; só quem ama pode aliviar os sofrimentos. O amor torna
sensível e forte, humilde e seguro, livre e obediente ao mesmo tempo; e faz
assumir a responsabilidade para um futuro mais humano.
A visão do Apocalipse culmina com a aparição de Maria,
vencedora na luta contra o mal, na qual o Santo Padre vê o cumprimento
definitivo da dignidade e da vocação da mulher (cfr. MD, 30). No combate contra
o pecado, que se propõe como luta pelo ser humano e pela sua realização
definitiva em Deus, a mulher é chamada a construir a civilização do amor com a
sua força espiritual e moral.
Jutta Burggraf
[14] Cfr.
G. VON LE FORT, Die ewige Frau, 14ªed. München 1950.
[15] Já
na Encíclica Redemptor Mater, n. 46, João Paulo II havia tirado da
contemplação da figura de Maria estas qualidades como especificamente
femininas.
[16] Cfr.
CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 52; JOÃO
PAULO II, Exhort apost. Familiaris consortio, 22-XI-1981,
n.23.
[17] Cfr
JOÃO PAULO II, Litt. enc. Laboren exercens, 14-IX-1981, n. 19.
[18] Entrevistas
com Mons. Josemaria Escrivá, cit. N. 87.
[19] Cfr.
K. WOJTYLA, Liebe und Verantwortung ???.
[20] JOÃO
PAULO II, Die Erlösung des Leibes. Katechesen 1981-1984,
Vallendar 1985.
[21] Cfr.
K WOJTYLA, Liebe und Verantwortung, cit, p. 21.
[22] J.
RATZINGER, La donna, custode dell’essere umano, em
“L’Osservatore Romano, 6-X-1988.
[23] Cfr.
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Decl. Inter Insigniores, 15-X-1976,
n. 4: AAS 69 (1976) 98 – 116.
[24] Cfr.
J. RATZINGER, Das Priestertum des Mannes: ein Verstoss gegen die Rechte
der Frau? Em “Die Sendung der Frau in der Kirche” Kevelaer 1978, p.
88.
[25] Cfr.
CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gaudium et Spes, n. 24; JOÃO
PAULO II, Exhort. apost. Familiaris Consortio, n.22.
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