O assassinato do ativista Charlie Kirk em 10 de setembro,
durante um encontro no campus da Universidade Utah Valley, em Orem, reacendeu o
debate sobre a violência política nos Estados Unidos. E não se trata de um
fenômeno recente, mas faz parte da história do país. Para tentar entendê-lo, a
Rádio Vaticano ouviu relatos de expoente do mundo institucional e social do
país da América do Norte, além de estudantes e analistas.
Guglielmo Gallone - Città del Vaticano
Quais são as raízes culturais e sociais da violência
política nos Estados Unidos? De onde nasce o medo do outro, a intolerância em
relação a quem pensa diferente? E como a polarização leva ao risco de
transformar a identidade estadunidense e a possibilidade de coexistência
democrática?
As imagens que emergem de uma América violenta, em profunda
crise de identidade, assustam e suscitam questionamentos sobre o que está
acontecendo. O assassinato do ativista político conservador Charlie Kirk é
apenas o mais recente de uma longa série de atos políticos agressivos
perpetrados contra expoentes do pensamento republicano e democrata, revelando o
cerne da crise pela qual atravessa o país: a profunda dificuldade da escuta
recíproca e, consequentemente, a incapacidade de aceitar a diversidade de pensamento.
Atos extremos como o de quarta-feira, 10, — e especialmente
em um lugar símbolo desse momento de inquietação, como as universidades, onde o
diálogo é cada vez mais difícil — passam também, e sobretudo, pelo "fator
humano": solidão, falta de confiança, sensação de abandono e a
incapacidade de encontrar espaços comunitários para se conectar e se envolver.
Para entender onde se alicerçam os fundamentos de uma crise que é
simultaneamente política, social e cultural, recorremos a especialistas dos Estados
Unidos e a jovens cidadãos do país.
A ANÁLISE DE SETH CROPSEY, FUNDADOR E PRESIDENTE DO
INSTITUTO YORKTOWN, EX-OFICIAL DA MARINHA E VICE-SUBSECRETÁRIO DA MARINHA DOS
EUA.
O assassinato político de Charlie Kirk evidenciou as
divisões que caracterizam a sociedade americana atual e trouxe à tona uma das
principais preocupações que atormentam os Estados Unidos desde sua fundação, há
quase 250 anos. A primeira frase da Constituição dos EUA declara seu propósito:
"Formar uma união mais perfeita". "Formar uma união mais
perfeita" tem sido um desafio constante na política americana, desde o
debate da Convenção Constitucional de 1787 sobre como contar os escravos para
fins de representação no Congresso, até a Guerra Civil.
Outras divisões profundas na política americana incluem o
debate sobre isolacionismo que precedeu o naufrágio do Lusitânia antes da
Primeira Guerra Mundial e um debate semelhante que precedeu o ataque a Pearl
Harbor, que levou os Estados Unidos a entrar na Segunda Guerra Mundial.
Posteriormente, o tratamento dispensado aos afro-americanos dividiu os Estados
do Norte e do Sul até a aprovação, por parte do Congresso, do Civil
Rights Act de 1964.
O assassinato de Kirk é o último de uma série de
assassinatos políticos, cuja onda mais recente começou com as tentativas de
assassinato de Gabby Giffords em 2011 e de Steve Scalise em 2017, ambos membros
do Congresso. Mais recentemente, dois membros democratas da legislatura
estadual de Minnesota foram baleados, um dos quais morreu. O presidente Donald
Trump foi alvo de duas tentativas de assassinato no ano passado. Em abril de
2025, a casa do governador da Pensilvânia, Joshua David Shapiro, foi incendiada.
Também neste ano, um jovem, aparentemente movido por ressentimento pessoal, foi
acusado de assassinar um executivo de uma seguradora de saúde. Graças à
internet, que serve como válvula de escape para uma variedade aparentemente
infinita de patologias sociais, esse jovem se tornou uma espécie de herói
popular.
