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domingo, 27 de julho de 2025

HISTÓRIA DA IGREJA: Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia (Parte 1/2)

Nestas páginas, algumas imagens do retábulo O perdão de Assis, de padre Hilário de Viterbo, 1393, conservada na abside | 30Giorni

Arquivo 30Dias nº 09 - 2005

Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia

A vida de Francisco de Assis, como acontece para todo homem, sempre será, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede de continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa perspectiva é que se está reconhecendo o papel importante, para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.

de Pietro Messa

Não podemos deixar de reconhecer que, em certo sentido, Francisco de Assis teve um destino invejável se comparado a outros santos: declarado em 1992 pela Time Magazine um dos homens mais representativos do segundo milênio, estudado por centros de pesquisa universitários leigos e não leigos, objeto de inúmeras publicações científicas e de divulgação inerentes a sua história, com diversos filmes a ele dedicados, reconhecido como referência ideal por pessoas de diversas culturas e religiões. A tudo isso se acrescente a escolha de Assis, a cidade de São Francisco, por João Paulo II, para o histórico dia de 27 de outubro de 1986, que deu início ao chamado “espírito de Assis”, movimento inter-religioso em favor da paz; o Pontífice lá voltou ainda em 9 e 10 de janeiro de 1993 e, apesar das inúmeras reservas e da perplexidade diante da oportunidade dessa iniciativa, em 24 de janeiro de 2002, ou seja, depois dos atos terroristas de 11 de setembro de 2001.

Vemos, portanto, um São Francisco muito valorizado. E, ainda que o dia de sua festa, 4 de outubro, na Itália, não se tenha tornado festa nacional, seu nome é de certa forma sinônimo de diálogo intercultural e inter-religioso. Todavia, todos sabemos que a fronteira entre ter sucesso e ser inflacionado é muito sutil, e isso vale também para o santo de Assis.

Os estudos franciscanos avaliaram as fontes inerentes a sua experiência cristã, enquanto numerosos estudiosos continuam a tentar aperfeiçoar o conhecimento dessas fontes a fim de descobrir o rosto desse santo, superando todas as imagens hagiográficas ou manipulações ideológicas. Têm-se aprofundado os estudos sobre sua formação cultural e espiritual, reconhecendo-se nela diversas estratificações, a saber: a cultura do filho do mercador; uma ideologia cavaleiresca que o conduzia a assumir ideologicamente os trajes do cavaleiro; a cultura cortês que continuou mesmo depois de sua conversão; o elemento evangélico e até as reminiscências das antigas vidas dos Padres do deserto1. Diante desses numerosos estudos, cujo início se reconhece em Paul Sabatier, parece que hoje, a respeito do frei Francisco de Assis, filho do mercante Pedro de Bernardone, não haja mais nada a aprofundar. A imagem mais divulgada, porém, parece não apenas inflacionada, mas, por vezes, tem-se a sensação de que lhe faltem alguns aspectos importantes, quando não é vítima de alguma operação ideológica instrumentalizante. Certamente, como acontece para todo homem, também a vida de Francisco de Assis será sempre, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede, porém, de continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa perspectiva vem sendo reconhecido um papel importante, para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.

1. Um período de reforma litúrgica

A época em que viveu Francisco foi de grandes mudanças e transformações culturais: o desenvolvimento das comunas, o nascimento das universidades, o incentivo aos intercâmbios comerciais, o surgimento de novas exigências religiosas, que muitas vezes desembocaram na heresia, mas também em movimentos pauperistas. Todos esses aspectos normalmente são levados em consideração pelos estudiosos mais perspicazes, quando enquadram historicamente a vida de Francisco de Assis. Todavia, é quase totalmente negligenciada a consideração de que aqueles anos foram um dos momentos nevrálgicos da história da liturgia. De fato, se tomarmos um manual de história da liturgia qualquer, poderemos constatar que Inocêncio III deu início a uma reforma da liturgia da Cúria Romana cujos resultados, justamente por intermédio dos Frades Menores, se difundiram por toda a parte, a ponto de serem ainda hoje o elemento caracterizante da liturgia latina de rito romano.

