Formação da personalidade (3): O correto amor a nós
mesmos
O autoconhecimento, com virtudes e defeitos, me faz feliz?
13/07/2021
Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a
prata e o ouro, que tendes sido resgatados (…) mas pelo precioso sangue de
Cristo[1].
São Pedro recorda aos primeiros cristãos que a sua existência tem um valor
incomensurável, pois foi objeto do amor abundante do Senhor, que os redimiu.
Cristo, com o dom da filiação divina, dá segurança aos nossos passos pelo
mundo. Assim o manifestava com espontaneidade São Josemaria a um jovem: “Padre”
– dizia-me aquele rapagão (que será feito dele?), bom estudante da Central –,
“estava pensando no que o senhor me falou..., que sou filho de Deus! E me
surpreendi, pela rua, de corpo “emproado” e soberbo por dentro... Filho de
Deus!” Aconselhei-o, com segura consciência, a fomentar a “soberba”[2].
Conhecer a grandeza da nossa condição
Como entender esse fomentar a “soberba”? Certamente, não se
trata de imaginar virtudes que não se têm, nem de viver com um sentido de
autossuficiência que mais cedo ou mais tarde vai nos atraiçoar. Consiste em
conhecer a grandeza da nossa condição: o ser humano é a “única criatura sobre a
terra a ser querida por Deus por si mesma”[3];
criado à sua imagem e semelhança, está chamado a levar esta imagem à plenitude
ao identificar-se cada vez mais com Cristo pela ação da graça.
Esta vocação sublime fundamenta o bom amor a si mesmo que
está presente na fé cristã. Com a luz dessa fé, podemos julgar os nossos
sucessos e fracassos. A aceitação serena da própria identidade condiciona a
nossa forma de estar no mundo e de agir nele. Além disso, contribui para a
confiança pessoal que diminui os medos, precipitações e inibições, facilita a
abertura aos outros e a novas situações, e fomenta o otimismo e a alegria.
A ideia positiva ou negativa que temos de nós mesmos depende
do conhecimento próprio e do cumprimento das metas que cada um se propõe. Estas
surgem, em boa parte, dos modelos de homem ou mulher que desejamos alcançar e
que se apresentam de diferentes modos, por exemplo, na educação recebida em
casa, nos comentários dos amigos e conhecidos, nas ideias predominantes em uma
determinada sociedade. Por isso, é importante definir quais são os nossos
pontos de referência, já que se forem altos e nobres, contribuirão para uma
autoestima adequada. E convém identificar quais são os modelos que circulam na
nossa cultura porque, mais ou menos conscientemente, influem em como nos
avaliamos.
Perguntar-se pelos modelos
Acontece, em algumas ocasiões, que formulamos um juízo
distorcido sobre nós mesmos por termos admitido critérios sobre o sucesso que
podem ser pouco realistas e inclusive nocivos: a eficácia profissional a
qualquer preço, relações afetivas egocêntricas, estilos de vida marcados pelo
hedonismo. Podemos nos supervalorizar depois de alguns sucessos, que nos
parecem reconhecidos pelos outros; mas também nos pode acontecer o contrário:
subestimamo-nos, quando não alcançamos determinados objetivos ou não nos sentimos
valorizados em certos ambientes. Estas avaliações erradas são, em grande parte,
consequência de olhar demais para aqueles que qualificam a trajetória pessoal
exclusivamente em função do que a pessoa consegue, tem ou possui.
Para evitar os riscos anteriores, vale a pena perguntar-nos
quais são os nossos pontos de referência na vida profissional, familiar, social
e se são compatíveis com uma perspectiva cristã da vida. Sabemos, também, que o
modelo mais perfeito, completo e plenamente coerente é Jesus Cristo. Ver nossa
vida à luz da vida d’Ele é o melhor modo de nos avaliarmos, pois sabemos que
Jesus é um exemplo próximo, com quem temos uma relação pessoal – de um eu com
um Você – por meio do amor.
Autoconhecimento: com a luz de Deus
Para julgar-se com sinceridade, é imprescindível
conhecer-se. Esta tarefa é complexa e requer um aprendizado que, de certa
forma, não termina nunca. Começa por superar uma perspectiva exclusivamente
subjetiva – “a meu ver”, “na minha opinião”, “acho”... – para ter em
consideração outros pontos de vista. Se nem sequer sabemos com exatidão como é
nossa voz ou a nossa aparência física, e precisamos usar ferramentas de
gravação de voz ou um espelho, é mais indispensável ainda admitir que não somos
os melhores juízes para avaliar a nossa própria personalidade!
Além da reflexão pessoal, conhecer-se é fruto do que os
outros nos ensinam sobre nós. Conseguimos isso quando sabemos abrir-nos a quem
pode nos ajudar – um grande recurso é a direção espiritual pessoal! –,
aceitando as suas opiniões e considerando-as em relação a um bom ideal de vida.
Nesse âmbito também influenciam a interação com as pessoas que convivem
conosco, as modas e costumes da sociedade. Um ambiente que promove a reflexão
favorece o desenvolvimento dos recursos de introspecção; enquanto outro com um
estilo de vida superficial limita esse desenvolvimento.
Convém, portanto, fomentar hábitos de reflexão e nos
perguntar como Deus nos vê. A oração é um tempo oportuno, pois ao mesmo tempo
em que conhecemos ao Senhor nos conhecemos com a sua luz. Entre outras coisas,
procuraremos compreender os comentários e conselhos que recebemos dos outros.
Em algum caso, saberemos distanciar-nos dos juízos de outras pessoas quando
notamos que os realizam sobre fundamentos pouco objetivos, ou talvez de uma
maneira pouco reflexiva, especialmente se julgam segundo critérios que não são
compatíveis com o querer de Deus. É preciso saber escolher a quem prestar mais
atenção, pois como diz a Escritura: É melhor ser repreendido pelo sábio
do que alegrar-se com o canto dos insensatos[4].
Por outro lado, como todos somos em parte responsáveis pela
autoestima das pessoas que nos rodeiam, temos de nos esmerar para que as nossas
palavras sejam um reflexo da consideração por cada um, que é filho de Deus.
Especialmente se tivermos uma posição de autoridade ou de guia (na relação
pai-filho, professor-aluno, etc.) os conselhos e indicações contribuem para
reafirmar nos outros a convicção dos próprios valores, inclusive quando é
preciso corrigir com claridade. Esse é o ponto de partida, o oxigênio para que
a pessoa cresça respirando por si mesma, com esperança.
J. Cavanyes
[1] 1 Pd 1,
18-19.
[2] Caminho,
n. 274.
[3] Concilio
Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 24.
[4] Ecl 7,5.
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