O que está acontecendo nos Estados Unidos? A retórica
política se tornou acalorada, refletindo a crescente divisão entre os extremos
dos dois principais partidos políticos. A internet alimenta essa divisão, assim
como os discursos dos políticos. A linguagem vulgar passou a fazer parte do
debate público. Um dos lados acusa o outro de fascismo, que por sua vez é
acusado de comunismo. As universidades de elite dos Estados Unidos, após
décadas de declínio progressivo em direção à intolerância a opiniões que divergem
daquelas dos docentes e em direção à tolerância ao antissemitismo, representam
um elemento significativo nessa mistura tóxica que incentiva a demonização de
oponentes políticos e fomenta um clima que alimenta a violência política.
O resultado é que as normas sociais e a coesão que pelo
menos mantinham vivo um discurso civil, se desgastaram e podem ter perdido a
capacidade de moldar comportamentos. Consequentemente, um líder político que
buscava promover mudanças por meio do debate e da argumentação — as formas
legítimas de persuasão — não existe mais.
A questão para a sociedade estadunidense é se é possível
sair da beira deste abismo: a esperança de “aperfeiçoar a nossa união”
desapareceu?
AS VOZES DE DAVID LAPP, COFUNDADOR DA BRAVER
ANGELS, E AMBER LAPP, PESQUISADORA DO INSTITUTE FOR FAMILY STUDIES E
COLABORADORA DO THINK TANK AMERICAN COMPASS.
Em 2010, quando começamos a entrevistar jovens adultos da
classe trabalhadora em uma pequena cidade de Ohio, esperávamos saber de suas
famílias, seus empregos e suas convicções. O que nos surpreendeu, no entanto,
foi o quanto eles falavam continuamente sobre confiança. Durante longas
conversas em cafés ou ao redor de uma fogueira, eles diziam coisas como
"Tenho problemas de confiança" e "não confio em ninguém".
Sinceramente, a confiança não era algo em que pensávamos muito. Crescidos em
ambientes de grande confiança — Amber em uma igreja evangélica muito unida e
David na comunidade Amish —, considerávamos como óbvio. Mas esses jovens
adultos nos contavam que viam o mundo como um lugar onde não se podia contar
com os outros. E que isso tornava extremamente difícil fazer coisas como manter
um emprego ou se casar. As origens dessa desconfiança? Muitos a atribuíram à
fragmentação familiar. Posteriormente, a desconfiança era agravada por locais
de trabalho onde se sentiam explorados e facilmente substituíveis.
A violência política se prolifera em ambientes de baixa
confiança. A confiança é a moeda das sociedades pacíficas: é o que as pessoas
trocam entre si. Ela traz bem-estar e segurança. Quando existe um sólido grupo
intermediário de pessoas confiantes e confiáveis, a polarização e a
radicalização permanecem à margem. Mas quando as pessoas estão menos conectadas
entre elas, as vozes mais destrutivas acabam parecendo representativas. E,
levadas pelo medo e pela autodefesa, aqueles que estão no centro correm o risco
de endurecer o coração e se inclinar para os extremos.
No último mês, organizamos um evento em nossa cidade que
reunirá cidadãos comuns, igualmente divididos entre esquerda e direita, para
uma discussão aberta sobre imigração. O objetivo não é mudar a opinião dos
outros, mas descobrir quais pontos em comum possam porventura já existir. Após
o assassinato de Charlie Kirk, alguém nos contatou para nos dizer que estava
com medo de comparecer ao nosso evento, mas depois decidiu que iria assim
mesmo. Outro, que antes não se interessava, inscreveu-se, em parte para
homenagear Kirk, que acreditava em conversar com aqueles que pensam diferente.
O que antes parecia um diálogo diário agora surge sob uma luz nova, urgente e
até heroica. O que antes parecia muito "kumbaya" (pouco prático e
altamente idealista) agora parece fundamental e essencial. Repetidamente,
ficamos impressionados com a forma como encontros pessoais simples, e muitas
vezes surpreendentes, podem reverter o processo de desconfiança. Se a crise é
pessoal, faz sentido que a solução também seja pessoal.
O TESTEMUNHO DE GRACE, UMA ESTUDANTE DE DIREITO DE 23
ANOS NO TENNESSEE.
O que mais me impressionou no assassinato de Charlie Kirk
foi o lugar onde aconteceu: a universidade. Cresci em Knoxville, Tennessee, em
uma família onde falávamos sobre tudo: política, fé, esportes, até mesmo sobre
quem fazia o melhor churrasco do bairro. Podíamos discutir, mas no final sempre
havia um abraço ou um jogo de futebol para unir a todos. Nos últimos anos,
especialmente quando cheguei à faculdade, percebi que algo estava mudando:
muitos jovens têm medo de expressar suas opiniões. É como se não houvesse mais
aquele espaço seguro onde você pode discutir as coisas sem medo de perder
amigos ou ser julgado. Estamos divididos sobre tudo: da Palestina a Israel, de
Trump a Harris, do beisebol ao basquete. Então, permanecemos em silêncio,
reprimimos as emoções, a raiva. E aqueles que são mais frágeis, mais sozinhos,
às vezes encontram na violência a única maneira de se fazerem ouvir. Isso me
assusta, porque sei que pode acontecer novamente. Porque nos Estados Unidos,
estamos todos muito mais frágeis do que antes, e somos todos menos capazes de
dizê-lo.
O TESTEMUNHO DE TYLER, 24, UM ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO EM
NOVA YORK.
O assassinato de Charlie Kirk me surpreendeu não tanto por
quem era a vítima, mas por parecer inevitável. No meu país, a política agora é
vista como uma demonstração de força: quem grita mais alto, quem aniquila o
inimigo, quem atira, vence. Mesmo para nós, estudantes, está se tornando cada
vez mais desconfortável falar abertamente em sala de aula. Há algum tempo,
quando o professor perguntava por que muitos de nós ficávamos em silêncio
durante debates ou palestras, as respostas eram sempre as mesmas: medo de dizer
a coisa errada, ansiedade social, o risco de ofender alguém está constantemente
presente, mesmo que o tema não seja político. E então você permanece em
silêncio, pelo menos até ter 100% de certeza. Às vezes penso: estou exagerando?
Talvez seja apenas ansiedade juvenil. Mas a polarização está em toda parte, nas
postagens nas redes sociais, nas manchetes, nos comentários que competem para
ver quem está mais indignado. E você sente esse muro invisível entre
"nós" e "eles" crescendo a cada dia. Há outra coisa que me
pesa: temo que, se eu disser algo impopular, isso possa acabar no TikTok ou no
Instagram, circular, ser ridicularizado. É como se toda opinião se tornasse um
risco. Prefiro ficar em silêncio antes que me expor. E, enquanto isso, sinto a
raiva crescendo, que muitos se sentem sozinhos, excluídos e não sabemos nos
confrontar. O que o assassinato de Charlie Kirk tem em comum com tantos outros
massacres é a idade média dos assassinos: são todos muito jovens. E isso não é
um bom presságio.
AS PALAVRAS DE JOHN WOOD JR., EMBAIXADOR NACIONAL DO
MOVIMENTO BRAVER ANGELS.
Não combatemos e não nos matamos simplesmente porque somos
estranhos ou porque não gostamos uns dos outros. A violência política não nasce
apenas por isso. A Guerra Civil americana era o resultado de um processo
histórico no qual o Norte e o Sul se distanciaram culturalmente, desenvolvendo
antipatias regionais e de classe. Os sulistas eram vistos como preguiçosos,
quase incivilizados; os nortistas, como agricultores industriais sujos e
aproveitadores, um povo sem raízes, sem a mentalidade civilizada dos cavalheiros
agrários. Mas essas diferenças culturais foram exacerbadas por conflitos de
interesse relacionados à política: um governo federal cada vez mais poderoso e
uma interpretação constitucional em constante expansão que via a agricultura e
os estados do Sul perderem peso econômico e influência política, aos quais,
mais especificamente, se somava a questão da escravidão.
Quando Abraham Lincoln se candidatou à presidência, insistiu
firmemente que, embora a escravidão fosse um mal, aqueles que a apoiavam eram,
em geral, pessoas boas. O conflito de interesses entre o Norte e o Sul na
política era inevitável, mas Lincoln esperava restabelecer a conexão social e a
familiaridade cultural entre os dois lados, observando em um discurso de
campanha que tivera a sorte de se casar com uma sulista.
Essa tentativa fracassou: o processo de polarização já
estava muito avançado e a escravidão era uma questão muito arraigada. No
entanto, Lincoln estava certo ao acreditar que somente um forte senso de
fraternidade entre os estadunidenses poderia evitar a guerra e a violência
política que um dia lhe tiraria a vida.
Foi precisamente reconhecendo essa realidade que Martin
Luther King Jr. liderou um movimento não violento para reafirmar a comunhão
social e espiritual americana, mesmo em meio a um movimento pelos direitos
civis no qual os interesses materiais e políticos do Sul branco e dos
afro-americanos (e dos liberais em outras áreas do país) estavam claramente em
desacordo. King também foi vítima de violência política, mas, como demonstram
seu legado e o sucesso da integração, sua filosofia de reconciliação estava orientada
na direção certa. "Não buscamos derrotar ou humilhar nossos adversários,
mas conquistar sua amizade e compreensão", ensinou King. Isso desencadeou
uma mudança cultural que perdurou até hoje. Não podemos evitar conflitos de
interesse. Mas podemos fortalecer nossos laços sociais para torná-los
resilientes a esses conflitos, na esperança de transcender a violência.
ANÁLISE DE FEDERICO PETRONI, DA REVISTA GEOPOLÍTICA
ITALIANA "LIMES", ESPECIALISTA EM ESTADOS UNIDOS.
A violência política é uma constante na história
estadunidense. Mas cada aniversário tem suas próprias características. Hoje, a
violência decorre de uma genuína crise de convivência. É um aspecto de uma
doença antissocial que assola os Estados Unidos. Em comparação com o passado,
nos últimos trinta anos, os americanos tornaram-se mais deprimidos, solitários,
viciados, têm menos famílias e menos filhos, muitas vezes criando-os sozinhos.
Encontram-se menos no local de trabalho, vão menos à igreja, têm menos amigos,
não se filiam mais a organizações profissionais e não participam mais de
instituições cívicas. Tendem à autossegregação: falam apenas com aqueles que
compartilham suas opiniões e vivem em bairros separados com base no nível de
escolaridade, que determina sua orientação política.
Democratas e republicanos não se casam mais. Há uma
tendência niilista: eles não acreditam mais em nada, a começar pelas
instituições e pelo sonho americano, a espinha dorsal e a alma do país. Assim,
a política incentiva o ódio. A tragédia dos Estados Unidos hoje é que eles veem
o inimigo não de fora, mas de dentro. Não a China ou a Rússia, mas aqueles que
votam no outro partido. A América necessita ser salva de si mesma, de seu lado
sombrio. Obviamente, cada lado acusa o outro de encarnar essa escuridão. O que
está em jogo é existencial: se seus oponentes vencerem, não haverá mais país
nem democracia. Se perde, extinguirão seu modo de vida, a autêntica religião
nacional.
Pesquisas confiáveis relatam
percepções alarmantes entre minorias
significativas: aqueles que votam no outro partido são
subumanos e animalescos, merecedores da morte. Seus rivais? Fascistas implacáveis ou
comunistas loucos. Eles querem apagar direitos ou a diferença entre homens e mulheres. Essas percepções também são difundidas na Europa. Mas na América, elas produzem a maior intensidade. Sem coesão social, é óbvio que
Washington perderá o controle das guerras estrangeiras
ou que recuará de forma desordenada, livrando-se
dos fardos do império na tentativa de salvar a nação.
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