Translate

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo (Parte 1/2)

Identidade e Missão (Opus Dei)

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo

Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério. Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.

01/06/2025

A partir da metade do século XIX, o tema do trabalho e de suas dinâmicas ganhou profundidade na reflexão teológica. É a época da revolução industrial e das grandes mudanças socioculturais. Surgem tensões entre classes sociais. A vida familiar e comunitária experimenta novas formas de organização. Com a publicação da encíclica Rerum novarum (1891) de Leão XIII, primeira de uma longa tradição de encíclicas sociais, a Doutrina Social da Igreja se desenvolveu gradualmente. Nas primeiras décadas do século XX nasce a teologia das realidades terrenas, que em breve se verá relacionada com uma incipiente teologia do laicato. Nesses anos, antes e durante o Concílio Vaticano II, se experimentam novas formas de ação pastoral, destinadas a difundir o Evangelho nas novas situações sociais e trabalhistas.

A questão do valor do trabalho e o papel das atividades humanas na edificação do Reino de Deus começam a fazer parte dos estudos do Concílio e são objeto de um novo e profundo desenvolvimento na constituição Gaudium et spes, especialmente os números 33-39. Os Padres conciliares não têm medo de fazer perguntas exigentes:

“O homem sempre procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira , e continuamente o aumenta [...]. Muitas são as questões que se levantam entre os homens, perante este imenso empreendimento, que já atingiu o inteiro gênero humano. Qual o sentido e valor desta atividade? Como se devem usar estes bens? Para que fim tendem os esforços dos indivíduos e das sociedades??” (Gaudium et spes, n. 33).

Em meados do século XX surgem diversas obras teológicas que abordam essas questões. Ao refletir sobre o sentido do trabalho humano, vários autores tentam esclarecer o que a perspectiva cristã, iluminada pelo mistério pascal de Jesus Cristo, traz para o dinamismo do progresso social, técnico e científico. Onde deve situar-se a esperança cristã: na construção do Reino de Cristo já presente na história, em seu cumprimento futuro no final dos tempos ou em algum ponto intermediário? De onde emana a luz que orienta o sentido das atividades humanas: do mistério da Encarnação ou de sua orientação escatológica rumo à Jerusalém celeste?

Muitos teólogos trouxeram suas próprias reflexões a este debate. Entre eles destacam-se Gustave Thils, com Théologie des réalités terrestres [Teologia das realidades terrenas] (1946); Marie-Dominique Chenu, Pour une théologie du travail [Para uma teologia do trabalho] (1955); Alfons Auer, Christsein im Beruf [Ser cristão no trabalho] (1966); Johann Baptist Metz, Zur Theologie der Welt [Sobre a teologia do mundo] (1968); e Juan Alfaro, Hacia una teología del progreso humano [Em direção a uma teologia do progresso humano] (1969). Todos coincidem em ressaltar que a atividade humana no mundo tem uma dimensão espiritual e que, tendo sido criados à imagem e semelhança de Deus, o homem e a mulher cooperam ativa e livremente em seu plano sobre a criação.

Nas obras filosóficas e poéticas de Karol Wojtyla, como depois no magistério pontifício de São João Paulo II, o trabalho humano ocupa um lugar central. O professor de Ética de Lublin desenvolve a dimensão imanente do trabalho no sujeito, ou seja, o que traz dignidade à pessoa e à formação de sua identidade. Em sua obra poética, Wojtyla enfatiza que a fadiga inerente ao trabalho se traduz em generosidade e afeto para aqueles que dele se beneficiam, revelando assim um compromisso de amor. A grandeza do trabalho material, não está, portanto, no produto final e sim no sujeito que o realiza. O mistério do Verbo encarnado fundamenta tanto a dignidade da pessoa que trabalha, quanto a dignidade da matéria que o trabalho transforma. Muitos elementos da “teologia do trabalho” de Karol Wojtyla confluirão posteriormente na encíclica Laborem exercens (1981), o documento magisterial mais extenso e profundo até agora sobre o significado humano e cristão do trabalho.

Ao longo do tempo, o magistério da Igreja acompanhou e continua acompanhando as questões que surgem do progresso social e técnico pois a sociedade humana e as dinâmicas do trabalho evoluem com rapidez. O extraordinário progresso do homem, tanto no conhecimento da realidade como em sua capacidade de transformá-la, traz novas perspectivas, mas também novos desafios que requerem uma orientação moral.

