Com o coração de peregrino, o Cardeal Paulo Cezar respondeu
ao chamado da Conferência Episcopal Ucraniana, sob a presidência de Dom Vitalii
Skomarovskyi, para presidir a Santa Missa no Santuário Nacional de Nossa
Senhora do Carmo, em Berdychiv. Entrevista com dom Paulo.
Padre Luiz Octávio – Brasília
Entrevista com o Cardeal Paulo Cezar Costa sobre a
viagem à Ucrânia e à Polônia.
De forma pessoal, o que mais marcou o senhor durante
essa visita em meio a uma guerra ainda em curso?
Primeiro, agradeço a possibilidade de falar um pouco da
viagem à Ucrânia e à Polônia. O que mais me marcou foi o encontro com o
sofrimento do povo ucraniano, especialmente dois momentos que trago muito na
memória. O primeiro foi a visita a um cemitério em Lviv, onde se vê,
concretamente, quantas vidas foram ceifadas nesta guerra, quantos jovens,
quantas pessoas perderam a vida. O segundo foi a visita a um hospital, onde uma
cena ficou gravada em minha memória: uma mãe, delicadamente, chorava enquanto
seu filho, que havia sido operado, permanecia em estado crítico. Essas duas
cenas me marcaram profundamente. É ali que se toca, de forma concreta, o horror
da guerra. Claro que não vimos o fronte, que está em outra parte da Ucrânia,
mas, mesmo assim, sente-se o perigo: as sirenes à noite, as pessoas se
protegendo de drones e mísseis, onde o perigo é constante. Um povo que vive
essa realidade toca e choca o coração de um pastor, de qualquer homem, de
qualquer mulher, de qualquer pessoa de boa vontade. Tenho certeza de que isso
impactou meu coração, minha vida e minha caminhada.
O senhor se sentiu inseguro em algum momento? Qual foi
a percepção de estar em um país em guerra?
Não, em momento algum me senti inseguro, ainda mesmo, um dia, na cidade de Kiev, onde as sirenes soaram. Não me senti inseguro. O que mais me tocou foi ver a dor das pessoas, a dor do povo ucraniano. Eles vivem aquilo no dia a dia, vivem a insegurança mediante os drones, os mísseis, onde a população vai tendo a sua esperança minada na vida cotidiana. É uma guerra que nós estamos falando aqui, tem três anos, mais ou menos, onde a esperança das pessoas vai sendo minada, onde não se vai vendo uma luz para o fim dela. Isso mina a esperança das pessoas, isso mina a possibilidade das pessoas de andarem adiante. Eu me lembro bem de um prédio, onde era a residência de estudantes, destruído pelos mísseis.
Mas, ao mesmo tempo, encontrei um povo cheio de
resiliência. Que já viveu um sofrimento sem igual. Muita gente ali viveu o
tempo do comunismo, um país que, depois, se libertou da ex-União Soviética,
onde reconstruiu todo um caminho de liberdade. Me vem à mente as palavras que
São João Paulo II dirigiu à Ucrânia, quando a visitou. Ele diz: ‘A vossa luta é
a luta pela liberdade’. E, hoje, continua essa mesma realidade: um povo que
está lutando pela sua liberdade, um povo que não quer ser, de novo, escravo,
que não quer, de novo, pertencer a um país autoritário, um povo que está
lutando por aquilo que é mais humano, na vida de qualquer pessoa humana e na
vida de um país, a sua liberdade, o direito de ser livre.
Na visão do senhor, qual é a percepção que a Igreja
Católica tem dessa guerra?
A Igreja Católica sofre, junto com a sociedade ucraniana,
essa guerra injusta, essa invasão da Rússia. A Igreja Católica sofre, também,
essa realidade, solidária e próxima do povo. Percebe-se, por parte de todos, um
cansaço e, ao mesmo tempo, uma indignação com a guerra, o que é normal.
Ela vai destruindo o tecido da vida de uma sociedade,
destrói construções, transforma prédios, casas e moradias em escombros. Mas faz
mais do que isso: vai destruindo a vida das pessoas, vai destruindo a
resiliência, vai destruindo as famílias, a esperança e a vida, literalmente a
vida de uma sociedade.
E como o senhor percebe o papel não só da igreja
católica, mas talvez mais amplamente também das outras religiões em contextos
assim de guerra e de dor, como que a Ucrânia está vivendo?
As religiões têm sempre o papel de apontar para o bem, de trazer esperança para a vida de uma sociedade. E, na Ucrânia, me parece que estão cumprindo essa missão. Quando nos encontramos com o conselho das igrejas, via-se o sofrimento de todos e a indignação de todos com essa guerra. Ela é injusta, resultado de uma invasão que a Rússia fez à Ucrânia.
Se trata de um
país livre, e a Rússia, arbitrariamente, invadiu-o por ambições territoriais e
outras motivações. Todo mundo percebe a injustiça, que não tem justificativa.
Se nota a indignação dos líderes religiosos, dos católicos, dos bispos; é uma
indignação total diante dessa realidade. Ao mesmo tempo, eles buscam sustentar
a esperança das pessoas, pois a religião deve fazer isso. Onde não se vê muita
esperança, é preciso buscar caminhos para que as pessoas continuem a esperar.
Quem tem esperança olha para frente, busca construir o futuro, enfrenta a vida
e a existência com coragem. Esse é um papel fundamental das religiões. E me
parece que o mundo religioso ucraniano, mesmo diante da indignação causada pela
guerra, procura assistir as pessoas e alimentar a esperança do povo ucraniano
neste momento.
O senhor comentou sobre o encontro que teve com
líderes religiosos ao longo dessa viagem. Como o senhor avalia o modelo de
diálogo interreligioso e ecumênico que existe hoje na Ucrânia? Como é a
convivência entre as diversas religiões e até entre os diversos tipos de
cristianismo no país hoje?
Eu avalio de uma forma muito positiva. Me parece que ali se
busca construir aquilo que o Papa Francisco propunha na Fratelli Tutti: uma
sociedade de irmãos. Claro que uma sociedade de irmãos não é onde não se leva
em conta a diferença, não. É exatamente onde se leva em conta a diferença, onde
se respeita as distinções, mas onde se percebe que há objetivos comuns que
todos devem perseguir. Pelo pouco que conheci do conselho de Igrejas e
religiões, me parece que há respeito pelas diferenças, onde não se entra na
questão das distinções daquilo que é específico de cada religião, a sua
doutrina, mas se busca afrontar as principais questões juntos, seja de justiça,
de paz, de liberdade religiosa, tantos temas que são comuns a todas as
religiões. Parece que buscam enfrentar e afrontar esses temas juntos, olhando
para a frente e, nesse momento, buscam levar adiante a causa da Ucrânia, buscam
a paz, também, contar ao mundo os horrores da guerra, os horrores que ela está
causando na sociedade ucraniana. Então, vejo de forma muito positiva, acho que
é um caminho interessante, que outras sociedades também podem trilhar.
A respeito da convivência mais fraterna, nas palavras
do senhor, entre os cristãos ali dentro da Ucrânia, nós sabemos que os
católicos romanos são minoria entre os cristãos do país: quer dizer, ortodoxos,
tanto de proveniência russa quanto da ortodoxia ucraniana, fiéis
greco-católicos e, por fim, os católicos romanos de rito latino. O senhor
acredita que essa interação fraterna e a convivência entre os cristãos ali da
Ucrânia teria algo a aportar no sentido de inspiração para outros contextos
eclesiais?
Acho que sim, é um caminho, seja de diálogo, seja de
comunhão, seja mesmo entre aqueles que participam e que estão unidos com Roma,
sejam os católicos e os gregos ortodoxos que estão unidos com Roma, mas também
os ortodoxos ligados a Constantinopla. Se vê que há um caminho de diálogo e há
proximidade, e isso é bonito. Jesus rezou pela nossa unidade, pediu ao Pai que
todos nós sejamos um, como Ele e o Pai são um. É claro, acho que, nesse
momento, o diálogo com os ortodoxos ligados a Moscou é mais difícil. Acredito
que há a se fazer ainda nessa comunhão das igrejas, ali mesmo na Ucrânia, mas
acho que é um caminho interessante. Se percebe que há lugares onde a
proximidade é maior e há lugares onde, talvez, a proximidade não seja tanta.
Nós encontramos, em Lutsk, onde fomos visitados pelo bispo ortodoxo e depois
visitamos a Igreja ortodoxa; eles são ligados a Constantinopla, e ali há um
diálogo bonito. Mas percebe-se que nem em todos os lugares é a mesma realidade.
Então, quer dizer, é um caminho em que, acredito, eles ainda têm algo a
crescer, algo a se solidificar cada vez mais. Claro o ecumenismo é para todos
nós. Se Jesus rezou pela unidade, todos nós devemos buscar essa unidade com
seriedade.
Objetivo da viagem foi a programação prevista no
santuário de Berdychiv por conta da peregrinação anual, os festejos de Nossa
Senhora do Carmo. E ali, certamente, encontrou um povo devoto, um povo de fé,
que, mesmo diante da dificuldade, tem buscado acorrer a Deus e a sua Mãe
Santíssima, a devoção a ela, como meio também de nutrir esperança e a própria
fé durante esse tempo de guerra. Mas diante disso, como o senhor pensa que a
religiosidade do povo católico ucraniano se assemelha ou se diferencia da religiosidade
dos brasileiros e, de repente, diante do que o senhor viu e tocou, o que
poderia servir de inspiração para os católicos do Brasil a respeito do que
esses irmãos na Ucrânia têm vivido e têm experimentado também na vivência da
sua fé?
Claro que, ali em Berdychiv, foi o centro da minha visita à
Ucrânia. A peregrinação foi para responder a um convite da Conferência
Episcopal Ucraniana, feita pelo Mons. Vitalii, que é o presidente da
conferência, para presidir essa missa da peregrinação. Ela mostra bem o amor do
povo ucraniano pela Virgem Maria. Ela é mãe. Nós olhamos, em quase todas as
nações do mundo, encontramos um santuário, e sempre um centro de peregrinação,
onde os católicos sentem a presença materna de Maria, onde peregrinam, onde vão
pedir aquilo de que tanto necessitam. Ali se vê bem a fé do povo ucraniano na
Mãe de Deus. Ali se vê o sentimento de filiação que os cristãos sentem para com
Ela. O amor por Maria, eu diria, é bem universal, onde cada povo manifesta esse
amor de uma forma. Mas se via a fé do povo ucraniano nessa presença materna de
Maria, no sustento materno. É uma peregrinação que se cumpre anualmente; a
guerra parece que prejudicou um pouco. Mas, mesmo com o tempo de guerra, via-se
o santuário cheio, o pátio do santuário cheio, e as pessoas lá, com esperança,
implorando à Mãe, nesse tempo, o dom da paz. O que eles mais precisam, nesse
momento, e que eu também enfatizei na minha homilia, é o dom da paz. Acho que,
nesse sentido, cada povo tem um pouco a aprender com os outros: como venerar a
Mãe de Deus, como manifestar o seu amor por Maria, por ela que é a Mãe de Deus.
Claro que, ali na Ucrânia, se experimenta um pouco aquilo que São João Paulo II
falava, a necessidade de a Igreja respirar com os dois pulmões. Ali se tem bem
a tradição oriental, ali se tem bem a tradição latina. Se percebe bem: a
tradição oriental é mais mística, é mais orante. A nossa tradição latina segue
um caminho todo próprio, uma outra forma de celebração, mais participativa,
onde as pessoas cantam, rezam, participam mais. Acho que, ali, se toca e se tem
essa possibilidade de perceber bem aquilo que João Paulo II fala: uma Igreja
que respira com os dois pulmões, onde os ares vão se trocando, onde também nós,
latinos, temos a possibilidade de experimentar e tocar um pouco essa dimensão
mais mística dos orientais.
O senhor chegou a celebrar seu aniversário, inclusive,
no meio da viagem, justamente no dia principal da peregrinação, que era o dia
20 de julho. Como foi essa experiência de estar unido a um outro povo e nesse
sentido com o coração de pastor, mas também de irmão próximo deles? Tem alguma
coisa que chamou a atenção do senhor em relação à comemoração, à sensibilidade,
à afetividade deles nesse dia que também para o senhor era especial por esse
motivo?
Vivi, também, lá o meu aniversário. Desde o café da manhã, já manifestaram carinho para comigo, lá na casa das irmãs: bolo, o ambiente de festa se via no refeitório.. Depois, quando cheguei ao santuário também, não é? E, assim, depois o presente que me deram, onde me fizeram sentir em casa, me fizeram sentir família, me fizeram sentir que, ali, também, eu estava em casa comemorando o meu aniversário. Eu quis ir à Ucrânia para ser solidário com o povo ucraniano. Quis ir para estar com eles, para que sentissem a presença de irmãos de outra parte do mundo, para mostrar para eles que não estão sozinhos, que há tanta gente rezando por eles, há tanta gente, em outras partes do mundo, sustentando-os com as suas orações, sustentando-os com a sua proximidade, falando desse horror da guerra na Ucrânia.
Eu fui pedir à Virgem Maria, como presente,
o dom da paz para eles. É claro que meu pedido é um só; é o pedido de um pobre
Cardeal, de um pobre pastor, mas que, como filho, também intercede com eles à
Virgem Maria, pedindo o dom da paz. E pedir foi o grande presente que pedi para
ela. Espero que ela me una ao povo ucraniano. Uni minha pobre prece à prece
daquele povo, que, acho, é muito mais forte do que a minha, pois é a que vem
das lágrimas, que vem da dor, que vem do sofrimento, que vem do desespero, que
vem de ver seus filhos morrendo. A prece deles, acho, é muito mais intensa do
que a minha. Mas uni, também, a minha à daquele povo, pedindo pela paz, pedindo
que a Virgem Maria, como mãe, olhe para eles e interceda ao seu Filho Jesus,
que venha em socorro da incapacidade dos homens de construírem a paz, que eles
possam continuar a sua vida, a sua caminhada, com esperança, olhando para
frente, construindo o seu futuro, construindo a sua história.
Diante de toda essa vivência, com tudo que o senhor
trouxe no coração, refletido e ainda a refletir e rezar depois desses dias. O
que o senhor gostaria que os fiéis da Igreja do Brasil, ou mais propriamente
até da Arquidiocese de Brasília, soubessem ou fizessem em solidariedade ao povo
ucraniano?
Gostaria que rezassem pelo povo ucraniano, que não
esquecessem o seu sofrimento. A gente não vê, com clareza, o fim, mas que não
esquecessem, que rezassem sempre pelo povo ucraniano, que lembrassem, também,
às autoridades, o sofrimento deles. Acho que cada um tem um papel e ninguém
pode se furtar dele diante do sofrimento, ninguém pode se calar. E gostaria,
então, que os fiéis da Arquidiocese de Brasília unissem suas preces ao povo
ucraniano e também fossem solidários a eles. Aqueles que puderem, sempre relembrem
aos governantes o desejo e a missão de promover a paz, a missão de lutarem para
que a paz chegue à Ucrânia e chegue a outras partes do mundo também. Gostaria
que lembrassem sempre a Igreja Ucraniana, que é uma igreja latina, que é uma
igreja pequena, mas que está buscando se reconstruir mediante todo o horror que
viveu, também, no tempo do comunismo, onde teve seus bens ceifados e
confiscados, onde teve suas igrejas transformadas em museus, onde os comunistas
buscaram apagar a memória. E, depois, com a liberdade, está se reconstruindo,
está se fortalecendo, não é? Está indo para frente, com esperança e com
alegria. Que exemplo para nós! Nós vivemos em um país onde se tem liberdade
religiosa, onde se vive, com liberdade a sua fé, e, às vezes, a gente esquece
de tantos irmãos que sofreram por ela. Uma igreja que foi perseguida, uma
igreja que foi martirizada, uma igreja onde tanta gente morreu pelo testemunho
da fé. Que lembrassem, também, disso, lembrassem o valor da liberdade religiosa
e ajudassem tantos irmãos que, no mundo, hoje, ainda vivem sem liberdade, que
não podem professar livremente a sua fé.
Obrigado, Dom Paulo, pelas palavras, pelo
esclarecimento e por essa oportunidade também de ouvir do senhor, assim, em
primeira mão, o que viu, o que sentiu, a presença e a missão da igreja diante
desse conflito e também uma palavra de inspiração e esperança também para os
cristãos do nosso país quando pensam e se unem com os irmãos que estão nesse
momento mesmo sofrendo.
Obrigado mais uma vez. Obrigado, eu que agradeço a
possibilidade de, assim, ainda é um bem próximo retorno ainda, mas de poder
falar um pouco dessa viagem, de poder compartilhar um pouco aquilo que vivi,
aquilo que experimentei, as marcas que essa viagem deixaram no meu
coração.
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