No início do século XIII, em Roma, existiam fundamentalmente quatro tipos de liturgia: a da Cúria Romana, que residia no Palácio do Latrão, a da vizinha Basílica de São João, a da Basílica de São Pedro e a chamada liturgia da Urbe, ou seja, da cidade de Roma. Ino­cêncio III, em seu projeto de reforma, que viu um de seus momentos de máxima expressividade no Concílio Lateranense IV, de 1215, não excluiu a liturgia. Um dos frutos mais prestigiosos da reforma da liturgia foi o breviário. Aproximando, integrando e adequando à vida da Cúria Romana, frequentemente sujeita a transferências, textos que anteriormente eram distribuídos em livros diversos, Inocêncio III forneceu um instrumento de fácil manipulação sobretudo para aqueles que viviam viajando. Esse breviário, justamente por sua facilidade de uso, foi logo adotado também por algumas dioceses, entre as quais a de Assis. Dessa forma, Francisco e a fraternitas menorítica tiveram acesso a um livro litúrgico que cedo se revelou conforme a suas exigências de pessoas itinerantes que viviam como “estrangeiros e peregrinos”2. Assim, os Frades Menores fizeram sua a oração litúrgica e especialmente a oração da Cúria Romana, ou seja, do pontífice.

2. Não simplesmente questão de oração

Adotar um livro litúrgico ou outro não era indiferente. O papa Gregório VII já o havia compreendido anteriormente, quando via com temor uma disparidade litúrgica, porque em alguns casos conduzia não apenas a uma disparidade jurisdicional, mas também doutrinal, ou seja, à heresia. Por exemplo, adotar o breviário da Cúria Romana reformado por Inocêncio III significava acolher toda uma tradição anterior; nele, a disposição das diversas festas, a escolha de determinadas leituras, a montagem de passagens bíblicas para formar antífonas, versículos e responsórios, a presença de inúmeras leituras tanto patrísticas quanto dos antigos martirológios eram fundamentalmente o resultado da reflexão eclesial e da experiência sobretudo monástica de todo o milênio anterior. Portanto, ao fazer seu o breviário, Francisco e a fraternitas menorítica se inseriram numa história que os havia precedido e que fora transmitida ao longo dos séculos. Isso não significa que eles se sentiram ou agiram como se fossem prisioneiros daquela tradição: de fato, como anota uma fonte, Francisco não deixou de afirmar sua peculiaridade, repelindo alguns modelos a ele precedentes.

Seja como for, acolhendo a oração do breviário, eles se inseriram dentro da tradição espiritual e teológica amadurecida ao longo dos séculos na Igreja, como se pode constatar na leitura dos escritos de Francisco, nos quais as reminiscências litúrgicas são incontáveis. Essas reminiscências, que tecnicamente são definidas casos de “intertextualidade e interdiscursividade” - ou seja, citações propriamente ditas ou simples remissões conceituais-, muitas vezes são uma transmissão de textos patrísticos interiorizados pelo santo. Se isso parece surpreendente, sobretudo com relação a certa historiografia que apresentou Francisco de Assis como o Santo unicamente do Evangelho - quase uma espécie de precursor da reforma protestante -, ainda mais rico de consequências é o fato de que muitas vezes a própria Bíblia, e portanto o Evangelho, está presente em seus escritos mediada pela liturgia. Isso, naturalmente, leva a rever certas descrições da experiência espiritual de Francisco que o apresentam como alguém que teve uma relação imediata, sem mediações, com a Escritura. Em vez disso, o que fica claro a um estudo mais aprofundado é que ele conheceu a Escritura mediante a liturgia, ou seja, graças à mediação da Igreja. E a liturgia é ela mesma uma explicação da Escritura, ou seja, uma exegese: de fato, mesmo simplesmente a colocação de uma determinada leitura numa festa em vez de outra já diz muito sobre a chave de leitura e, portanto, sobre a compreensão daquele determinado trecho. Assim, a leitura do capítulo 11 de Isaías, no qual se fala do rebento que desponta do tronco de Jessé no Comum da Virgem Maria já é em si mesma uma perspectiva mariana dada àquele determinado trecho, notavelmente aumentada, se, ainda por cima, no lugar de virga, ou seja, rebento - como deveria ser - está virgo, ou seja, Virgem, como se mostra no breviário que pertenceu a São Francisco de Assis: “Despontará a Virgem do tronco de Jessé, um rebento germinará de suas raízes, sobre ele pousará o espírito do Senhor”3.

Notas

1 J. Dalarun, Francesco: un passaggio. Donna e donne negli scritti e nelle leggende di Francesco d’Assisi, posfácio de G. Miccoli, Roma, 1994.
2 P. Messa, “Un testimone dell’evoluzione liturgica della fraternitas francescana primitiva: il Breviarium sancti Francisci”, in: Revirescunt Chartae, codices documenta textus: miscellanea in honorem fr. Caesaris Cenci, OFM, vol. I, Roma, Ed. A. Cacciotti-P. Sella, 2002, pp. 5-141.
3 P. Messa, “L’Officium mortuorum e l’Officium beate Marie virginis nel Breviarium sancti Francisci”, in: Franciscana. Bollettino della Società internazionale di studi francescani, 4 (2002), pp. 111-149.

Fonte: https://www.30giorni.it/

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