Arquivo 30Dias nº 09 - 2005
Francisco de Assis um homem de paz formado pela liturgia
A vida de Francisco de Assis, como acontece para todo homem,
sempre será, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede de
continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui.
Justamente nessa perspectiva é que se está reconhecendo o papel importante,
para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.
de Pietro Messa
Não podemos deixar de reconhecer que, em certo sentido,
Francisco de Assis teve um destino invejável se comparado a outros santos:
declarado em 1992 pela Time Magazine um dos homens mais
representativos do segundo milênio, estudado por centros de pesquisa
universitários leigos e não leigos, objeto de inúmeras publicações científicas
e de divulgação inerentes a sua história, com diversos filmes a ele dedicados,
reconhecido como referência ideal por pessoas de diversas culturas e religiões.
A tudo isso se acrescente a escolha de Assis, a cidade de São Francisco, por
João Paulo II, para o histórico dia de 27 de outubro de 1986, que deu início ao
chamado “espírito de Assis”, movimento inter-religioso em favor da paz; o
Pontífice lá voltou ainda em 9 e 10 de janeiro de 1993 e, apesar das inúmeras
reservas e da perplexidade diante da oportunidade dessa iniciativa, em 24 de
janeiro de 2002, ou seja, depois dos atos terroristas de 11 de setembro de
2001.
Vemos, portanto, um São Francisco muito valorizado. E, ainda
que o dia de sua festa, 4 de outubro, na Itália, não se tenha tornado festa
nacional, seu nome é de certa forma sinônimo de diálogo intercultural e
inter-religioso. Todavia, todos sabemos que a fronteira entre ter sucesso e ser
inflacionado é muito sutil, e isso vale também para o santo de Assis.
Os estudos franciscanos avaliaram as fontes inerentes a sua
experiência cristã, enquanto numerosos estudiosos continuam a tentar
aperfeiçoar o conhecimento dessas fontes a fim de descobrir o rosto desse
santo, superando todas as imagens hagiográficas ou manipulações ideológicas.
Têm-se aprofundado os estudos sobre sua formação cultural e espiritual,
reconhecendo-se nela diversas estratificações, a saber: a cultura do filho do
mercador; uma ideologia cavaleiresca que o conduzia a assumir ideologicamente os
trajes do cavaleiro; a cultura cortês que continuou mesmo depois de sua
conversão; o elemento evangélico e até as reminiscências das antigas vidas dos
Padres do deserto1. Diante desses numerosos estudos, cujo início se reconhece
em Paul Sabatier, parece que hoje, a respeito do frei Francisco de Assis, filho
do mercante Pedro de Bernardone, não haja mais nada a aprofundar. A imagem mais
divulgada, porém, parece não apenas inflacionada, mas, por vezes, tem-se a
sensação de que lhe faltem alguns aspectos importantes, quando não é vítima de
alguma operação ideológica instrumentalizante. Certamente, como acontece para
todo homem, também a vida de Francisco de Assis será sempre, em certo sentido,
um mistério. Reconhecer isso não impede, porém, de continuar a aprofundá-la,
graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa
perspectiva vem sendo reconhecido um papel importante, para não dizer
fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.
1. Um período de reforma litúrgica
A época em que viveu Francisco foi de grandes mudanças e
transformações culturais: o desenvolvimento das comunas, o nascimento das
universidades, o incentivo aos intercâmbios comerciais, o surgimento de novas
exigências religiosas, que muitas vezes desembocaram na heresia, mas também em
movimentos pauperistas. Todos esses aspectos normalmente são levados em
consideração pelos estudiosos mais perspicazes, quando enquadram historicamente
a vida de Francisco de Assis. Todavia, é quase totalmente negligenciada a
consideração de que aqueles anos foram um dos momentos nevrálgicos da história
da liturgia. De fato, se tomarmos um manual de história da liturgia qualquer,
poderemos constatar que Inocêncio III deu início a uma reforma da liturgia da
Cúria Romana cujos resultados, justamente por intermédio dos Frades Menores, se
difundiram por toda a parte, a ponto de serem ainda hoje o elemento
caracterizante da liturgia latina de rito romano.
