O rei Davi e a Apresentação de Jesus no Templo, portal maior da Catedral de Fidenza (Parma) [© Foto Scala, Firenze] | 30Giorni
Arquivo 30Dias,
número 05 - 2010
A grande concepção pelagiana: o cristianismo é uma educação
“É evidente que Jonas simpatiza com a concepção de Pelágio,
pois sente-o mais próximo do estoicismo e de um certo tipo de judaísmo. De
fato, depois de ter dito que para Pelágio a graça de Cristo consiste em
‘estímulos para a vontade, não em auxílio ativo’ e que ‘não são uma transformação do
homem, mas uma educação do homem’, exclama admirado: ‘Essa é a
grande concepção pelagiana’. Esse é o ponto crucial do livro e do pensamento de
Jonas”. Resenha do texto inédito de Hans Jonas, Problemas de liberdade,
escrita por Nello Cipriani.
de Nello Cipriani
Que dizer de tudo isso? A primeira coisa que devemos
observar é que a leitura que Jonas fez de Agostinho é inexata em muitos pontos.
Ele considera que Agostinho, num primeiro momento, no período antimaniqueísta,
teria reconhecido no homem sob a lei, no judeu, uma vontade boa,
entendida como amor à justiça, mas que depois, sob pressão dos pelagianos,
teria negado tal vontade ao homem, depositando-a na graça; assim, ficaria
explicado por que, nas palavras de São Paulo: “A lei é espiritual; eu, porém,
sou carnal” (Rm 7, 14), Agostinho já não vê apenas o homem sob a
lei, o judeu, mas também o homem sob a graça, o cristão e o próprio apóstolo.
Contudo, como eu dizia, há muitas inexatidões nessas afirmações.
Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que o homem sob a lei, tomado em
consideração por Agostinho, não é propriamente o judeu, em contraposição ao
cristão, que seria o homem sob a graça. Para Agostinho, todo homem carnal está
sob a lei, e o cristão, ainda que tenha sido tornado um ser espiritual no batismo,
pelo dom do Espírito, permanece “sob a lei quando se abstém da obra do pecado
por temor ao castigo com que a lei o ameaça, e não por amor à justiça, não
estando ainda livre e desapegado da vontade de pecar” (De natura et gratia
contra Pelagium 57, 67). Agostinho dá uma confirmação desse seu modo
de pensar na exortação feita aos monges de seu mosteiro a que observem a regra
“não como servos sob a lei, mas como homens livres, sob a graça” (Regula ad
servos Dei 8, 48). Portanto, os cristãos também podem estar sob a lei,
mesmo tendo sido chamados a passar para o regime da graça, a crescer no amor e
na liberdade interior, com a ajuda da graça de Deus e o esforço pessoal. Além
do mais, Agostinho sempre reconheceu a existência de homens espirituais no
antigo Israel, como “os patriarcas, os profetas e todos aqueles israelitas por
obra dos quais o Espírito Santo nos concedeu o auxílio e o conforto das
Escrituras” ( De doctrina christiana III, 9, 13). Sendo assim,
no pensamento de Agostinho, não é possível identificar o homem sob a lei com o
judeu e o homem sob a graça com o cristão.
Em segundo lugar, a vontade boa, que no período do presbiterato
Agostinho reconhecia como faculdade do homem sob a lei, do homem carnal, não
consiste no amor a Deus e à justiça, como Jonas procura mostrar várias vezes,
forçando o pensamento do autor cristão (cf. pp. 171-173 e p. 182); consiste,
isto sim, em querer evitar o pecado ou observar a lei por temor ao castigo,
atitude que não suprime a vontade de pecar. Isso fica claro, ainda, quando
constatamos que já no período antimaniqueísta, antes de se tornar bispo,
Agostinho atribuía à graça o amor a Deus e à justiça. De fato, escrevia ele no
comentário a Rm 5,3: o Apóstolo “diz que essa caridade [o amor a Deus], nós a
temos por dádiva do Espírito, e demonstra que todos os bens que poderíamos
atribuir a nós mesmos, nós os devemos atribuir a Deus, que mediante o Espírito
Santo dignou-se conceder-nos a graça” ( Expositio quarumdam
propositionum ex Epistola ad Romanos 20). Na revisão de suas obras,
Agostinho observa que mesmo “nos livros Sobre o livre-arbítrio, que
não foram escritos contra os pelagianos, que ainda nem existiam, mas contra os
maniqueístas, não me calei totalmente a respeito da graça de Deus, que os
pelagianos procuram eliminar com execrável impiedade” (Retractationes I,
9, 4).
