A PALAVRA DE DEUS E O DESAFIO DA UNIDADE E COMUNHÃO
26/09/2025
Dom Juarez Albino Destro
Bispo Auxiliar de Porto Alegre (RS)
Estamos concluindo, no Brasil, mais um Mês da Bíblia. E no
último domingo de setembro, 28, celebramos o Dia da Bíblia. Uma prática que
começou há 40 anos em âmbito nacional e há 54 anos na arquidiocese de Belo
Horizonte. Em 1971, no cinquentenário de fundação daquela arquidiocese, com a
colaboração das Irmãs Paulinas – através de seu Serviço de Animação Bíblica
(SAB) – houve a dedicação do mês de setembro à Palavra de Deus. A CNBB abraçou
a ideia em 1985, tornando uma prática nacional. A memória de São Jerônimo,
celebrado no dia 30, último dia do mês de setembro, puxou a Bíblia para este
mês. Jerônimo, sabemos, é o santo que traduziu os textos do
hebraico/aramaico/grego ao latim, ajudando nas várias versões que temos hoje.
Assim, resolveu-se considerar o último domingo do mês de setembro o Dia da
Bíblia devido à proximidade com a data do santo que ajudou a divulgar a Palavra
de Deus aos fiéis da Igreja.
Os nossos irmãos evangélicos celebram o Dia da Bíblia no
segundo domingo de dezembro, uma data que homenageia os primeiros missionários
evangélicos que chegaram ao Brasil em 1850. Há uma Lei no Brasil, 10.335, de
2001, que instituiu oficialmente este dia no calendário nacional. Uma data
móvel: segundo domingo do mês de dezembro.
Em 2019 o saudoso papa Francisco instituiu o Domingo da
Palavra de Deus, celebrado no 3º Domingo do Tempo Comum, ou seja, em janeiro.
No Motu Proprio de 30 de setembro de 2019, “Aperuit illis”, exatamente num Dia
de São Jerônimo, o papa inicia o documento que oficializa a data recordando uma
passagem bíblica de Lucas: “Abriu-lhes o entendimento para compreenderem as
Escrituras (Lc 24,45). Trata-se de um dos últimos gestos realizados por Jesus
antes da sua Ascensão. Ele parte o pão com os discípulos e lhes abre o
entendimento à compreensão das sagradas Escrituras”. A proposta “nasceu” por
ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2016. Na Carta Apostólica
Misericordia et misera, Francisco animou-nos para pensarmos num “domingo
dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreendermos a riqueza do
diálogo constante de Deus com seu povo” (cf. n. 7). A dedicação de um domingo
do Ano Litúrgico à Palavra de Deus permite, antes de tudo, fazer a Igreja
reviver o gesto do Ressuscitado que abre, também para nós, o tesouro da sua
Palavra, para podermos ser no mundo mensageiros desta riqueza, explica o papa
no Motu Proprio Aperuit illis (grifos nossos). E estabeleceu o 3º Domingo do
Tempo Comum à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus.
Por que em janeiro? Aqui entra uma, digamos, sutil, intenção
do papa Francisco, de que o Domingo da Palavra de Deus seja celebrado num
momento propício do ano “em que somos convidados a reforçar os laços com os
judeus e a rezar pela unidade dos cristãos. Não se trata de mera coincidência
temporal: a celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa um valor
ecumênico, porque a Sagrada Escritura indica, a todos que se colocam à sua
escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e sólida” (Aperuit
illis 3, grifo nosso). Vale lembrar que a Semana de Oração pela Unidade dos
Cristãos, no hemisfério norte, é celebrada de 18 a 25 de janeiro, com o rico
simbolismo dos oito dias, concluindo na festa da Conversão do Apóstolo São
Paulo, ícone da unidade! Assim, colocando o 3º Domingo do Tempo Comum como
Domingo da Palavra de Deus, também este aspecto deve ser refletido
permanentemente.
No Brasil, portanto, mesmo mantendo o mês de setembro como o
Mês da Bíblia e dedicando o seu último domingo ao Dia da Bíblia, tendo
consciência de que existe um dia oficial para a Bíblia no calendário nacional
(segundo domingo de dezembro) e, em âmbito universal, um Domingo da Palavra de
Deus (em janeiro, no 3º domingo do Tempo Comum), não podemos esquecer o desafio
da unidade e da comunhão entre os povos, um grande desafio que nos é recordado
justamente pela leitura, oração, meditação e contemplação da Palavra de Deus.
Há muitas passagens bíblicas que poderiam ajudar nessa direção, mas fiquemos
justamente com a Liturgia do “nosso” Dia da Bíblia, que já tem mais de 50 anos,
o Evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum, um texto bem conhecido.
O relato é de São Lucas, capítulo 16, a partir do versículo
19. É a estória do pobre Lázaro e do rico que fazia festa todo dia.
Interessante observar que o rico não tem nome no relato, enquanto o pobre tem:
Lázaro. Lázaro é uma derivação do nome Eleazar, em hebraico, que significa
“Deus ajudou” ou “Deus é meu auxílio”. Faz recordar, também, do outro Lázaro,
irmão de Marta e Maria, amigos de Jesus. Lázaro foi ressuscitado por Jesus, um
relato também bastante conhecido no evangelho de Joao.
Aqui em Lucas vemos uma estória em duas etapas, durante a
vida e após a morte (ou na mansão dos mortos, como afirma o texto). Temos o
rico, sem nome, com banquetes diários, de uma família com seis irmãos,
provavelmente todos ricos. Conhecedor da religião judaica, pois sabia quem era
o “Pai Abraão”. E temos Lázaro, pobre, com feridas abertas na pele, faminto.
Durante a vida, Lázaro desejava alimentar-se com o que caía da mesa do rico. O
que significa que ninguém lhe dava alimento! Como não lembrar de uma oração do
saudoso Dom Helder Câmara, “Mariama”, um poema-invocação à Mãe de Deus, para
que no mundo não haja mais nem ricos e nem pobres, mas uma civilização baseada
no Amor? Em uma parte do poema ele afirma assim, com palavras fortes: “Basta de
alguns tendo que vomitar para comer mais e 50 milhões morrendo de fome num só
ano”.
O pobre Lázaro e o rico sem nome morreram. E começa a
segunda etapa da estória, com um terceiro personagem, o Pai Abraão.
Interessante observar o pedido que o rico faz a Abraão: “Por piedade, manda
Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito
nestas chamas”. Poderíamos observar o termo “piedade”, justamente que faltou a
ele, o rico, em vida, enquanto estava nos banquetes diários e via o pobre
Lázaro esperando as migalhas que caíam da mesa, mas não era capaz de lhe dar
comida. “Molhar a ponta do dedo” seria o equivalente a uma das migalhas de
comida que provavelmente caíam da mesa… Não foi possível. Por mais que alguém
desejasse não seria possível o encontro dos dois lados, considerou Abraão.
Outro pedido do rico feito ao Pai Abraão, manifestando
preocupação com os seus cinco irmãos: “Manda Lázaro à casa de meu pai para
preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento”.
Poderíamos nos perguntar, e aqui, a meu ver, está o grande ensinamento do
texto: qual a prevenção? Qual a mensagem que Lázaro deveria transmitir aos
irmãos do rico, que provavelmente também eram ricos e se banqueteavam
diariamente, viam pobres pedindo comida e nada faziam?
A resposta de Abraão é curiosa e reveladora: “Se não escutam
a Moisés, nem aos profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite
dos mortos”. Foi justamente o que aconteceu no relato do evangelista João:
Lázaro foi ressuscitado por Jesus!
Dom Helder, com o poema-invocação à Mãe de Deus, em 1981, há
44 anos, assim rezou: “Mariama, Senhora Nossa, Mãe querida. Nem precisa ir tão
longe, como no teu hino. Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias e os
pobres de mãos cheias. Nem pobre, nem rico! […] Um mundo de irmãos! De irmãos
não só de nome e de mentira. De irmãos de verdade, Mariama!”. Que assim seja!
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