No início do século XIII, em Roma, existiam fundamentalmente quatro tipos de liturgia: a da Cúria Romana, que residia no Palácio do Latrão, a da vizinha Basílica de São João, a da Basílica de São Pedro e a chamada liturgia da Urbe, ou seja, da cidade de Roma. Inocêncio III, em seu projeto de reforma, que viu um de seus momentos de máxima expressividade no Concílio Lateranense IV, de 1215, não excluiu a liturgia. Um dos frutos mais prestigiosos da reforma da liturgia foi o breviário. Aproximando, integrando e adequando à vida da Cúria Romana, frequentemente sujeita a transferências, textos que anteriormente eram distribuídos em livros diversos, Inocêncio III forneceu um instrumento de fácil manipulação sobretudo para aqueles que viviam viajando. Esse breviário, justamente por sua facilidade de uso, foi logo adotado também por algumas dioceses, entre as quais a de Assis. Dessa forma, Francisco e a fraternitas menorítica tiveram acesso a um livro litúrgico que cedo se revelou conforme a suas exigências de pessoas itinerantes que viviam como “estrangeiros e peregrinos”2. Assim, os Frades Menores fizeram sua a oração litúrgica e especialmente a oração da Cúria Romana, ou seja, do pontífice.
2. Não simplesmente questão de oração
Adotar um livro litúrgico ou outro não era indiferente. O
papa Gregório VII já o havia compreendido anteriormente, quando via com temor
uma disparidade litúrgica, porque em alguns casos conduzia não apenas a uma
disparidade jurisdicional, mas também doutrinal, ou seja, à heresia. Por
exemplo, adotar o breviário da Cúria Romana reformado por Inocêncio III
significava acolher toda uma tradição anterior; nele, a disposição das diversas
festas, a escolha de determinadas leituras, a montagem de passagens bíblicas
para formar antífonas, versículos e responsórios, a presença de inúmeras
leituras tanto patrísticas quanto dos antigos martirológios eram
fundamentalmente o resultado da reflexão eclesial e da experiência sobretudo
monástica de todo o milênio anterior. Portanto, ao fazer seu o breviário,
Francisco e a fraternitas menorítica se inseriram numa
história que os havia precedido e que fora transmitida ao longo dos séculos.
Isso não significa que eles se sentiram ou agiram como se fossem prisioneiros
daquela tradição: de fato, como anota uma fonte, Francisco não deixou de
afirmar sua peculiaridade, repelindo alguns modelos a ele precedentes.
Seja como for, acolhendo a oração do breviário, eles se
inseriram dentro da tradição espiritual e teológica amadurecida ao longo dos
séculos na Igreja, como se pode constatar na leitura dos escritos de Francisco,
nos quais as reminiscências litúrgicas são incontáveis. Essas reminiscências,
que tecnicamente são definidas casos de “intertextualidade e
interdiscursividade” - ou seja, citações propriamente ditas ou simples
remissões conceituais-, muitas vezes são uma transmissão de textos patrísticos
interiorizados pelo santo. Se isso parece surpreendente, sobretudo com relação
a certa historiografia que apresentou Francisco de Assis como o Santo
unicamente do Evangelho - quase uma espécie de precursor da reforma protestante
-, ainda mais rico de consequências é o fato de que muitas vezes a própria
Bíblia, e portanto o Evangelho, está presente em seus escritos mediada pela
liturgia. Isso, naturalmente, leva a rever certas descrições da experiência
espiritual de Francisco que o apresentam como alguém que teve uma relação
imediata, sem mediações, com a Escritura. Em vez disso, o que fica claro a um
estudo mais aprofundado é que ele conheceu a Escritura mediante a liturgia, ou
seja, graças à mediação da Igreja. E a liturgia é ela mesma uma explicação da
Escritura, ou seja, uma exegese: de fato, mesmo simplesmente a colocação de uma
determinada leitura numa festa em vez de outra já diz muito sobre a chave de
leitura e, portanto, sobre a compreensão daquele determinado trecho. Assim, a
leitura do capítulo 11 de Isaías, no qual se fala do rebento que desponta do
tronco de Jessé no Comum da Virgem Maria já é em si mesma uma perspectiva
mariana dada àquele determinado trecho, notavelmente aumentada, se, ainda por
cima, no lugar de virga, ou seja, rebento - como deveria ser -
está virgo, ou seja, Virgem, como se mostra no breviário que
pertenceu a São Francisco de Assis: “Despontará a Virgem do tronco de Jessé, um
rebento germinará de suas raízes, sobre ele pousará o espírito do Senhor”3.
Notas
1 J. Dalarun, Francesco: un passaggio. Donna e donne negli scritti
e nelle leggende di Francesco d’Assisi, posfácio de G. Miccoli, Roma, 1994.
2 P. Messa, “Un testimone dell’evoluzione liturgica della fraternitas
francescana primitiva: il Breviarium sancti Francisci”, in: Revirescunt
Chartae, codices documenta textus: miscellanea in honorem fr. Caesaris Cenci,
OFM, vol. I, Roma, Ed. A. Cacciotti-P. Sella, 2002, pp. 5-141.
3 P. Messa, “L’Officium mortuorum e l’Officium beate Marie virginis nel
Breviarium sancti Francisci”, in: Franciscana. Bollettino della Società
internazionale di studi francescani, 4 (2002), pp. 111-149.
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