A Sagrada Escritura na vida do cristão
A Sagrada Escritura nos fala de Jesus Cristo se formos capazes de nos aproximar dela com humildade e nos deixarmos guiar.
11/09/2025
1. Descobrir a Palavra de Deus
Ao relatar os primeiros passos da expansão da Igreja de
Jerusalém ao mundo conhecido, São Lucas nos leva à carruagem de um funcionário
etíope, encarregado da administração do patrimônio do reino de Núbia, ao sul do
Egito, que fora a Jerusalém para adorar o Deus de Israel (cfr. At 8, 27-28). De
regresso a sua terra, este peregrino estava lendo Isaías, embora não entendesse
o texto do profeta. Deus então envia o diácono Filipe para que intervenha (cfr.
At. 8, 26.29): “Filipe aproximou-se e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e
perguntou-lhe: Porventura entendes o que estás lendo? Respondeu-lhe: Como é que
posso se não há ninguém que me explique? E rogou a Filipe que subisse e se
sentasse junto dele” (At 8, 30-31). O superintendente da rainha da Etiópia tinha
se detido naquelas palavras proféticas: “Como um cordeiro foi levado ao
matadouro...” (Is 53,7-8). Filipe, começando por esta passagem, anunciou-lhe o
Evangelho de Jesus” (At 8, 35) e, depois de tê-lo batizado em uma fonte pelo
caminho, confiou-o à ação misteriosa do Espírito Santo, que o tinha aproximado
desta alma “sedenta de Deus, do Deus vivo” (Sl 42 41, 3). Nesta conversa,
comenta São Jerônimo em uma carta, Filipe mostra a seu interlocutor “Jesus que
estava oculto e como que aprisionado no texto”[1].
A Sagrada Escritura abre os olhos da nossa alma à luz do Espírito Santo. Porque
necessitamos do auxílio divino, que nos permite conhecer e amar a Deus.
Há olhos que veem certas coisas, e outros, não: diante de um
edifício, por exemplo, um arquiteto vê detalhes que passam despercebidos a
outros; diante de um pequeno acontecimento que parece comum a muitos, o poeta e
o artista se comovem. A Tradição é o olhar à Escritura que parte da fé da
Igreja; um olhar vivo, porque é guiado pelo Espírito Santo; um olhar certeiro,
porque só a partir do seio da Igreja se pode compreender o verdadeiro alcance
da Palavra de Deus. Como Jesus fazia com os discípulos no caminho de Emaús, o
Espírito Santo faz arder o coração da Igreja e o de cada cristão, enquanto nos
explica as Escrituras (cfr. Lc 24, 32). A Palavra de Deus é sempre uma Palavra
que atravessa os séculos – “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras
não passarão” (Mt 24, 35) – e necessita de um leitor que também atravesse os
séculos: o Povo de Deus que caminha na história. Por isso, afinal de contas,
dizia Santo Hilário que “A Sagrada Escritura está mais no coração da Igreja do
que na materialidade dos livros escritos”[2].
2. A presença de Cristo na Sagrada Escritura
Na sinagoga de Nazaré, Jesus lê o profeta Isaías, que
anuncia sua chegada: “O Espírito do Senhor está sobre mim (...) enviou-me para
anunciar aos cativos a redenção” (Lc 4, 18). Vinte séculos depois, a Escritura
continua falando do presente e ao presente, como dessa vez em Nazaré: “Hoje se
cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir” (Lc 4, 21; cfr. Is 61, 1). Cada
dia, e especialmente aos domingos “a Palavra de Deus é proclamada na comunidade
cristã, para que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério
pascal (...). Deus continua nos falando ainda hoje como seus amigos, ‘convive’
conosco, oferecendo-nos a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua
Palavra faz-se intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente,
resposta fecunda para podermos experimentar concretamente a sua proximidade”[3].
Na Sagrada Escritura nenhum texto pode ser isolado do
conjunto, que tem sua unidade no Verbo de Deus. “Por mais diferentes que sejam
os livros que a compõem, a Escritura é una em razão da unidade do projeto de
Deus, do qual Cristo Jesus é o centro e o coração, aberto depois de sua Páscoa”[4].
O Novo Testamento é lido à luz do Antigo, e o Antigo tendo
Cristo como chave de interpretação, segundo a famosa fórmula de Santo
Agostinho: o Novo está escondido no Antigo, e o Antigo se manifesta no
Novo; Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet[5].São
Tomás de Aquino diz que o coração de Jesus “estava fechado antes da Paixão,
pois a Escritura era obscura. Mas a Escritura foi aberta após a Paixão, pois os
que a partir daí têm a compreensão dela consideram e discernem de que maneira
as profecias devem ser interpretadas”[6].
