A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus
sobre o mundo
Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este
artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na
obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério.
Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma
colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.
01/06/2025
A partir da metade do século XIX, o tema do trabalho e de
suas dinâmicas ganhou profundidade na reflexão teológica. É a época da
revolução industrial e das grandes mudanças socioculturais. Surgem tensões
entre classes sociais. A vida familiar e comunitária experimenta novas formas
de organização. Com a publicação da encíclica Rerum novarum (1891)
de Leão XIII, primeira de uma longa tradição de encíclicas sociais, a Doutrina
Social da Igreja se desenvolveu gradualmente. Nas primeiras décadas do século
XX nasce a teologia das realidades terrenas, que em breve se verá relacionada
com uma incipiente teologia do laicato. Nesses anos, antes e durante o Concílio
Vaticano II, se experimentam novas formas de ação pastoral, destinadas a
difundir o Evangelho nas novas situações sociais e trabalhistas.
A questão do valor do trabalho e o papel das atividades
humanas na edificação do Reino de Deus começam a fazer parte dos estudos do
Concílio e são objeto de um novo e profundo desenvolvimento na
constituição Gaudium et spes, especialmente os números 33-39.
Os Padres conciliares não têm medo de fazer perguntas exigentes:
“O homem sempre procurou, com o seu trabalho e engenho,
desenvolver mais a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à
técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira , e continuamente o aumenta
[...]. Muitas são as questões que se levantam entre os homens, perante este
imenso empreendimento, que já atingiu o inteiro gênero humano. Qual o sentido e
valor desta atividade? Como se devem usar estes bens? Para que fim tendem os
esforços dos indivíduos e das sociedades??” (Gaudium et spes, n. 33).
Em meados do século XX surgem diversas obras teológicas que
abordam essas questões. Ao refletir sobre o sentido do trabalho humano, vários
autores tentam esclarecer o que a perspectiva cristã, iluminada pelo mistério
pascal de Jesus Cristo, traz para o dinamismo do progresso social, técnico e
científico. Onde deve situar-se a esperança cristã: na construção do Reino de
Cristo já presente na história, em seu cumprimento futuro no final dos tempos
ou em algum ponto intermediário? De onde emana a luz que
orienta o sentido das atividades humanas: do mistério da Encarnação ou de sua
orientação escatológica rumo à Jerusalém celeste?
Muitos teólogos trouxeram suas próprias reflexões a este
debate. Entre eles destacam-se Gustave Thils, com Théologie des
réalités terrestres [Teologia das realidades terrenas] (1946);
Marie-Dominique Chenu, Pour une théologie du travail [Para uma teologia
do trabalho] (1955); Alfons Auer, Christsein im Beruf [Ser
cristão no trabalho] (1966); Johann Baptist Metz, Zur
Theologie der Welt [Sobre a teologia do mundo] (1968); e Juan
Alfaro, Hacia una teología del progreso humano [Em direção a uma
teologia do progresso humano] (1969). Todos coincidem em ressaltar que
a atividade humana no mundo tem uma dimensão espiritual e que, tendo sido
criados à imagem e semelhança de Deus, o homem e a mulher cooperam ativa e
livremente em seu plano sobre a criação.
Nas obras filosóficas e poéticas de Karol Wojtyla, como
depois no magistério pontifício de São João Paulo II, o trabalho humano ocupa
um lugar central. O professor de Ética de Lublin desenvolve a dimensão imanente
do trabalho no sujeito, ou seja, o que traz dignidade à pessoa e à formação de
sua identidade. Em sua obra poética, Wojtyla enfatiza que a fadiga inerente ao
trabalho se traduz em generosidade e afeto para aqueles que dele se beneficiam,
revelando assim um compromisso de amor. A grandeza do trabalho material, não
está, portanto, no produto final e sim no sujeito que o realiza. O mistério do
Verbo encarnado fundamenta tanto a dignidade da pessoa que trabalha, quanto a
dignidade da matéria que o trabalho transforma. Muitos elementos da “teologia
do trabalho” de Karol Wojtyla confluirão posteriormente na encíclica Laborem
exercens (1981), o documento magisterial mais extenso e profundo até
agora sobre o significado humano e cristão do trabalho.
Ao longo do tempo, o magistério da Igreja acompanhou e
continua acompanhando as questões que surgem do progresso social e técnico pois
a sociedade humana e as dinâmicas do trabalho evoluem com rapidez. O
extraordinário progresso do homem, tanto no conhecimento da realidade como em
sua capacidade de transformá-la, traz novas perspectivas, mas também novos
desafios que requerem uma orientação moral.