Em terceiro lugar, a mudança no pensamento agostiniano acerca da origem
da vontade boa movida pelo temor aos castigos, contrariamente
ao que Jonas afirma, não ocorre em meio à polêmica com Pelágio e sob pressão
dela, mas muitos anos antes. Já no início do episcopado (396-397), respondendo
a certas questões que lhe foram dirigidas por Simpliciano, mestre de Ambrósio e
sucessor dele na cátedra de Milão, Agostinho, após retomar as palavras de São
Paulo: “Realizai a vossa salvação, com temor e tremor. Na verdade, é Deus que
produz em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado” ( Fl 2,
12-13), comenta: “Paulo, aqui, mostra claramente que a própria boa vontade
também é suscitada em nós por Deus”, e pouco depois acrescenta: “Se
perguntarmos se a boa vontade é dom de Deus, acharemos estranho que alguém ouse
negá-lo” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum, I, 2, 12). Na
realidade, bem antes do advento de Pelágio, Agostinho já se convencera de que a
boa vontade é ao mesmo tempo obra de Deus e obra do homem, pois “de um modo
Deus concede o querer, de outro aquilo que pedimos. Quis Deus que o querer
fosse obra sua e nossa: sua, chamando; nossa, seguindo o chamado” (ibid. I, 2,
10).
Enfim, é verdade que só durante a polêmica com os pelagianos Agostinho admitiu
que no ‘eu’ de Rm 7, 14 é possível entender também o homem sob
a graça, portanto o próprio São Paulo, mas, como ele mesmo afirma, deu esse
passo não porque obrigado pelos argumentos pelagianos, mas porque achou que
outros respeitados comentaristas da Escritura, em particular Cipriano e
Ambrósio, já tinham feito essa exegese (Retractationes, I, 23, 1). Por
outro lado, repito, a mudança em seu pensamento não consistiu em tirar a boa
vontade do homem sob a lei, boa vontade que, já havia tempo, reivindicara à
graça de Deus. Agostinho simplesmente se deu conta de que todos os homens, até
os mais espirituais, como certamente era São Paulo, enquanto ainda vivem no
corpo mortal não chegaram à paz perfeita, e necessariamente estão sujeitos à
tentação. O próprio Apóstolo dá testemunho disso quando escreve que ainda não
chegou à perfeição e que avança para o que está adiante ( Fl 3,
12-13), mas sobretudo quanto confessa que “para que a grandeza das revelações
não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de
Satanás, para me esbofetear, a fim de que eu não me torne orgulhoso. A esse
respeito, roguei três vezes ao Senhor que ficasse longe de mim. Mas o Senhor
disse-me: ‘Basta-te a minha graça; pois é na fraqueza que a força se realiza
plenamente’” (2Cor 12, 7-9).
“Agostinho sempre
reconheceu a existência de homens espirituais no antigo Israel, como ‘os
patriarcas, os profetas e todos aqueles israelitas por obra dos quais o
Espírito Santo nos concedeu o auxílio e o conforto das Escrituras’ (De doctrina
christiana III, 9, 13). Sendo assim, no pensamento de Agostinho, não é possível
identificar o homem sob a lei com o judeu e o homem sob a graça com o cristão”
Como podemos constatar, a reconstrução do pensamento
agostiniano feita por Jonas deixa muito a desejar. Há diversas imprecisões,
sobre pontos que não são de pouca importância. Seja como for, suas conferências
suscitam algumas questões, às quais vale a pena dar uma resposta. Em primeiro
lugar: por que Santo Agostinho chegou a defender a tese de que os primeiros
passos na fé (o initium fidei) e a boa vontade são também obra da
misericórdia de Deus, além de esforço do homem, se, anteriormente, acompanhando
outros autores eclesiásticos, assinalara esses fatores como dependentes apenas
da vontade do homem? Jonas, como eu já disse, repete mais de uma vez que a
mudança no pensamento do bispo de Hipona se deve à pressão pelagiana (p. 180),
chegando a falar mesmo de “uma armadilha pelagiana”, em que Agostinho teria
caído (p. 182). Ao contrário, vimos que a mudança ocorrera muito tempo antes
que Pelágio aparecesse em cena. Na realidade, a razão da mudança é indicada
pelo próprio Agostinho na resposta a Simpliciano. Na exegese da Carta aos
Romanos, escreve: “O que mantém a intenção do Apóstolo e de todos os
justificados, por intermédio dos quais nos foi mostrado o significado da graça,
é o fato de que ‘quem se gloria, glorie-se no Senhor’ ( 1Cor 1,
31)” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum I, 2, 21).
Comentando essas palavras do Apóstolo, explica Agostinho numa de suas últimas
obras, São Cipriano, bispo de Cartago e mártir, entendeu-as no sentido de que
“não nos devemos gloriar de nada, pois nada é nosso” (De dono perseverantiae 14,
36). Foi sobretudo essa exegese de Cipriano das palavras de São Paulo,
portanto, que iluminou e levou Agostinho a negar a autonomia da vontade humana
em relação ao bem. Ele compreendeu que todos os bens que o homem possui e todo
o bem que o homem realiza vêm de Deus, ainda que de maneiras diferentes.
Enquanto Pelágio exortava a jovem e nobre Demetríade a sentir-se orgulhosa de
suas virtudes, pois estas são bens que pertencem apenas ao homem, Agostinho
repetia com São Paulo: “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” ( 1Cor 1,
31). O homem não se pode gloriar de nada, não pode alegar nenhum mérito diante
de Deus; deve ser sempre grato a Deus, “doador de todo bem” (Regula ad
servos Dei 8, 49). Isso não significa que o homem nada faça: sem sua
vontade, não pode crer, não pode amar nem muito menos realizar nenhuma boa
obra. Mas a vontade humana não se dirige ao bem, se não “é preparada pelo
Senhor” (Pr 8, 35, segundo a Setenta).
Jonas reconhece que a questão de que trata Agostinho pertence à fé e não à
filosofia. Aliás, avança demais nessa linha, quando afirma categoricamente que
“a atitude do filósofo deve ser a de não crer” (p. 198). Ora, não compreendemos
por que o filósofo não deveria crer, como se a fé não tivesse suas razões. O
filósofo também pode razoavelmente crer e buscar compreender, com a razão, o
conteúdo da fé. Era justamente esse o princípio da reflexão agostiniana: crê
para compreenderes ( crede ut intellegas). Todavia, concordo com
Jonas quando ele acrescenta que “não é possível dar [...] um significado
fenomenológico à afirmação: ‘Meu estado presente é caracterizado pelo amor de
Deus derramado em meu coração pelo Espírito Santo’” (ibid.). Todavia,
justamente porque nos encontramos diante de problemas de fé, a meu ver ele
deveria ter investigado mais a fundo o pensamento de Agostinho, tomando por
base o ensinamento bíblico e a tradição cristã. É evidente, porém, que Jonas
simpatiza com a concepção de Pelágio, pois sente-o mais próximo do estoicismo e
de um certo tipo de judaísmo. De fato, depois de ter dito que para Pelágio a
graça de Cristo consiste em “estímulos para a vontade, não em auxílio ativo” e
que “não são uma transformação do homem, mas uma educação do
homem” (p. 204), exclama admirado: “Essa é a grande concepção pelagiana”
(ibid.).
Fonte: https://www.30giorni.it/