Por isso, quando o Ressuscitado aparece aos discípulos, São Lucas afirma que
“abriu-lhes o entendimento para que compreendessem as Escrituras” (Lc 24, 45).
Assim faz também Jesus conosco quando deixamos que Ele nos acompanhe no caminho
de nossa vida, através de nossa escuta atenta, de nossa busca sincera; pela mão
dos santos e de tantos irmãos na fé, achamos na Escritura “a voz, o gesto, a
figura amabilíssima de nosso Jesus”[7].
O Prelado do Opus Dei convida-nos a focar mais uma vez
o olhar na “Pessoa de Jesus Cristo, a quem desejamos conhecer, tratar e amar”[8].
E como, no dizer de São Jerônimo, “o desconhecimento das Escrituras é
desconhecimento de Cristo”[9],
a Sagrada Escritura só pode ser mais importante para nós conforme avançamos em
nosso caminho cristão, a ponto de que “respiremos com o Evangelho, com a
Palavra de Deus”[10].
Jesus nos chama a nos identificarmos com Ele, a viver nele.
E Ele nos espera, como dizia com frequência São Josemaria, “no Pão e na
Palavra”[11]:
em sua presença silenciosa e eficaz na Eucaristia, e no diálogo, sempre aberto
por parte de Deus, da oração. Este diálogo, mesmo quando se refere a mil coisas
de nossa vida diária, encontra seu núcleo mais íntimo na Escritura. Seria assim
a oração de Jesus: profundamente radicada na Palavra de Deus. E assim deve ser
também a nossa. “Ao abrires o Santo Evangelho, pensa que o que ali se narra –
obras e ditos de Cristo – não só o tens de saber, como o tens de viver. Tudo,
cada ponto relatado, se recolheu, pormenor a pormenor, para que o encarnes nas
circunstâncias concretas da tua existência – O Senhor chamou-nos, aos
católicos, para que o sigamos de perto e, nesse Texto Santo, encontras a Vida
de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida – Aprenderás a
perguntar tu também, como o Apóstolo, cheio de amor: ‘Senhor, que queres que eu
faça?’... – A Vontade de Deus! – ouvirás na tua alma de modo terminante. –
Então pega no Evangelho diariamente, e lê-o e vive-o como norma concreta. Assim
procederam os santos”[12].
3. Conselhos para ler a Bíblia
“Todos podemos – comenta o Papa Francisco – melhorar um
pouco neste aspecto, tornando-nos todos mais ouvintes da Palavra de Deus, para
sermos menos ricos com as nossas palavras e mais ricos com as suas Palavras.
Penso no sacerdote, que tem a tarefa de pregar. Como pode pregar, se antes não
abriu o seu coração, não ouviu no silêncio a Palavra de Deus? (...). Penso no
pai e na mãe, que são os primeiros educadores: como podem educar, se a sua
consciência não for iluminada pela Palavra de Deus, se o seu modo de pensar e
de agir não se deixar orientar pela Palavra? (...) E penso nos catequistas, em
todos os educadores: se o seu coração não for aquecido pela Palavra, como podem
sensibilizar os corações dos outros, das crianças, dos jovens e dos adultos?
Não é suficiente ler as Sagradas Escrituras, mas é preciso ouvir Jesus que fala
através delas”[13].
Se procurarmos melhorar sempre nesta atitude de escuta, que se nutre igualmente
do estudo e da leitura espiritual, poderemos dizer cada vez mais com o profeta
Jeremias: “Quando encontrava tuas palavras, eu as devorava. Tuas palavras eram
um gozo para mim, as delícias do meu coração” (Jr 15, 16).
A leitura e meditação da Escritura requer tempo e calma. “Na
presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por
exemplo: ‘Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis
mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Por que é que isto
não me interessa?’; ou então: ‘De que gosto? Em que me estimula esta Palavra?
Que me atrai?’”[14]
É necessário também ouvir os silêncios de Jesus. “Sabemos
pelos Evangelhos – escreveu o Papa emérito Bento XVI – que Jesus costumava
passar as noites a orar a sós, "sobre o monte", em diálogo com o Pai.
Sabemos que o seu falar, que a sua palavra provém da permanência no silêncio e
que só no silêncio poderia amadurecer. É revelador, portanto, o fato de que a
sua palavra só possa ser compreendida de modo justo quando se adentra também em
seu silêncio; só se aprende a escutá-la a partir dessa sua permanência no
silêncio. É claro que, para interpretar as palavras de Jesus, é necessária uma
competência histórica que nos ensine a compreender o tempo e а linguagem da
época. Mas isso por si só não basta para colher verdadeiramente, em toda a sua
profundidade, a mensagem do Senhor. Quem lê os comentários aos Evangelhos, cada
vez mais volumosos, que são feitos atualmente fica desapontado no final.
Aprende muitas coisas úteis sobre o passado e defronta-se com muitas hipóteses
que, no final, em nada favorecem a compreensão do texto. No final, tem-se a
sensação de que àquele excesso de palavras falta alguma coisa essencial: entrar
no silêncio de Jesus, silêncio do qual nasce a sua palavra. Se não conseguirmos
entrar nesse silêncio, sempre ouviremos a palavra de modo superficial e assim
não a compreenderemos verdadeiramente”[15].
“Procure ler o Evangelho pelo menos cinco minutos por dia.
Você verá que isso muda sua vida”[16].
O Papa formula este conselho regularmente, em especial durante o Ângelus
dominical[17].
Em outra ocasião, o Papa Francisco disse também: “A palavra
de Deus: ela tem a força para derrotar Satanás. Por esta razão, é necessário
familiarizar-se com a Bíblia: lê-la frequentemente, meditá-la, assimilá-la. A
Bíblia contém a Palavra de Deus, que é sempre atual e eficaz. Alguém disse: o
que aconteceria se tratássemos a Bíblia como tratamos o nosso celular? Se a
trouxéssemos sempre conosco, ou pelo menos o pequeno Evangelho de bolso, o que
aconteceria? Se voltássemos atrás quando o esquecemos: te esqueces do celular —
oh, não o tenho, volto atrás para o procurar; se a abríssemos várias vezes por
dia; se lêssemos as mensagens de Deus contidas na Bíblia como lemos as
mensagens do celular, o que aconteceria? Obviamente a comparação é paradoxal,
mas faz refletir. Com efeito, se tivéssemos sempre a Palavra de Deus no
coração, nenhuma tentação poderia afastar-nos de Deus e nenhum obstáculo nos
poderia fazer desviar do caminho do bem; saberíamos vencer as insinuações
quotidianas do mal que está em nós e fora de nós; seríamos mais capazes de
levar uma vida ressuscitada segundo o Espírito, acolhendo e amando os nossos
irmãos, especialmente os mais débeis e necessitados, e também os nossos
inimigos”[18].
[1] São
Jerônimo, Epist. 53, 5 (PL 22, 544)
[2] Santo
Hilário de Poitiers, Liber ad Constantium Imperatorem, 9 (PL 10,
570).
[3] Francisco,
Misericordia et misera, 6
[4] Catecismo
da Igreja Católica, 112 (cfr Lc 24, 25-27. 44-46; Concilio Vaticano II,
Const. Dei Verbum, 12).
[5] Santo
Agostinho, Quaestiones in Heptateuchum, 2, 73 (PL 34, 623).
[6] São
Tomás de Aquino, Expositio in Psalmos 21, 11 (citado no Catecismo da Igreja
Católica, 112).
[7] Javier
Echevarría, ‘Introdução’ a Enquanto nos falava pelo Caminho, 17
(AGP biblioteca, P18).
[8] F.
Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 8.
[9] São
Jerônimo, Comentariorum in Isaiam, Prólogo (PL 24, 17).
[10] F.
Ocáriz, Carta pastoral, 5/04/2017.
[11] São
Josemaria, É Cristo que passa, n. 122.
[12] São
Josemaria, Forja, n. 754
[13] Francisco,
Discurso, 4/10/2013
[14] Francisco,
Ex. Ap. Evangelii Gaudium (24/11/2013), 153.
[15] Bento
XVI, prefácio à segunda edição de R. Sarah, A força do silêncio (Loyola,
2017).
[16] Tweet
do Papa Francisco de 15 de julho de 2018.
[17] No
dia 3 de janeiro de 2016, ele disse: “E recordo também aquele conselho que dei
muitas vezes: todos os dias ler um trecho do Evangelho, uma passagem do
Evangelho, para conhecer melhor Jesus, para abrir o nosso coração a Jesus, e
assim poder dá-lo melhor a conhecer aos outros. Levem um pequeno Evangelho no
bolso, na bolsa: vai fazer-nos bem. Não esqueçam: ler todos os dias um trecho
do Evangelho”.
[18] Francisco,
Ângelus, 5 de março de 2017.
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