Uma dignidade ancorada na Escritura
Diversos autores analisaram os ensinamentos de São Josemaria
sobre o trabalho, contextualizando-os no contexto teológico e social de sua
época[1].
Seus escritos não entraram em debate com a teologia do seu tempo, nem a
proposta era desenvolver o magistério do Concílio Vaticano II. No entanto, o
fundador do Opus Dei transmitiu uma visão específica do trabalho que
merece ser estudada com atenção. A luz fundacional que recebeu de Deus levou-o
a uma compreensão renovada da mensagem bíblica sobre a atividade humana no
mundo e proporcionou-lhe uma compreensão nova e mais profunda da lógica da
Encarnação.
O fundador do Opus Dei comentou extensamente a presença
do trabalho humano na Sagrada Escritura, especialmente no livro do Gênesis no
contexto da criação do homem e da mulher e em referência ao mandato recebido de
Deus de cultivar e povoar a terra (cfr. Amigos de Deus n.
57; É Cristo que passa, n. 47). O mundo, a terra e a matéria são
realidades boas porque saíram das mãos de Deus e o ser humano é chamado a atuar
de acordo com os fins dos planos divinos (cfr. É Cristo que passa,
n. 112; Entrevistas, n. 114). Da mesma forma, São Josemaria recorreu
frequentemente aos livros sapienciais especialmente os que louvam as virtudes
humanas, o trabalho bem feito e a sábia administração do mundo recebido de
Deus.
Na economia do Novo Testamente, caracterizada pela radical
novidade da Encarnação do Verbo, São Josemaria ressaltou muitas vezes que Jesus
de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ao assumir a natureza humana,
assumiu também o trabalho, exercendo o ofício de tektón, de
artesão, que aprendeu na oficina de José (cfr. É Cristo que passa,
n. 55). Para explicar o sentido cristão do trabalho como caminho de
santificação no meio do mundo, costumava propor o exemplo dos primeiros
cristãos: seguindo os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, realizavam todos
os tipos de atividades honestas e santificáveis, transformando com a caridade
de Cristo a sociedade na qual viviam e tornando-a mais humana (cfr. Entrevistas,
n. 24; Sulco n.os 320, 490).
Enquanto o período medieval não elaborou uma
“espiritualidade do trabalho” propriamente dita, a modernidade tende a
apresentar o homem em oposição a Deus, exaltando sua razão e sua capacidade
técnica como fundamentos de uma dignidade e autonomia contrapostas à autoridade
do Criador. Nenhuma destas etapas históricas, com poucas exceções, ofereceu uma
estrutura teológica ou espiritual que enfatizasse o ser humano como colaborador
do poder criador de Deus; alguém que, com seu trabalho, participa em seu projeto
para o mundo. São Josemaria está, no entanto, persuadido de que a nova fundação
que Deus lhe pede para promover na Igreja implica precisamente a difusão desta
nova visão do trabalho; ou melhor, a recuperação de uma perspectiva que a
passagem dos séculos tinha feito cair no esquecimento.
“O trabalho é participação na obra criadora, é vinculo de
união com os outros homens e meio para contribuir com o progresso de toda a
humanidade, é fonte de recursos para sustentar a própria família, é ocasião de
aperfeiçoamento pessoal, é – importa muito dizê-lo claramente – meio e caminho
de santidade, realidade santificável e santificadora” (Carta 14,
n.4).
A dignidade do trabalho está ancorada no mandato dado por
Deus a nossos primeiros pais e, na economia do Novo Testamento, no trabalho
assumido pelo Verbo encarnado no contexto da vida cotidiana da Sagrada Família
de Nazaré. Voltar a ressaltar esta perspectiva faz parte integrante da missão
que São Josemaria atribui à nova fundação:
“O Senhor suscitou o Opus Dei em 1928 para ajudar a
recordar aos cristãos que, como conta o livro do Gênesis, Deus criou o homem
para trabalhar. Viemos chamar de novo a atenção para o exemplo de Jesus que,
durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício.
Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que
desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em
trabalho redentor, em caminho de salvação” (Entrevistas, n. 55).
[1] J.L.
Illanes, La Santificación del trabajo, (1980); “Trabajo”
(2013) em Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer;
Ante Dios y en el mundo. Apuntes para una teología del trabajo (1997);
P. Rodríguez Vocación, trabajo, contemplación (1986); E.
Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza
de San Josemaría, vol III, cap. 7 (2013); G. Faro, Il lavoro
nell’insegnamento del Beato Josemaría Escrivá (2000); A.
Aranda, Identidad cristiana y configuración del mundo. La fuerza configuradora
de la secularidad y del trabajo santificado” (2002), emLa grandeza della
vita quotidiana, vol. 1.
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