Uma dignidade ancorada na Escritura

Diversos autores analisaram os ensinamentos de São Josemaria sobre o trabalho, contextualizando-os no contexto teológico e social de sua época[1]. Seus escritos não entraram em debate com a teologia do seu tempo, nem a proposta era desenvolver o magistério do Concílio Vaticano II. No entanto, o fundador do Opus Dei transmitiu uma visão específica do trabalho que merece ser estudada com atenção. A luz fundacional que recebeu de Deus levou-o a uma compreensão renovada da mensagem bíblica sobre a atividade humana no mundo e proporcionou-lhe uma compreensão nova e mais profunda da lógica da Encarnação.

O fundador do Opus Dei comentou extensamente a presença do trabalho humano na Sagrada Escritura, especialmente no livro do Gênesis no contexto da criação do homem e da mulher e em referência ao mandato recebido de Deus de cultivar e povoar a terra (cfr. Amigos de Deus n. 57; É Cristo que passa, n. 47). O mundo, a terra e a matéria são realidades boas porque saíram das mãos de Deus e o ser humano é chamado a atuar de acordo com os fins dos planos divinos (cfr. É Cristo que passa, n. 112; Entrevistas, n. 114). Da mesma forma, São Josemaria recorreu frequentemente aos livros sapienciais especialmente os que louvam as virtudes humanas, o trabalho bem feito e a sábia administração do mundo recebido de Deus.

Na economia do Novo Testamente, caracterizada pela radical novidade da Encarnação do Verbo, São Josemaria ressaltou muitas vezes que Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ao assumir a natureza humana, assumiu também o trabalho, exercendo o ofício de tektón, de artesão, que aprendeu na oficina de José (cfr. É Cristo que passa, n. 55). Para explicar o sentido cristão do trabalho como caminho de santificação no meio do mundo, costumava propor o exemplo dos primeiros cristãos: seguindo os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, realizavam todos os tipos de atividades honestas e santificáveis, transformando com a caridade de Cristo a sociedade na qual viviam e tornando-a mais humana (cfr. Entrevistas, n. 24; Sulco n.os 320, 490).

Enquanto o período medieval não elaborou uma “espiritualidade do trabalho” propriamente dita, a modernidade tende a apresentar o homem em oposição a Deus, exaltando sua razão e sua capacidade técnica como fundamentos de uma dignidade e autonomia contrapostas à autoridade do Criador. Nenhuma destas etapas históricas, com poucas exceções, ofereceu uma estrutura teológica ou espiritual que enfatizasse o ser humano como colaborador do poder criador de Deus; alguém que, com seu trabalho, participa em seu projeto para o mundo. São Josemaria está, no entanto, persuadido de que a nova fundação que Deus lhe pede para promover na Igreja implica precisamente a difusão desta nova visão do trabalho; ou melhor, a recuperação de uma perspectiva que a passagem dos séculos tinha feito cair no esquecimento.

“O trabalho é participação na obra criadora, é vinculo de união com os outros homens e meio para contribuir com o progresso de toda a humanidade, é fonte de recursos para sustentar a própria família, é ocasião de aperfeiçoamento pessoal, é – importa muito dizê-lo claramente – meio e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora” (Carta 14, n.4).

A dignidade do trabalho está ancorada no mandato dado por Deus a nossos primeiros pais e, na economia do Novo Testamento, no trabalho assumido pelo Verbo encarnado no contexto da vida cotidiana da Sagrada Família de Nazaré. Voltar a ressaltar esta perspectiva faz parte integrante da missão que São Josemaria atribui à nova fundação:

“O Senhor suscitou o Opus Dei em 1928 para ajudar a recordar aos cristãos que, como conta o livro do Gênesis, Deus criou o homem para trabalhar. Viemos chamar de novo a atenção para o exemplo de Jesus que, durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício. Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação” (Entrevistas, n. 55).


[1] J.L. Illanes, La Santificación del trabajo, (1980); “Trabajo” (2013) em Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer; Ante Dios y en el mundo. Apuntes para una teología del trabajo (1997); P. Rodríguez Vocación, trabajo, contemplación (1986); E. Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, vol III, cap. 7 (2013); G. Faro, Il lavoro nell’insegnamento del Beato Josemaría Escrivá (2000); A. Aranda, Identidad cristiana y configuración del mundo. La fuerza configuradora de la secularidad y del trabajo santificado” (2002), emLa grandeza della vita quotidiana, vol. 1.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-cooperacao-do-trabalho-humano-para-o-projeto-de-deus-sobre-o-mundo/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF