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sábado, 25 de outubro de 2025

O Papa: uma Igreja sinodal remove os obstáculos culturais que são fonte de discriminação

Jubileu das Equipes Sinodais, 24/10/2025 - Papa Leão XIV (Vatican Media)

Na Sala Paulo VI, Leão XIV manteve uma conversa improvisada com os participantes do Jubileu das equipes sinodais e dos órgãos de participação, respondendo a sete perguntas de delegados de todos os continentes. Ele exaltou a vocação missionária da Igreja, que deve "escutar o clamor da terra" e trabalhar para garantir que os carismas de todos sejam respeitados. Ele encorajou a ser "uma ponte entre culturas e religiões", construtores de paz e comunhão. Temos muito a aprender com a Ásia e a África.

https://youtu.be/CG6jOa40FM4

Antonella Palermo - Vatican News

Aprender. Esta foi uma das palavras mais recorrentes nas respostas que Leão XIV deu esta tarde de sexta-feira, 24 de outubro, aos representantes das equipes sinodais e órgãos de participação, que atualmente celebram seu jubileu. Eles representaram sete regiões geográficas, que apresentaram ao Papa seu trabalho de implementação da sinodalidade em seus respectivos contextos eclesiais. Moderou este momento de diálogo entre os delegados e Leão XIV, na Sala Paulo VI, a irmã Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo dos Bispos, organismo que este ano celebrou seu sexagésimo aniversário. Recordando a afirmação de Paulo VI de que a primazia e a colegialidade não podem ser vividas sem a sinodalidade com todos os batizados, a religiosa iniciou o encontro de modo que seja restituída uma síntese dos frutos do processo sinodal em nível continental (que se realizou de outubro de 2021 a outubro de 2024). Ao lado do Papa estavam o cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, e dom Luis Marín De San Martín, O.S.A., subsecretário da Secretaria Geral do Sínodo.

A Igreja na África tem muito a oferecer a todos

Um panorama do caminho sinodal na África foi oferecido pelo padre Rafael Simbine Junior, sacerdote da Diocese de Xai-Xai, em Moçambique, e secretário-geral do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar (SCEAM-SECAM). Um percurso que deu grandes passos, afirmou, e que se abriu em todas as paróquias porque "a sinodalidade não é uma campanha com prazo, mas um modo de ser Igreja que deve ser aprendido, praticado e transmitido". Os espaços de encontro com outros movimentos religiosos e até mesmo na esfera pública se multiplicaram, porque o contato com a sociedade, junto com a escuta e a formação, é o princípio norteador: "É o movimento de saída de uma Igreja que escuta. Discernimos juntos e depois caminhamos com a sociedade para o bem comum". Ele enfatizou ao Papa que "o dom da África para o caminho sinodal é um sentido vivo de família, resiliência e esperança". A pergunta feita ao Pontífice foi: como as Igrejas locais, particularmente na África, podem realizar o discernimento que não seja condicionado pela imposição de "modelos uniformes" que correm o risco de enfraquecer sua iniciativa?

A mesa do Papa com os delegados e os líderes da secretaria do Sínodo dos Bispos, na Sala Paulo VI   (@Vatican Media)

Desde o início, o Papa retomou a palavra "missão", inspirado em sua própria experiência como missionário. Ele recordou a ênfase do Papa Francisco na importância, no processo sinodal, de levar o Evangelho a todas as partes do mundo, até os confins da Terra. "Acredito que a Igreja na África tem muito a oferecer a todos nós", explicou o Papa, especialmente porque "a Igreja pode ser uma ponte". Ele prosseguiu, destacando como, graças aos jovens e às famílias, ela pode ser "um instrumento para construir a paz e oferecer modelos tanto dentro da África, entre os países africanos, mas também entre os diferentes países e continentes do mundo". Em seguida, ele nos convidou a sermos claros: "Não buscamos um modelo uniforme, e não apresentaremos um modelo padrão que todos, em todos os países, dirão: 'É assim que se faz'. Trata-se, antes, de uma conversão ao Espírito de ser Igreja e missionários e de construir, neste sentido, a família de Deus". A seguir, acrescentou:

Especialmente em culturas onde nós, cristãos, não somos a maioria, muitas vezes com membros de outras religiões, tanto regionais quanto globais, como o islamismo, os desafios existentes também são grandes oportunidades. Creio que o que a maioria de nós vivemos nos últimos anos, em preparação para o Sínodo e no início deste novo processo de implementação, é precisamente que a sinodalidade, para usar suas palavras, não é uma campanha. É um modo de ser e um modo de ser Igreja. É uma maneira de promover uma atitude que começa com o aprendizado da escuta recíproca. E o dom da escuta é algo que creio que todos reconhecemos, mas que muitas vezes se perdeu em alguns setores da Igreja, e algo cujo valor acredito que devemos continuar a descobrir, começando pela escuta da Palavra de Deus, pela escuta recíproca, pela escuta da sabedoria que encontramos nos homens e mulheres, nos membros da Igreja e naqueles que buscam, mas que talvez ainda não são e talvez nunca serão membros da Igreja, mas que estão realmente buscando a verdade.

Jubileu das Equipes Sinodais, 24/10/2025 - Papa Leão XIV

https://youtu.be/OQi0QbukNx8

O Papa com os participantes do Jubileu das equipes sinodais e dos órgãos de participação

Escutar o grito de quem sofre

Em viagem para Fiji, Susan Sela, representando a Federação das Conferências Episcopais Católicas da Oceania (FCBCO) e diretora do Instituto de Educação Técnica e Continuada do Pacífico no arquipélago, relatou o trabalho da Igreja no continente, que, segundo ela, viaja em velocidades diferentes, em meio à fragilidade ecológica e à riqueza cultural. Aqui, o caminho sinodal é entendido principalmente como "conversão espiritual". Austrália, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné e Ilhas Salomão, nações do Pacífico e Igrejas Católicas Orientais, formam uma rede na qual a sinodalidade também se torna também aceitação da cultura indígena, inclusão de pessoas com deficiência e integração cultural. Duas experiências dignas de nota: em Fiji, uma equipe de 57 membros encarna a Igreja como uma "tenda ampliada", garantindo que as vozes das periferias sejam centrais; na Austrália, o impulso pós-Concílio Plenário deu origem a sínodos diocesanos desde fevereiro de 2023, apoiados pela coordenação nacional. Aqui, a pergunta ao Papa diz respeito à organização eclesial e ao possível crescimento futuro do papel dos agrupamentos (no âmbito das Conferências Episcopais Continentais, Conferências Episcopais nacionais ou regionais e Províncias Eclesiásticas).

A Sala Paulo VI durante o encontro desta tarde entre o Papa e as equipes sinodais e órgãos de participação   (@Vatican Media)

A resposta é "sim". Ele espera que as Igrejas cresçam na comunhão por meio do exercício da sinodalidade. Ele se lembrou de ter encontrado recentemente um bispo desta mesma região, muito preocupado com as consequências das mudanças climáticas, que podem ameaçar a própria sobrevivência da região.

Apreciamos o luxo de sentar em espaços muito confortáveis ​​e refletir sobre coisas que às vezes podem parecer muito teóricas. Mas quando ouvimos o grito urgente de pessoas em diferentes partes do mundo, seja devido à pobreza ou à injustiça, ou por causa das mudanças climáticas ou talvez por uma série de outras causas, percebemos que não estamos apenas refletindo sobre questões teóricas e que uma resposta urgente é necessária. Este é um caso específico em que espero que todos levemos muito a sério o apelo que o Papa Francisco fez a toda a Igreja e ao mundo há dez anos na Laudato si', dizendo que isso também faz parte da nossa resposta de fé ao que está acontecendo em nosso mundo. Não podemos ser passivos. Portanto, espero fervorosamente que, por meio das conferências episcopais, das províncias eclesiásticas e das conferências continentais, possamos abordar algumas dessas questões muito específicas e fazer a diferença. Acredito que a Igreja tem voz, e devemos ter a coragem de levantar nossa voz para mudar o mundo, para torná-lo um lugar melhor.

Outra imagem do Sala Paulo VI   (@Vatican Media)

Sem formação sempre haverá resistência e medo

Da América do Norte, dom Alain Faubert, bispo de Valleyfield (Canadá), membro do Conselho Ordinário do Sínodo, apresenta um continente multiforme que ele chama de "uma tapeçaria eclesial", na qual a pobreza e a realidade das comunidades migrantes impactam as Igrejas locais nos Estados Unidos e no Canadá. Embora essa diversidade seja uma oportunidade de crescimento, permanece a necessidade contínua de promover a verdadeira comunhão e acolhimento para quem chega de outros países. É necessário um maior comprometimento para estabelecer uma comunicação eclesial colaborativa mais sólida com a América Latina, particularmente com o México. Alguns, observou o prelado, temem uma incompreensão da sinodalidade que possa exacerbar as tensões existentes. Um comitê nacional ad hoc foi criado para acompanhar, apoiar e coordenar os esforços para implementar a sinodalidade em toda a Igreja no Canadá. Leão XIV foi questionado sobre a preocupação daquele segmento de bispos e clero que olha a sinodalidade como uma fonte de enfraquecimento da autoridade dos pastores. Pede-se orientação para promover melhor a corresponsabilidade, a prestação de contas e a transparência nas dioceses e paróquias.

O Papa Leão refletiu sobre o Canadá e os Estados Unidos, que ele vê como dois países que já foram aliados, mas agora estão em processo de separação. Em relação a essa tendência, ele enfatizou a importância da sinodalidade, que, segundo ele, deve ser implementada concretamente. Ele convidou todos a refletirem sobre a questão, "os sacerdotes, ainda mais do que os bispos", a abrirem seus corações e participarem desses processos. Ele acrescentou que a resistência muitas vezes decorre do medo ou da falta de conhecimento e, por isso, enfatizou a educação, sem a qual "haverá resistência e incompreensão". Em seguida, o Papa retornou à questão do "ritmo":

Precisamos entender que nem todos corremos na mesma velocidade e que, às vezes, precisamos ser pacientes uns com os outros. E, em vez de ter poucas pessoas que correm na frente e deixando muitos outros para trás, o que poderia até causar uma fratura na experiência eclesial, precisamos buscar maneiras, às vezes muito concretas, de entender o que está acontecendo em cada lugar, quais são as resistências ou de onde elas vêm, e o que podemos fazer para fomentar cada vez mais a experiência de comunhão nesta Igreja, que é sinodal. Portanto, acredito que na realidade concreta, compreendida dentro da cultura norte americana, dos Estados Unidos, onde muitas estruturas existentes têm, de fato, grande potencial para serem sinodais, e encontrar maneiras de continuar transformando-as em experiências mais inclusivas, seja nos conselhos pastorais ou outras estruturas diocesanas ou encontro, a inclusão de pessoas — homens e mulheres, leigos e clérigos, religiosos, etc, que todos possam  participar e experimentar um forte senso de pertença, liderança e responsabilidade na vida da Igreja.

Redescobrir o entusiasmo da fé para levar reconciliação

O Conselho dos Patriarcas Católicos do Oriente (CPCO) foi representado por dom Mounir Khairallah, bispo de Batrum, presidente do Comitê Patriarcal Maronita para o Acompanhamento do Sínodo. Sua mensagem também pretende ser um clamor por justiça "em nome de nossos povos oprimidos e sem voz, mensageiros de esperança e construtores de paz". No âmbito da Igreja Maronita, a sinodalidade foi proposta como tema para a formação permanente dos sacerdotes e, nas diversas dioceses do Líbano, país que o Papa visitará no início de novembro, foram organizadas sessões para bispos, párocos, delegados de dioceses e ordens religiosas e movimentos eclesiais, enfatizando o valor do diálogo. Neste caso, a pergunta feita ao Sucessor de Pedro foi: quais mudanças "urgentes" as Igrejas Orientais são chamadas a colocar a sinodalidade em prática também no âmbito dos seminários, noviciados e formação dos leigos?

Duas salvas de palmas da assembleia sublinharam as palavras do Papa em resposta ao testemunho de um lugar que hoje, ressaltou Leão XIV, "precisa de sinais de esperança". Ele indicou na busca do dom do entusiasmo, nas Igrejas do Oriente Médio e também entre os cristãos da diáspora, um grande e essencial sinal de esperança. Na terra onde Jesus nasceu, onde viveu, onde foi martirizado e onde ressuscitou dos mortos, este, disse Leão XIV, é "o sinal supremo de toda a nossa esperança". E, com base nisso, ele nos convidou "a ser verdadeiros promotores do perdão e da reconciliação, tão necessários, a aprender que, perdoando e trabalhando pela reconciliação, podemos verdadeiramente construir uma maior unidade entre todos os povos". Seguiu-se um novo apelo à unidade:

Como Igreja, devemos estar unidos e nos unir para sermos esse autêntico sinal de esperança, mas também uma expressão muito real da caridade cristã, do amor fraterno e do cuidado mútuo, especialmente para com aqueles que perderam tudo devido à destruição da guerra, devido à existência do ódio entre nós. Acredito que os desafios que as Igrejas Orientais continuaram a enfrentar e continuam a enfrentar no Oriente Médio são algo que nós, ocidentais, precisamos entender melhor, por assim dizer, e que, observando os processos sinodais, devemos entender que também existem diferenças significativas entre a Igreja Latina e as Igrejas Orientais. Devemos respeitar essas diferenças. Acredito que este é o primeiro passo em qualquer comunidade, em qualquer organização humana: se não nos respeitarmos, nunca começaremos a nos conhecer e a nos aproximar.

A mesa do Papa durante o encontro com as equipes sinodais   (@Vatican Media)

Construir percursos de inclusão

O relatório sobre o progresso da América Latina e do Caribe foi confiado a Nicolás Meyer, membro da equipe sinodal do CELAM e coordenador da Conferência Regional da Cáritas. Todos os países desta região estão trabalhando com grupos ou comissões episcopais nacionais, e alguns já identificaram caminhos imediatos: da reforma da estrutura das Conferências Episcopais ao aprimoramento dos processos de escuta, da formação de agentes pastorais à renovação dos processos de evangelização. O Grupo de Reflexão Teológica do CELAM está trabalhando em um livro sobre a "sinodalização" das estruturas eclesiais, enquanto a oferta de cursos e catequese on-line foi ampliada. Também foi lançada a iniciativa "Juntos", com o objetivo de desenvolver uma rede de redes teológico-pastorais na região pan-americana que integre múltiplos esforços em direção à sinodalidade. Um grupo de trabalho foi encarregado de explorar as questões de transparência, prestação de contas e avaliação em todos os processos pastorais, adotando-as como prática e estilo eclesiais — um tema ainda pouco desenvolvido no continente. Um site para reunir as experiências de uma Igreja que cresce em comunhão e participação. Aqui, o Papa foi convidado a responder como o processo sinodal pode encorajar e inspirar sociedades mais inclusivas, justas e construtoras da paz.

O Pontífice expressou gratidão por tudo o que está sendo realizado na América Latina, onde ele aprendeu muito em sua missão. Exaltou o espírito de comunhão que tradicionalmente faz parte da própria cultura desses povos. Eles nos ensinam a praticar a fraternidade, observou o Papa, e também a continuar um caminho autenticamente sinodal que nasce da escuta da Palavra. Em seguida, enfatizou o entusiasmo, ingrediente necessário que leva ao contágio da fé para que "outros queiram se unir a nós e ser construtores de paz e comunhão". E acrescentou:

Raramente me inspirei em um processo; sinto-me inspirado por pessoas que vivem sua fé com entusiasmo. E viver esse espírito — e estamos falando de espiritualidade — de sinodalidade, mas é a espiritualidade do Evangelho, de comunhão, de querer ser Igreja. Esses são aspectos que podem realmente nos inspirar a continuar sendo Igreja e a construir caminhos de inclusão, convidando muitos outros — todos — a nos acompanhar, a caminhar conosco.

A Igreja pode transformar culturas que discriminam as mulheres

Klára Antonia Csiszár, membro da equipe sinodal do Conselho das Conferências Episcopais Europeias (CCEE) e professora de Teologia Pastoral na Universidade Católica de Linz, Áustria, oferece uma perspectiva europeia, com foco tanto na interação entre patrimônio das Igrejas Ortodoxas Orientais, fonte de enriquecimento, e do Ocidente, quanto na questão das mulheres. Nesse sentido, a professora observou uma disparidade de abordagens e sensibilidades, que vão desde uma abertura marcante até formas de resistência, ceticismo ou medo quanto à possibilidade de promover a liderança feminina. Ela explicou, por exemplo, que em regiões pós-comunistas ou novas democracias, os bispos sinceramente engajados em processos sinodais ainda são a exceção, e não a norma; onde, no entanto, existem tradições federais sólidas e governança participativa, caminhos naturais para um estilo de vida sinodal se desenvolveram: cooperação ecumênica, estruturas colaborativas e órgãos consultivos fazem com que a sinodalidade pareça orgânica, não imposta. Csiszár acrescentou que, quando as expectativas são repetidamente frustradas, a resignação se instala. Ela também observou que uma base acadêmica sólida vem de faculdades e universidades teológicas como Leuven, com seu Centro de Modelos de Liderança Sinodal e Consultoria Internacional, e Linz, com seu Departamento de Sinodalidade, que promove pesquisa e formação inovadoras no campo da sinodalidade. As perguntas feitas foram: Que esperanças as mulheres podem legitimamente nutrir numa Igreja sinodal? Acredita que uma verdadeira mudança cultural está em andamento na Igreja, para que a igualdade entre mulheres e homens na Igreja possa se tornar uma realidade no vivida?

Aplausos dos participantes do Jubileu das equipes sinodais   (@Vatican Media)

Em sua resposta, o Papa recordou duas lembranças pessoais. A primeira dizia respeito à sua vida em uma família católica, com pais muito ativos na paróquia. Era a década de 1970, e, voltando-se para sua mãe, perguntou-lhe se ela queria ser igual aos homens, ao que ela respondeu, sem brincadeira: "Não, porque já somos melhores!" A outra experiência, do Peru, dizia respeito a uma congregação de religiosas consagradas cujo carisma é trabalhar onde não há sacerdotes. "Elas podem batizar; são testemunhas oficiais em casamentos; fazem um trabalho missionário maravilhoso, que é verdadeiramente um 'testemunho' também para muitos sacerdotes. Essa é a coragem necessária", afirmou Leão, "para anunciar o Evangelho, e são as mulheres que o fazem!" Adiando sua resposta a "perguntas mais difíceis que fazem parte de um grupo de estudo que está sendo apresentado", o Pontífice esclareceu que o problema não é a falta de oportunidades, mas sim a existência de "obstáculos culturais" que efetivamente impedem as mulheres de exercer "o que poderia muito bem ser o seu papel", fazendo-as sentir-se em segunda classe. Ele mencionou os preconceitos e discriminações que ainda existem em alguns países, "que vão claramente contra o Evangelho, e muitas vezes somos impotentes diante dessas realidades". Há muito a ser feito, está convencido o Papa Leão. "Creio que a Igreja já oferece oportunidades para iniciar e continuar esse caminho, e devemos, também aqui, ser corajosos e acompanhar para que, aos poucos, talvez algumas mudanças possam ser introduzidas." Para que, desejou o Papa, "o carisma de cada pessoa seja verdadeiramente respeitado e valorizado".

Há um desafio para a Igreja e para todos nós: ver como podemos promover conjuntamente o respeito pelos direitos de todos; como podemos fomentar uma cultura em que essas coisas se tornem não apenas possíveis, mas uma realidade na coparticipação de todos, cada um segundo sua vocação, onde possam exercer — digamos — um papel de responsabilidade na Igreja. Vimos muitos exemplos práticos. Mas a realidade é que, culturalmente, nem todos — digamos — os países estão no mesmo lugar que a Europa ou os Estados Unidos, e não podemos simplesmente presumir que, ao nomear uma mulher aqui ou ali para isso ou aquilo, ela será respeitada, porque existem fortes diferenças culturais que criam problemas. E, portanto, precisamos falar sobre como a Igreja pode ser uma força de conversão, de transformação das culturas de acordo com os valores do Evangelho. Infelizmente, muitas vezes a maneira como vivemos nossa fé é mais determinada por nossa cultura e menos por nossos valores evangélicos. É aí que todos nós podemos ser uma força, uma inspiração, um convite para que nossas nações, nossas comunidades, nossas culturas reflitam sobre as diferenças que existem, e não apenas entre homem e mulher.

O Papa e o cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos   (@Vatican Media)

Promover a igualdade, a justiça e a partilha

Por fim, o testemunho asiático do padre Clarence Sandanaraj Devadassan, da Malásia, apontou para um caminho sinodal que "encontrou terreno fértil" num continente marcado pelo pluralismo religioso, diversidade cultural e realidades sociopolíticas complexas. Membro da equipe sinodal da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas — criada há meio século — da Arquidiocese de Kuala Lumpur, onde dirige o Centro Católico de Pesquisa, o padre enfatizou que o caminho sinodal encorajou um maior comprometimento com a promoção da harmonia entre os povos e credos, e das mulheres e dos fiéis leigos nos processos de tomada de decisão. Em muitas dioceses, houve um despertar espiritual; as plataformas digitais tornaram-se ferramentas essenciais para consulta e construção de comunidade, especialmente entre os jovens. O padre não escondeu o fato de que alguns sacerdotes percebem a sinodalidade como uma ameaça à autoridade tradicional e apontou que há áreas onde o extremismo religioso ou vínculos políticos limitam as expressões públicas de sinodalidade. As dioceses estão desenvolvendo planos pastorais de longo prazo inspirados em princípios sinodais, como a Missão 2033 e os Peregrinos da Esperança na Índia.

A imagem que Leão XIV ofereceu nesta resposta final foi muito evocativa: "Devemos nos curvar e respeitar o solo sagrado que representa a Ásia". Ele fala do senso de mistério que aqui abre as portas para vários tipos de diálogo inter-religioso, um tesouro no continente com o qual devemos aprender. Ele mencionou o elemento místico e contemplativo, que deve ser continuamente descoberto, disse ele, fascinado por uma Ásia que pode oferecer tanta esperança.

Há, é claro, grandes desafios. As realidades estruturais e econômicas que vocês enfrentam e a dificuldade de até mesmo promover a comunicação em larga escala devido às limitações das Igrejas locais são realidades que acredito que nós também devemos compartilhar. Penso que esse tipo de experiência de uma Igreja sinodal que constrói comunhão deve inspirar em todos nós, por assim dizer, mais generosidade na partilha de recursos, para que possamos talvez alcançar mais igualdade, mais justiça, até mesmo em termos de partilhar com os outros os bens e as bênçãos materiais que tantas Igrejas têm à sua disposição. Obviamente, fazer isso acarreta grandes desafios. É claro que grandes esforços já foram feitos nessa direção, o que deve ser reconhecido. É um processo em andamento.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Charles de Foucauld: A Missão no Deserto de Hoje (Parte 1/2)

Padre Charles de Foucauld em 1902 | 30Giorni

Arquivo 30Dias nº 01/02 - 2005

Charles de Foucauld: A Missão no Deserto de Hoje

Entrevista com o Cardeal Walter Kasper sobre o cristão que, sozinho, no início do século XX, construiu tabernáculos para "transportar" Jesus para o deserto argelino.

por Gianni Valente

No início do século XX, um francês, amante da literatura e da aventura, e renomado explorador, vivenciou uma das aventuras cristãs mais evocativas do século passado. Charles de Foucauld, o monge que construiu sozinho tabernáculos no deserto argelino para "transportar" Jesus entre aqueles que não o conheciam nem o procuravam, e que foi assassinado pelos mesmos tuaregues entre os quais escolhera viver, em silêncio e oração, sem ter conquistado nenhum novo cristão entre eles, será beatificado pela Igreja ainda este ano.

Entre as fileiras cada vez maiores de santos canonizados, de Foucauld pode, à primeira vista, parecer pertencer à categoria dos santos extremos, aqueles que presidem as fronteiras da aventura cristã no mundo. No entanto, sua história singular oferece um presente de alívio e conforto. 30Giorni conversou sobre esse mesmo tema com o Cardeal Walter Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Que, entre outras coisas, é um velho amigo de Charles de Foucauld. 

Este ano, de Foucauld será declarado beato. Em 1905, exatamente cem anos atrás, ele chegou a Tamanrasset, seu destino final, no deserto argelino. Sei que a figura de de Foucauld lhe é querida e ocupa um lugar especial em sua vida como cristão e sacerdote. Como o conheceu? WALTER KASPER: Quando eu era professor de teologia na Universidade de Tübingen, frequentemente encontrava um grupo de sacerdotes que eram membros e amigos da comunidade "Jesus Caritas", sacerdotes que seguiam a espiritualidade de Charles de Foucauld. Eu participava regularmente de suas reuniões mensais, que incluíam vários momentos: uma revisão de vida , leitura e meditação da Sagrada Escritura, celebração e adoração eucarística e, finalmente, um jantar fraterno. Fascinado pela figura de Charles de Foucauld, viajei também para a Argélia, para as montanhas Hoggar, onde ele havia vivido, e lá, em uma cabana simples na solidão da montanha, fiz meus exercícios espirituais. Lembro-me de que todas as noites um ratinho de olhos brilhantes me visitava para comer um pedaço do meu pão. Lá em Tamanrasset, mas também em outros lugares, por exemplo em Nazaré ou aqui em Roma, sempre me impressionou a vida das Pequenas Irmãs de Charles de Foucauld, sua vida de pobreza evangélica entre os pobres e sua vida de adoração eucarística. Para melhor compreender a espiritualidade de Charles de Foucauld, os escritos de René Voillaume foram de grande ajuda; alguns aspectos dessa espiritualidade também apareceram em meu livro " Jesus, o Cristo" . 

Naqueles anos, quando você frequentava as reuniões dos grupos "Jesus Caritas", o que o impressionou em Charles de Foucauld? Por que você achou a história dele interessante e oportuna?
KASPER: Conheci esse grupo de padres em uma casa de freiras franciscanas nos arredores de Tübingen, em uma região muito bonita. Fiquei comovido com sua autêntica espiritualidade evangélica, a espiritualidade de Nazaré, a espiritualidade do silêncio, da escuta da Palavra de Deus, da adoração eucarística, da simplicidade de vida e do intercâmbio fraterno. Mais tarde, compreendi a relevância e a exemplaridade do testemunho de Charles de Foucauld para os cristãos e o cristianismo no mundo de hoje. Charles de Foucauld me pareceu interessante como um modelo para a realização da missão do cristão e da Igreja não apenas no deserto de Tamanrasset, mas também no deserto do mundo moderno: missão por meio da simples presença cristã, na oração com Deus e na amizade com os outros.

A julgar por seus resultados imediatos, de Foucauld parece um perdedor. Durante sua vida no deserto, não houve conversões ao cristianismo entre os tuaregues. O que o renascimento de sua história sugere agora?

Cardeal Walter Kasper| 30Giorni.

KASPER: O filósofo e teólogo judeu Martin Buber disse que "sucesso" não é um dos nomes de Deus. Nem mesmo Jesus Cristo foi "bem-sucedido" em sua vida terrena; no final, ele morreu na cruz, e seus discípulos, exceto João e sua mãe, Maria, o abandonaram. Humanamente falando, a Sexta-Feira Santa foi um fracasso. A experiência da Sexta-Feira Santa faz parte da vida de todo santo e de todo cristão. Esta observação pode ser um conforto para muitos padres que sofrem com a falta de sucesso imediato, porque em nosso mundo ocidental, apesar de todos os esforços pastorais, as igrejas estão cada vez mais vazias aos domingos e a sociedade está mais descristianizada. Muitos sentem que estão pregando para ouvidos moucos. Nesta situação difícil, o exemplo de Charles de Foucauld pode ser de grande ajuda para muitos padres.

Como essa ajuda se expressa?
KASPER: Podemos aprender que não se trata da nossa missão, ou, por assim dizer, do nosso empreendimento missionário, de uma hegemonia cultural ou da expansão de um império eclesiástico com estratégias sofisticadas e refinadas de pedagogia, psicologia, organização ou qualquer outro método. É claro que devemos fazer o que pudermos, e podemos até mesmo fazer uso de métodos modernos. Mas, em última análise, trata-se da missão de Deus por meio de Jesus Cristo no Espírito Santo. Somos apenas o vaso e o instrumento por meio dos quais Deus quer estar presente; em última análise, é Ele quem deve tocar o coração dos outros; somente Ele pode converter o coração e abrir os olhos e os ouvidos. Assim, na presença, na oração, na vida simples, no serviço e na amizade humana, como aquela experimentada por Charles de Foucauld com os Tuaregues, o próprio Senhor está presente e ativo. Devemos confiar-nos a Ele e deixar a Ele a escolha de como, quando e onde Ele quer convencer os outros e reunir o Seu povo.

Foi isso que de Foucauld viu acontecer em sua própria experiência pessoal.
KASPER: Numa meditação de novembro de 1897, ele escreveu: "Tudo isto foi obra tua, Senhor, e somente tua... Tu, meu Jesus, meu Salvador, fizeste tudo, dentro e fora de mim. Atraíste-me para a virtude com a beleza de uma alma na qual a virtude parecia tão bela que cativou irrevogavelmente o meu coração... Atraíste-me para a verdade com a beleza dessa mesma alma." Certamente, não podemos fazer de Carlos de Foucauld o único modelo de missão para todas as situações; há também outros santos exemplares, como Francisco Xavier, Daniel Comboni e muitos outros, que representam outro tipo e outro carisma missionário. As situações missionárias são variadas, assim como os desafios e as respostas. No entanto, Carlos de Foucauld parece-me ser um modelo de missão não apenas no deserto entre os muçulmanos, mas também no deserto moderno. É emblemático que Teresa de Lisieux tenha sido proclamada padroeira das missões, ela, uma jovem freira carmelita, que nunca havia saído do Carmelo e nunca havia estado em um país de missão; mas ela prometeu deixar uma chuva de rosas cair do céu após sua morte.

Fonte: https://www.30giorni.it/

LIVROS: Maquiavel. A política como remédio

Nicolau Maquiavel em retrato de Santi di Tito preservado no Palazzo Vecchio em Florença | 30Giorni.

LIVROS

Arquivo 30Dias nº 01 - 2004

Maquiavel. A política como remédio

Nas obras do secretário florentino, ligadas aos tempos incertos e violentos da época, fica claro que a função essencial da política é fornecer remédios, reparar falhas e encontrar equilíbrios temporários e sempre precários. Entrevista com Giulio Ferroni.

por Paolo Mattei

As duas palavras-chave do último livro de Giulio Ferroni estão contidas no título: Maquiavel ou Incerteza . A Política como Arte do Remédio (Donzelli Editore, Roma 2003). Ferroni, ao explicar a centralidade desses dois termos, " incerteza " e " remédio ", na obra de Nicolau Maquiavel, parte do sentido de "contradição" inerente ao seu pensamento político, que espelha uma realidade que não pode ser dominada ou planejada por nenhum conhecimento, por nenhuma teoria filosófica ou política. É justamente esse sentido de contradição, segundo Ferroni, professor de Literatura Italiana na Universidade La Sapienza, em Roma, que torna o estilo eruptivo de Maquiavel propenso a "fazer explodir as palavras, a colocá-las em conflito com a realidade, a confrontar o interlocutor de frente, a desmascarar enganos e a denunciar erros, ilusões e mal-entendidos". E é sabido que muitos mal-entendidos estão presentes nas imagens que, ao longo do tempo, foram propagadas do pensamento político de Maquiavel (degradado em aforismos fáceis tão memoráveis ​​quanto vazios, resumidos em antologias críticas partidárias d usum delphini... ). Mas se abordarmos suas obras tendo em mente os conceitos de "contradição" e, de fato, "incerteza" e "remédio", e se respeitarmos o caráter remoto da obra do secretário florentino — sua intempestividade —, é possível, segundo Ferroni, derivar algumas diretrizes que, além de representarem um ponto de referência confiável para abordar o "enigma de Maquiavel", podem até constituir lembretes válidos para a ação política contemporânea.

Professor, na abertura do seu ensaio, o senhor oferece uma espécie de "panorama" das tentativas de modernização e das traições do pensamento político de Maquiavel.
GIULIO FERRONI: O debate político e ideológico sempre foi dominado por uma propensão variável a modernizar e distorcer Maquiavel, a torná-lo uma figura positiva ou negativa, a identificar sua obra como um paradigma de ação política para assegurar o poder. Biografias do secretário florentino continuam a ser produzidas, retratando a Itália renascentista, seu esplendor criativo e a predominância de uma dimensão "estética" antropocêntrica e secularmente imparcial; a imagem, em outras palavras, de um mundo inteiramente devotado à ideia de beleza, no qual o Estado é concebido como uma obra de arte... Nesse contexto, Maquiavel pode ser retratado como um de seus artistas supremos; e falando dele, pode-se discutir livremente sua consciência realista lúcida e seu espírito utópico apaixonado, seu despotismo absolutista severo e seu fervor republicano popular, suas intenções desmistificadoras e sua rendição ao chamado do mito, sua duplicidade sem fundo e a sinceridade da paixão, fazendo todos esses elementos coexistirem ou contrastarem. E, de uma forma ou de outra, reconhece-se nele o emblema da política inescrupulosa, identifica-se, no modelo que lhe é imposto, a garantia de uma ascensão vitoriosa ao poder, a justificação para usar todos os meios possíveis para atingir os objetivos do poder...

Uma espécie de manual para garantir o sucesso político, em suma. O habitual "maquiavelismo"...
FERRONI: Sim, e esquece-se frequentemente que o pensamento de Maquiavel certamente não provém da experiência do sucesso ou da fé em fortunas magníficas e progressivas. Muito pelo contrário. Ele parte, antes de mais nada, da consciência da transitoriedade dos corpos políticos, destinados, como os corpos naturais, à decadência. "Não há nada eterno no mundo", diz ele numa passagem dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio , e isto é verdade mesmo para os organismos políticos mais sólidos e seguros, continuamente sujeitos à ruína imediata e a resultados destrutivos à espreita. O seu pensamento não está ligado à euforia da expansão. Suas obras, escritas post res perditas, estão ligadas a situações de incerteza, às dificuldades em que, em sua época, se encontravam a República Florentina e a Itália, "sem cabeça, sem ordem, vencidas, despojadas, dilaceradas, encalhadas", como lemos no capítulo XXVI de O Príncipe .Maquiavel não é, portanto, um estrategista de sucessos políticos vitoriosos, mas, em sua trágica experiência como secretário da República Florentina e na teoria que posteriormente desenvolveu, pensa sobretudo em maneiras de se defender da ruína que paira sobre a sociedade contemporânea. É, portanto, movido, na articulação de seu pensamento, por um amor à sua pátria em perigo, e certamente não por angústia teórica, nem por um propósito abstrato de modelagem, nem pelo desejo de definir uma nova configuração do espírito humano.

Neste ensaio, você também tentou uma espécie de atualização de seu pensamento político...
FERRONI: Certamente. Trata-se, no entanto, de uma atualização baseada precisamente na consideração da natureza ultrapassada de Maquiavel. Isso não é feito de forma alguma proposital; está ligado a uma tendência implícita em alguns estudos contemporâneos mais profundos que tendem a vinculá-lo intimamente ao seu tempo. Maquiavel pode ser lido em chave contemporânea justamente por considerá-lo distante de nós, isto é, não fazendo dele um teórico abstrato do poder, do sucesso, do absolutismo, mas observando que mesmo os aspectos mais escandalosos de seu pensamento derivam de um estado de necessidade, sempre atual.

Capa do livro "Maquiavel, ou a incerteza: a política como arte dos remédios", Donzelli Editore, Roma 2003 | 30Giorni.

Um exemplo contemporâneo do pensamento maquiavélico?
FERRONI: Eu certamente diria que sua concepção de "política como arte do remédio", a expressão com a qual meu livro é subintitulado. É, antes de tudo, o realismo de Maquiavel — por exemplo, sua referência à violência original e sua perpétua continuação ao longo da história humana, entre homem e homem, povo e povo, Estado e Estado — que representa um ponto de referência até mesmo na política atual. A violência, afinal, é um fato que nunca foi negado ao longo da história. Assim, a função essencial da política, segundo Maquiavel, consiste em fornecer remédios, reparar falhas, encontrar equilíbrios provisórios e sempre precários. Em O Príncipe , nos Discursos e mesmo em A Arte da Guerra , uma sucessão contínua de problemas e remédios se desenrola. Pode-se dizer que toda a visão de Maquiavel sobre a política se enquadra no quadro de uma "antropologia do remédio".

A ideia de remédio também decorre da incapacidade do homem de prever os "movimentos" da fortuna...
FERRONI: A insondabilidade da "fortuna" é um elemento fundamental do pensamento de Maquiavel. Ele utiliza as figuras de "barragem" e "abrigo". A "virtude" do político é, em última análise, uma forma de receber o impulso das forças de natureza externa, a "fortuna" — cujos desígnios e propósitos são desconhecidos — de controlar sua alteridade irredutível e, se necessário, de "suportá-la". Sem forçar a situação ou se curvar a ela, mas buscando evitar o pior, mantendo sempre a esperança de salvação. Este aspecto da função do político também tem relevância para os dias de hoje.

Qual é a origem do realismo de Maquiavel?
FERRONI: Seu realismo se desenvolve na linguagem e nas exigências da prática cotidiana. É o resultado das questões colocadas por um homem "prático", que estuda os clássicos assiduamente, mas não profissionalmente. Um pensamento completamente assistemático, mas inteiramente "aberto" e contraditório, com raízes populares e burguesas enraizadas na cultura municipal florentina.

Você pode dar alguns exemplos de elementos do seu pensamento com origens populares?
FERRONI: A ideia do perene "descontentamento" dos homens, por exemplo, de sua malícia inerente, de sua ambição incontrolável, de seu desejo insaciável. O tema central da antropologia política de Maquiavel reside na dialética da ambição e do desejo. Em uma famosa passagem dos Discursos Ele escreve: "A natureza criou os homens de tal maneira que eles podem desejar tudo, mas não podem alcançar tudo: de modo que, como o desejo é sempre maior que o poder de adquirir, o resultado é o descontentamento com o que se possui e a pouca satisfação com isso." Desse estado, para Maquiavel, surge o erro no julgamento humano, a insegurança que pesa sobre toda interpretação da realidade. Essa concepção da incerteza, da precariedade dos assuntos humanos, certamente tem uma origem "baixa", popular.

Em suma, Professor, o que podemos aprender com Maquiavel?
FERRONI: Como eu disse antes, podemos primeiro ter em mente o conceito de política como a arte do remédio. Maquiavel nos diz, de certa forma, que a tarefa essencial da civilização e da política é estudar e implementar remédios para os males e desastres que surgem de dentro delas mesmas. Dessa premissa surgem outras considerações, como a consciência de que as ações dos contemporâneos "vieram depois": a importância, isto é, de sentir todo o peso do passado sobre o presente e, portanto, de ter em mente os erros. Isso pode nos ajudar a perceber a relatividade de cada objetivo e meta, sempre provisórios. Há também a referência à violência original, uma violência ainda presente hoje na trágica série de conflitos em curso: o realismo de Maquiavel pode servir de convite aos nossos políticos para que não subestimem essa inescapável "necessidade" antropológica.

Retrato de Cesare Borgia, conhecido como Valentino, e Niccolò Machiavelli em conversa com o Cardeal Pedro Loys Borgia e seu secretário Don Micheletto Corella, Mestre do século XVI, coleção particular | 30Giorni.

Permita-me uma pergunta de brincadeira, Professor: se Maquiavel estivesse vivo hoje, qual seria sua postura política sob uma perspectiva europeia e global?
FERRONI: Estou brincando, e diria que ele provavelmente seria um europeísta convicto. Ele tinha um forte senso da realidade europeia, embora seu objetivo principal fosse a defesa de uma entidade municipal, a de Florença. Além disso, Maquiavel era bem versado na política francesa e na do Imperador Maximiliano. Portanto, embora partindo de Florença, sua perspectiva era indubitavelmente europeia. É claro, ainda brincando, suspeito que ele não sentiria a necessidade de enfatizar a ideia das raízes cristãs do Velho Continente. E de uma perspectiva mais ampla, em vez de exportar a democracia para o mundo, ele provavelmente sentiria a necessidade de mantê-la e fortalecê-la onde ela já existe.

Fonte: https://www.30giorni.it/

O que esperar da Cúpula dos Povos em Belém? (Parte 2/2)

Belém recebe a Cúpula dos Povos (Revista Amazônia

O que esperar da Cúpula dos Povos em Belém?

Falta apoio e hospedagem ao evento que ocorrerá em paralelo à COP30, onde movimentos populares serão protagonistas. Lideranças contam como se organizarão, suas bandeiras, os entraves para receber cerca de 15 mil indígenas e ativistas e seu projeto de cozinha solidária.

A reportagem é de Brenda Taketa, publicada por O Joio e o Trigo, 21-10-2025.

Multilateralismo e internacionalização das lutas

Realizada pela primeira vez em paralelo à Rio-92 e, 20 anos depois, à Rio+20, cada edição da Cúpula dos Povos parte de um longo processo de debate e organização multilateral de povos e comunidades indígenas e tradicionais, assim como sindicatos, associações e coletivos de trabalhadores da América do Sul e de outras partes do mundo.

Os movimentos veem o processo de construção da Cúpula como um espaço para unificar e internacionalizar as lutas de base, pressionar governos a fazerem mudanças estruturais necessárias e para criar “constrangimentos necessários” aos causadores da crise climática.

Pablo Neri, da direção nacional do MST afirma que um dos fatores que impulsionam os movimentos a colocar mais força na Cúpula e na presença em Belém durante a COP30 “é que, nesse momento, com o fracasso do multilateralismo da ONU, o internacionalismo enquanto entendimento universal dessa relação dos povos, pode ser uma convocação global para construção de algo diferente”.

No plano nacional, as ameaças aos territórios combinam velhas e novas práticas e modelos de “desenvolvimento” e vão dos projetos de construção de rodovias, hidrovias e ferrovias, da ampliação das fronteiras agropecuárias e da exploração de combustíveis fósseis ao aumento da extração de minerais de transição e em parques de energias renováveis, como eólicas e hidrelétricas.

“Hoje, na Cúpula dos Povos, se concentram e se mobilizam os principais movimentos de base popular do Brasil, que ao mesmo tempo fazem a luta contrária à devastação e às agendas da extrema direita que têm sido impostas no país”, afirma Cleidiane Vieira, coordenadora do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).

A entrevista foi concedida à beira do Rio Guamá, no final da tarde do dia 30 de maio, quando a Cúpula realizou um ato político na UFPA, com representações de diferentes movimentos e setores do Brasil e de fora. Na ocasião, diversas lideranças destacaram a articulação internacional como fator estratégico para as lutas estabelecidas em cada país. “A crise climática é algo que unifica todo mundo. Não é só uma questão do Brasil, mas nós vivemos, nos últimos anos, na pele, o aumento dos eventos extremos. Não é uma brincadeira, não é só falação, é uma realidade. Olha o que aconteceu no Rio Grande do Sul, olha o que está acontecendo na Amazônia todo ano. Secas e cheias”.

Defesa da terra, do território e da natureza

O coordenador do setor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Paulino Montejo, enfatizou que a aliança entre os diferentes povos passa, historicamente, pela defesa da terra, do território e da natureza.

Segundo ele, esse alinhamento só é possível porque vai além da compreensão da terra física como bem passível de compra e venda. Para esses povos e comunidades, montanhas, rios e florestas são entes vivos e autônomos, e possuem tanto uma dimensão sagrada quanto formas de uso e presença compartilhadas por espécies humanas e não-humanas.

“É um fracasso civilizatório essa compreensão de que o lucro, a acumulação imediata, consequentemente o consumo exacerbado, a exploração da natureza à exaustão, sem limite, não terá um custo cobrado pela própria natureza”, critica.

demarcação e a proteção dos territórios indígenas são, para o representante da Apib, medidas essenciais para a solução das crises climática, ambiental e social, além de uma forma de restituir direitos negados ao longo de 500 anos de genocídios, esbulhos, remoções forçadas, assassinatos e ecocídios impostos aos povos originários.

Montejo lembra que a participação indígena na construção do Brasil não foi secundária nem passiva. “Não é de agora que os povos indígenas dão sua contribuição à formação social do Estado brasileiro. Foi ao longo da história, inclusive com suas próprias vidas, e até protegendo as fronteiras tanto no Norte quanto no Sul do país”.

Diante da urgência em ampliar alianças, a Apib tem investido na campanha “A resposta somos nós”, que convoca a sociedade brasileira e internacional a se sentir corresponsável na tarefa de proteger as florestas, os direitos fundamentais e a vida, não apenas dos povos indígenas, mas de toda a população do planeta.

Nesse espírito, em junho deste ano, o movimento indígena realizou em Brasília a Pré-COP Indígena, coordenada pela Coalizão das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O evento reuniu povos originários da Bacia Amazônica para formular a chamada NDC (sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) Indígena. O documento reúne compromissos e soluções dos povos indígenas para combater as mudanças climáticas.

Entre outras exigências, as organizações indígenas querem que os governos nacionais considerem a demarcação e a proteção de territórios indígenas como política climática fundamental, implementem planos de adaptação baseados em saberes tradicionais, garantam acesso direto e proporcional ao financiamento climático para organizações e territórios indígenas e ponham fim às explorações minerais e de combustíveis fósseis em seus territórios.

Falsas soluções climáticas

Na mira de outros movimentos também se encontram as chamadas “falsas soluções climáticas”, representadas por programas, projetos e instrumentos que partem de lógicas de mercado por vias como a da financeirização da natureza e de iniciativas “sustentáveis” como o mercado de carbono – impostas aos territórios por governos e grandes corporações.

O entendimento geral é que, sem diálogo e reconhecimento de direitos dos povos e comunidades, as desigualdades de acesso a bens essenciais, como terra e água, e os conflitos históricos nos territórios tendem a se agravar.

Os movimentos, porém, não trazem apenas críticas. As falas assertivas contra o modelo de desenvolvimento vigente são acompanhadas de respostas concretas a problemas tratados como insolúveis por grande parte dos setores da sociedade brasileira.

Ayala Ferreira, liderança nacional do MST, relata as experiências do movimento na produção de alimentos saudáveis que são hoje referência no mundo, como o arroz agroecológico. A expectativa do MST é que, em breve, a transição para a agroecologia alcance o café e o cacau.

Além disso, o movimento tem investido em parcerias internacionais para adquirir e produzir máquinas que buscam ampliar a escala da produção do arroz, com produtividade do trabalho e do menor sofrimento de agricultores familiares e camponeses em atividades fisicamente extenuantes. Um exemplo disso será a adaptação de colheitadeiras de arroz para a realidade de Açailândia, região de baixada alagada no Maranhão, graças à parceria com parques tecnológicos da China. A ideia é que elas realizem em dois ou três dias o trabalho humano que, atualmente, demanda mais de um mês para colher cerca de um hectare de arroz.

Com potencial de solução para velhos problemas urbanos e rurais brasileiros, outra iniciativa do MST é a pesquisa para acelerar o tempo e aumentar a escala de produção de adubo orgânico, com base em novas tecnologias de tratamento do lixo.

Desenvolvida em colaboração com a Universidade de Brasília (UnB), a inovação usa elementos próprios dos ecossistemas brasileiros para permitir que grandes quantidades de resíduos, como os produzidos por uma cidade como Belém, sejam transformados em adubo orgânico em cerca de sete dias. Em outras circunstâncias, quantidades inferiores de resíduo levariam em média seis meses para virarem adubo.

Agenda internacional promove mercado de carbono

Em silêncio em relação ao apoio formal à realização da Cúpula, o governador paraense Helder Barbalho propagandeou durante a Semana do Clima em Nova York, na semana anterior à visita de Lula e sua comitiva a Belém, que o Pará pretende comercializar R$ 40 bilhões em créditos de carbono até 2028, segundo reportagem veiculada pela CNN.

A promessa é que o mercado de carbono traga muito dinheiro gerado pela redução do desmatamento. Os recursos, segundo o governo, serão divididos entre comunidades locais e em políticas de redução de emissões.

As altas expectativas em faturar com créditos de carbono esbarram, porém, na realidade dos territórios paraenses. Diversos projetos de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) têm sido alvo de críticas e denúncias. No ano passado, O Joio e o Trigo, em parceria com o Sumaúma, publicou reportagem sobre conflitos gerados em torno de projetos de carbono assinados com pelo menos cinco comunidades da Ilha do Marajó.

Em abril deste ano, os Ministérios Públicos Federal (MPF) e do Estado do Pará (MPPA) recomendaram a anulação de um contrato de venda de créditos de carbono no valor de quase R$ 1 bilhão. O acordo envolve o governo, a Companhia de Ativos Ambientais do Pará (Caap) e a Leaf (sigla em inglês para Reduzir Emissões Acelerando o Financiamento Florestal), coalizão estrangeira de governos internacionais (como o dos Estados Unidos, Reino UnidoNoruega e República da Coreia) e de grandes corporações, que incluem AmazonBayerBCGCapgemini, H&M Group e Fundação Walmart.

Na época, os MPs argumentavam que o projeto de REDD+ no Pará ainda estava em fase de construção e os créditos ainda não existiam como patrimônio do estado no momento da negociação – o que violaria a Lei Federal nº 15.042/2024, que proíbe expressamente a venda antecipada de créditos referentes a períodos futuros.

Além da ilegalidade principal, a recomendação apontava uma série de problemas, como a falta de transparência, a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais e indígenas, e os riscos de especulação financeira.

Em maio deste ano, após requerimento feito pela Caap, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) suspendeu os efeitos da recomendação. A decisão permitiu que o processo de captação de recursos seguisse em curso, mas o caso ainda será analisado em definitivo pelo órgão.

Com direito a foto com o ex-governador da Califórnia e estrela de HollywoodArnold Schwarzenegger, a semana em Nova York foi, segundo declarações do governador à imprensa, uma oportunidade para fortalecer alianças, apresentar o Sistema Jurisdicional de REDD+ do estado e afirmar o protagonismo do Pará no mercado de carbono e na bioeconomia, tendo como horizonte a COP30.

Para os povos, a conferência será vivida de outros modos e terminará com um grande banquete para celebrar a partilha de alimentos produzidos nos territórios com a população de Belém, de outros estados e os estrangeiros que circularão pela cidade em novembro.

Ao servir comida e exemplo nas ruas, o objetivo da Cúpula dos Povos, além de ecoar as vozes que não chegam aos grandes salões e gabinetes blindados por vidros e outros materiais de luxo, é o de afirmar concretamente alternativas para que o planeta não apenas sobreviva, mas seja recriado pela via da solidariedade e da imaginação de outros mundos.

Segundo os participantes desse movimento, só assim os limites e ameaças impostos pela emergência climática e pelas graves desigualdades que a envolvem poderão ser ultrapassados pelas práticas de esperança realizadas por quem, de fato, mantém a floresta em pé: os povos e comunidades indígenasquilombolas e tradicionais.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/658880-o-que-esperar-da-cupula-dos-povos-em-belem

“Não temas, pequeno rebanho”. Evangelizar em uma época de mudanças (1) (Parte 2/3)

Combate, proximidade e missão (Opus Dei)

“Não temas, pequeno rebanho”. Evangelizar em uma época de mudanças (1)

É hora de mudar o olhar, de passar da nostalgia à audácia, de uma fé em posição defensiva a uma fé que propõe com confiança uma visão do mundo e da vida.

23/10/2025

Entrar em contato

Um “apóstolo moderno”[3] pode se sentir também, como um desses exploradores de baixa estatura, em um mundo de gigantes. Exploradores que desejariam levar ao coração do mundo a arca da aliança que iluminará todas as nações. “Filhos da luz, irmãos da luz: isso somos. Portadores da única chama capaz de iluminar os caminhos terrenos das almas, do único fulgor, no qual nunca poderão dar-se obscuridades, penumbras ou sombras”[4].

Como o povo que acompanhava Josué, gostaríamos de encontrar a confiança para passar do deserto a uma terra compartilhada com pessoas muito diferentes. Porque é essa imersão que nos permitirá converter-nos em luz para os povos. Para consegui-lo, no entanto, é preciso primeiro dar esse grande passo que o povo no deserto deixou pendente. É necessário decidir-se a entrar em contato. Nós, um povo eleito, mas bem consciente de nossa pequenez e insuficiência; e os outros, que são a verdadeira razão pela qual o Senhor nos escolheu. Esses outros, que parecem às vezes gigantes, e que podem dar a impressão de ser tão diferentes, mas que no fundo são como nós. Alguns deles ainda não conhecem o Deus vivo e verdadeiro, ou têm uma imagem equivocada d’Ele. E necessitam de nós, porque apesar de viver em uma terra rica, passam frequentemente por momentos difíceis.

Em todo caso, “não é verdade que toda a gente de hoje – assim, em geral e em bloco – esteja fechada ou permaneça indiferente ao que a fé cristã ensina sobre o destino e o ser do homem; não é verdade que os homens destes tempos se ocupem só das coisas da terra e se desinteressem de olhar para o céu. Ainda que não faltem ideologias – e pessoas que as sustentam – que permanecem fechadas, há em nossa época anseios elevados e atitudes rasteiras, heroísmos e covardias, idealismos e desenganos; criaturas que sonham com um mundo novo mais justo e mais humano, embora outras, decepcionadas talvez com o fracasso dos seus primitivos ideais, se refugiem no egoísmo de procurar apenas a sua própria tranquilidade ou de permanecer imersas no erro”[5].

Como sair ao seu encontro? Como decidir-se, não apenas a entrar em contato, mas a permanecer em um intercâmbio permanente com tantas pessoas que encontramos pelo caminho da vida? Em muitos lugares do mundo é evidente que nós, cristãos nos convertemos em um “pequeno rebanho” (Lc 12, 32), como eram os nossos primeiros irmãos na fé. Como é claro, lemos de vez em quando com alegria notícias alentadoras: por exemplo sobre o crescente número de batismos de adultos em alguns países ou sobre o aumento de vocações sacerdotais em outros continentes. Dá-nos também segurança ver tantos jovens celebrando o jubileu junto com o Papa. Tudo isso nos dá alegria, porém, não impede que, em alguns lugares, continuemos sendo uma minoria, às vezes silenciada por uma cultura que com frequência não assimila a fé cristã. As gerações mudam e a transmissão da fé torna-se mais difícil. Compreende-se o desconcerto de muitos pais e mães que, apesar de seus esforços, não conseguiram transmitir a fé cristã a seus filhos. Com frequência, tentaram fazer o que viram seus pais fazerem. Desta vez, no entanto, a transmissão não funcionou. Algo saiu mal. Entre outros fatores causados por este fenômeno, um deles é a mudança radical do contexto, que agora exige algo diferente.

Bento XVI explicava como “enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdo da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes sectores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas”[6].

Anos atrás o venerável Fulton Sheen já o havia anunciado também com grande lucidez, diante de um público atônito: “estamos no fim da cristandade. Não do cristianismo, não da Igreja, mas da cristandade. Pois bem, o que se entende por cristandade? A cristandade é a vida econômica, política e social inspirada nos princípios cristãos. Isso está chegando a seu fim, nós o vimos morrer”. No entanto, acrescentava, “estes são dias grandes e maravilhosos para estarmos vivos (...). Não se trata de um panorama sombrio, é simplesmente uma visão instantânea da Igreja em meio a uma oposição crescente por parte do mundo. Vivam, portanto, suas vidas com plena consciência desta hora de prova e apoiem-se no coração de Cristo”[7].


[3] São Josemaria, Caminho n. 335.

[4] São Josemaria, Carta 6, n. 3.

[5] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 132. Cfr. também F. Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 1.

[6] Bento XVI, Carta apostólica Porta fidei, n.2.

[7] Fulton Sheen, citado em De la cristiandad a la misión apostólica, Universidade de Mary, Rialp, Madrid, 2025, p. 30.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/nao-temas-pequeno-rebanho-evangelizar-em-uma-epoca-de-mudancas-1/

Papa: mesmo que não tenhamos todas as respostas, temos Jesus!

Audiência Jubilar, 25/10/2025 - Papa Leão XIV (Vatican Media)

O grande pensador do século XV Nicolau de Cusa foi o tema da catequese do Papa Leão na audiência jubilar deste sábado. O Cardeal alemão ensinou que esperar é “não saber” e que as oposições podem encontrar em Deus a unidade. A “douta ignorância”, da qual ele falava, representa para a Igreja de hoje acolher os clamores dos que mais sofrem e que, muitas vezes, colocam em crise o seu ensinamento. Só assim ela pode se tornar especialista em humanidade.

https://youtu.be/hReTQlPQOz4

Bianca Fraccalvieri - Vatican News

O Papa Leão acolheu milhares de fiéis e peregrinos na Praça São Pedro para mais uma audiência jubilar deste Ano Santo. Como a cada encontro quinzenal, em sua catequese o Pontífice apresenta um modelo de esperança. Desta vez, foi Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal alemão e grande pensador do século XV. Humanista convicto, viveu numa época conturbada, em que não se podia ver a unidade da Igreja, abalada por correntes opostas e dividida entre o Oriente e o Ocidente. Enquanto viajava como diplomata do Papa, ele rezava e refletia. Por isso, afirma o Santo Padre, os seus escritos estão "cheios de luz". 

Nicolau escolheu desde jovem frequentar quem tinha esperança, quem aprofundava novas disciplinas, relendo os clássicos e voltando às fontes. Compreendia que há opostos que devem ser mantidos juntos, que Deus é um mistério no qual o que está em tensão encontra unidade. Nicolau sabia que não sabia e, assim, compreendia cada vez melhor a realidade. O Papa Leão assim resume os seus ensinamentos: abrir espaço, manter os opostos juntos, esperar o que ainda não se vê. Para ele, inclusive, esperar é também “não saber”.

Papa saúda os enfermos ao final da audiência   (@VATICAN MEDIA)

Temos Jesus!

Nicolau falava de uma “douta ignorância”, sinal de inteligência. O protagonista de alguns de seus escritos é um personagem curioso: o idiota. É uma pessoa simples, que não estudou e faz perguntas elementares aos eruditos, que colocam em crise suas certezas. 

"O mesmo acontece na Igreja de hoje. Quantas perguntas colocam em crise o nosso ensinamento! Perguntas dos jovens, perguntas dos pobres, perguntas das mulheres, perguntas daqueles que foram silenciados ou condenados por serem diferentes da maioria", comentou o Papa. Para o Pontífice, estamos num tempo abençoado por termos tantas perguntas. Assim, a "Igreja torna-se especialista em humanidade, se caminha com a humanidade e tem no coração o eco das suas perguntas."

Mesmo que não tenhamos as respostas para todas as perguntas, prosseguiu Leão XIV, "temos Jesus. Seguimos Jesus. E então esperamos o que ainda não vemos". "Entremos como exploradores no mundo novo do Ressuscitado", concluiu o Papa.

“Jesus nos precede. Aprendamos, avançando um passo após o outro. É um caminho não só da Igreja, mas de toda a humanidade. Um caminho de esperança.”

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Serão beatos 11 sacerdotes mártires do nazismo e comunismo. Pe. Angioni será Venerável

Os nove mártires salesianos nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, entre 1941 e 1942

Trata-se de nove salesianos poloneses, mortos nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, e de dois sacerdotes diocesanos mortos por ódio à fé durante o regime comunista da tchecoslovaco. Também promulgados os decretos relativos a quatro novos Veneráveis: uma religiosa cisterciense espanhola, um sacerdote dominicano espanhol, um sacerdote sardo que exerceu seu ministério no Brasil e um frade carmelita da Ligúria.

Tiziana Campisi – Cidade do Vaticano

A Igreja terá onze novos beatos. Durante a audiência concedida na manhã desta sexta-feira, 24 de outubro, ao prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos, cardeal Marcello Semeraro, o Papa Leão XIV autorizou a promulgação dos decretos relativos ao martírio de nove salesianos poloneses, mortos por ódio à fé entre 1941 e 1942, nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, e de dois sacerdotes diocesanos da antiga Tchecoslováquia, assassinados entre 1951 e 1952 em consequência da perseguição à Igreja Católica pelo regime comunista que passou a controlar o país após a Segunda Guerra Mundial. Também foram promulgados os decretos que reconhecem as virtudes heroicas de quatro Servos de Deus, que assim se tornam Veneráveis: Maria Evangelista Quintero Malfaz, religiosa cisterciense; Angelo Angioni, sacerdote diocesano, fundador do Instituto Missionário do Imaculado Coração de Maria; José Merino Andrés, sacerdote dominicano; Joaquim da Rainha da Paz, frade da Ordem dos Carmelitas Descalços.

Mártires nos campos de concentração nazistas

Os salesianos Jan Świerc, Ignacy Antonowicz, Ignacy Dobiasz, Karol Golda, Franciszek Harazim, Ludwik Mroczek, Włodzimierz Szembek, Kazimierz Wojciechowski e Franciszek Miśka, religiosos comprometidos em atividades pastorais e educacionais, foram vítimas da perseguição nazista durante a ocupação alemã da Polônia, iniciada em 1º de setembro de 1939, desencadeada com particular veemência contra a Igreja Católica. Alheios às tensões políticas da época, foram presos simplesmente por serem sacerdotes católicos. O tratamento  a eles reservado reflete a particular implacabilidade reservada ao clero polonês, que foi perseguido e ultrajado. Nos campos de concentração, os religiosos ofereceram conforto espiritual aos companheiros de prisão e, apesar da humilhação e tortura sofridas, continuaram a expressar a própria fé. Insultados em função de seu ministério, foram torturados e mortos, ou mesmo levados à morte pelas condições desumanas de prisão. Conscientes de que seu ministério pastoral era considerado pelos nazistas como uma oposição ao regime, continuaram seu trabalho apostólico, permanecendo fiéis à sua vocação, aceitando serenamente o risco de serem presos, deportados e mortos. 

Mártires sob o regime comunista da tchecoslovaco

Os sacerdotes da Diocese de Brno, Jan Bula e Václav Drbola, foram mortos em Jihlava por ódio à fé. Ambos, devido ao seu zelo pastoral, eram considerados perigosos pelo regime comunista que havia se instaurado então Tchecoslováquia desde 1948 e que havia iniciado uma perseguição aberta à Igreja. Preso em 30 de abril de 1951, vítima de uma conspiração da polícia secreta de Estado, Bula, apesar de estar preso, foi acusado de inspirar o assassinato de vários oficiais comunistas em Babice em 2 de julho de 1951. Julgado e condenado à morte, ele foi enforcado em 20 de maio de 1952, na prisão de Jihlava. Drbola, preso por fraude em 17 de junho de 1951, também acusado do assassinato de Babice enquanto estava detido na mesma prisão, foi condenado à morte e executado em 3 de agosto de 1951. Enganados e presos em uma armadilha armada por falsas testemunhas, os dois sacerdotes foram submetidos a violência e tortura que levaram a uma distorção dos acontecimentos e à assinatura forçada de falsas confissões de culpa. Portanto, vítimas de julgamentos de fachada, eles foram condenados à morte. Conscientes dos perigos que corriam no dramático contexto de aversão à Igreja, e apesar da dureza da prisão e das torturas sofridas, aceitaram o seu destino com fé e confiante abandono à vontade de Deus, como atestam as cartas escritas antes da sua execução e o testemunho do sacerdote chamado a ouvir a confissão de Jan Bula.

Jan Bula e Václav Drbola,, sacerdotes (Vatican News)

Os quatro novos veneráveis

Com os decretos promulgados nesta sexta-feira, são quatro os novos Veneráveis: Maria Evangelista Quintero Malfaz, que viveu entre os séculos XVI e XVII. Nascida em Cigales, Espanha, em 6 de janeiro de 1591, em uma família profundamente cristã. Órfã de ambos os pais, seguiu sua vocação religiosa e ingressou no Mosteiro cisterciense de Santa Ana, em Valladolid. Exemplar no cumprimento das tarefas que lhe foram confiadas, teve experiências místicas, que relatou por escrito, guiada por seus confessores, Gaspar de la Figuera e Francisco de Vivar. Em 1632, após a fundação de um mosteiro cisterciense em Casarrubios del Monte, na província de Toledo, foi enviada à nova comunidade e tornou-se sua abadessa em 27 de novembro de 1634, incentivando uma vida de oração e contemplação. Continua a ter experiências místicas, que deixam marcas visíveis em seu exterior. Em 1648, sua saúde piora. Acometida por uma doença grave, ela faleceu em 27 de novembro do mesmo ano. Sepultada na Sala Capitular do Mosteiro, cinco anos depois, após um exame, seus restos mortais foram encontrados incorruptos, enquanto sua fama de santidade crescia. O diálogo constante com Deus foi o elemento dominante de sua jornada espiritual, levando-a a perceber a necessidade de se oferecer como vítima com Cristo pela conversão de seus irmãos pecadores. Ela praticou ardentemente as virtudes teologais, confiando no Senhor para enfrentar as dificuldades da vida, e suportou pacientemente a adversidade e a fragilidade física. Ela também praticou a caridade para com Deus, comprometendo-se a cumprir Sua vontade em todas as circunstâncias com grande humildade.

Maria Evangelista Quintero Malfaz, monja cisterciense (Vatican News)

Pe. Angelo Angioni

Angelo Angioni, sacerdote diocesano, nasceu em 14 de janeiro de 1915, em Bortigali, Sardenha, em uma família numerosa. Passou a infância em um ambiente caracterizado por uma forte fé religiosa. Finalizados os estudos no seminário, foi ordenado sacerdote em 31 de julho de 1938. Após servir por 10 anos como vigário e depois pároco, em 1948 foi nomeado reitor do Seminário diocesano de Ozieri e trabalhou para estabelecer uma comunidade diocesana de sacerdotes oblatos, consagrados às missões populares e estrangeiras, seguindo o exemplo do Beato Paolo Manna.

Como sacerdote fidei donum é enviado a São José do Rio Preto, onde realiza seu ideal missionário, empenhando-se não apenas na pastoral, mas também nos campos social e educacional, favorecendo a criação de uma escola paroquial e fundando o Instituto Missionário do Imaculado Coração de Maria, formado por sacerdotes, diáconos, religiosas contemplativas e leigos.

Graças à sua iniciativa, foram construídas igrejas, capelas, casas de retiro, residências religiosas, espaços para idosos e para atividades paroquiais. Produziu também muitos opúsculos informativos, impressos na gráfica que havia organizado no Instituto Missionário por ele fundado. Entre suas últimas atividades apostólicas e missionárias, destaca-se a criação de um Instituto de Ciências Religiosas.

Sua intensa atividade pastoral foi interrompida por dois derrames, em 2000 e 2004, que o deixaram gravemente debilitado. Sua vida terrena terminou em 15 de setembro de 2008. Seu apostolado refletia seu amor ao Senhor e seu zelo em transmiti-lo àqueles confiados aos seus cuidados pastorais. Ao longo de sua vida, viveu a pobreza, segundo o exemplo evangélico, possuindo apenas o mínimo necessário.

Pe. Angelo Angioni (Vatican News)

José Merino Andrés

José Merino Andrés desenvolveu sua vocação por meio da vida paroquial e da Ação Católica. Nasceu em Madri, Espanha, em 23 de abril de 1905, e ingressou no convento dominicano de San Esteban, em Salamanca, em 22 de julho de 1933. Seis anos depois, foi ordenado sacerdote e enviado ao convento de La Felguera, nas Astúrias, e posteriormente ao convento de Nuestra Señora de Atocha, em Madri. Dedicou-se intensamente à pregação da Palavra de Deus e à celebração dos sacramentos e, em 1949, foi enviado ao México, onde se dedicou às missões populares. Chamado de volta à sua terra natal para assumir o cargo de mestre de noviços, estabeleceu-se em Palência e ali iniciou a fase mais longa e frutífera de seu ministério sacerdotal, formando mais de 700 jovens entre 1950 e 1966. Apesar de sua saúde cada vez mais precária, dedicou suas energias restantes à pregação popular. Faleceu em 6 de dezembro de 1968. Religioso exemplar, destacou-se nas missões por sua pregação vibrante e espiritualmente poderosa, além do tempo dedicado à oração. Em seu apostolado, sempre demonstrou firme esperança e constante confiança na misericórdia divina, demonstrando sua fervorosa devoção à Virgem Maria. Praticou a caridade para com os outros e sempre viveu a obediência aos seus superiores com humildade e espírito de pobreza.

José Merino Andrés, religioso dominicano (Vatican News)

Gioacchino della Regina della Pace (Joaquim da Rainha da Paz)

Batizado Leone Ramognino, Gioacchino della Regina della Pace, é originário de Sassello, província de Savona, onde nasceu em 12 de fevereiro de 1890. Seu nome de batismo foi dado em homenagem ao então Papa Leão XIII. Cresceu em uma família muito religiosa e se envolve bastante na paróquia. Trabalhou como carpinteiro e, mais tarde, serviu como cabo na Primeira Guerra Mundial, destacando-se na construção de pontes e canais nos rios Isonzo e Piave, o que lhe rendeu a honraria de Cavaleiro de Vittorio Veneto. Ao retornar a Sassello, colaborou com o pároco na fundação do Circolo San Luigi para a educação de crianças, tornou-se membro ativo da Sociedade de Socorros Mútuos de Santo Afonso Maria de Ligório e ajudou a fundar um grupo de exploradores católicos em sua cidade natal. Trabalhou na construção do Santuário em homenagem à Rainha da Paz no Monte Beigua e, em 1927, tornou-se seu guardião. Viveu aqui por cerca de dez anos como eremita, mas sempre disponível para acolher peregrinos, e foi aqui que sua vocação religiosa se desenvolveu. Em 1951, ingressou no convento dos Carmelitas Descalços do Deserto de Varazze e continuou a se dedicar ao Santuário da Rainha da Paz, onde permaneceu como custódio até sua morte em 25 de agosto de 1985, aos 95 anos. Passava muitas horas em oração e meditação diante do Sacrário e cultivava uma profunda devoção a Nossa Senhora, considerando uma bênção ser custódio de um santuário a ela dedicado. Caridoso para com todos, dava exemplo aos jovens noviços com sua intensa vida de oração, seu sorriso acolhedor e sua bondade, e o povo o chamava de "Ninu u santu".

Gioacchino della Regina della Pace, religioso carmelita (Vatican News)

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF