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terça-feira, 23 de setembro de 2025

A Sagrada Escritura na vida do cristão

A Sagrada Escritura na vida do cristão (Crédito: Opus Dei)

A Sagrada Escritura na vida do cristão

A Sagrada Escritura nos fala de Jesus Cristo se formos capazes de nos aproximar dela com humildade e nos deixarmos guiar.

11/09/2025

1. Descobrir a Palavra de Deus

Ao relatar os primeiros passos da expansão da Igreja de Jerusalém ao mundo conhecido, São Lucas nos leva à carruagem de um funcionário etíope, encarregado da administração do patrimônio do reino de Núbia, ao sul do Egito, que fora a Jerusalém para adorar o Deus de Israel (cfr. At 8, 27-28). De regresso a sua terra, este peregrino estava lendo Isaías, embora não entendesse o texto do profeta. Deus então envia o diácono Filipe para que intervenha (cfr. At. 8, 26.29): “Filipe aproximou-se e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e perguntou-lhe: Porventura entendes o que estás lendo? Respondeu-lhe: Como é que posso se não há ninguém que me explique? E rogou a Filipe que subisse e se sentasse junto dele” (At 8, 30-31). O superintendente da rainha da Etiópia tinha se detido naquelas palavras proféticas: “Como um cordeiro foi levado ao matadouro...” (Is 53,7-8). Filipe, começando por esta passagem, anunciou-lhe o Evangelho de Jesus” (At 8, 35) e, depois de tê-lo batizado em uma fonte pelo caminho, confiou-o à ação misteriosa do Espírito Santo, que o tinha aproximado desta alma “sedenta de Deus, do Deus vivo” (Sl 42 41, 3). Nesta conversa, comenta São Jerônimo em uma carta, Filipe mostra a seu interlocutor “Jesus que estava oculto e como que aprisionado no texto”[1]. A Sagrada Escritura abre os olhos da nossa alma à luz do Espírito Santo. Porque necessitamos do auxílio divino, que nos permite conhecer e amar a Deus.

Há olhos que veem certas coisas, e outros, não: diante de um edifício, por exemplo, um arquiteto vê detalhes que passam despercebidos a outros; diante de um pequeno acontecimento que parece comum a muitos, o poeta e o artista se comovem. A Tradição é o olhar à Escritura que parte da fé da Igreja; um olhar vivo, porque é guiado pelo Espírito Santo; um olhar certeiro, porque só a partir do seio da Igreja se pode compreender o verdadeiro alcance da Palavra de Deus. Como Jesus fazia com os discípulos no caminho de Emaús, o Espírito Santo faz arder o coração da Igreja e o de cada cristão, enquanto nos explica as Escrituras (cfr. Lc 24, 32). A Palavra de Deus é sempre uma Palavra que atravessa os séculos – “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mt 24, 35) – e necessita de um leitor que também atravesse os séculos: o Povo de Deus que caminha na história. Por isso, afinal de contas, dizia Santo Hilário que “A Sagrada Escritura está mais no coração da Igreja do que na materialidade dos livros escritos”[2].

2. A presença de Cristo na Sagrada Escritura

Na sinagoga de Nazaré, Jesus lê o profeta Isaías, que anuncia sua chegada: “O Espírito do Senhor está sobre mim (...) enviou-me para anunciar aos cativos a redenção” (Lc 4, 18). Vinte séculos depois, a Escritura continua falando do presente e ao presente, como dessa vez em Nazaré: “Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir” (Lc 4, 21; cfr. Is 61, 1). Cada dia, e especialmente aos domingos “a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã, para que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério pascal (...). Deus continua nos falando ainda hoje como seus amigos, ‘convive’ conosco, oferecendo-nos a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua Palavra faz-se intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente, resposta fecunda para podermos experimentar concretamente a sua proximidade”[3].

Na Sagrada Escritura nenhum texto pode ser isolado do conjunto, que tem sua unidade no Verbo de Deus. “Por mais diferentes que sejam os livros que a compõem, a Escritura é una em razão da unidade do projeto de Deus, do qual Cristo Jesus é o centro e o coração, aberto depois de sua Páscoa”[4].

O Novo Testamento é lido à luz do Antigo, e o Antigo tendo Cristo como chave de interpretação, segundo a famosa fórmula de Santo Agostinho: o Novo está escondido no Antigo, e o Antigo se manifesta no Novo; Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet[5].São Tomás de Aquino diz que o coração de Jesus “estava fechado antes da Paixão, pois a Escritura era obscura. Mas a Escritura foi aberta após a Paixão, pois os que a partir daí têm a compreensão dela consideram e discernem de que maneira as profecias devem ser interpretadas”[6]. Por isso, quando o Ressuscitado aparece aos discípulos, São Lucas afirma que “abriu-lhes o entendimento para que compreendessem as Escrituras” (Lc 24, 45). Assim faz também Jesus conosco quando deixamos que Ele nos acompanhe no caminho de nossa vida, através de nossa escuta atenta, de nossa busca sincera; pela mão dos santos e de tantos irmãos na fé, achamos na Escritura “a voz, o gesto, a figura amabilíssima de nosso Jesus”[7].

O Prelado do Opus Dei convida-nos a focar mais uma vez o olhar na “Pessoa de Jesus Cristo, a quem desejamos conhecer, tratar e amar”[8]. E como, no dizer de São Jerônimo, “o desconhecimento das Escrituras é desconhecimento de Cristo”[9], a Sagrada Escritura só pode ser mais importante para nós conforme avançamos em nosso caminho cristão, a ponto de que “respiremos com o Evangelho, com a Palavra de Deus”[10].

Jesus nos chama a nos identificarmos com Ele, a viver nele. E Ele nos espera, como dizia com frequência São Josemaria, “no Pão e na Palavra”[11]: em sua presença silenciosa e eficaz na Eucaristia, e no diálogo, sempre aberto por parte de Deus, da oração. Este diálogo, mesmo quando se refere a mil coisas de nossa vida diária, encontra seu núcleo mais íntimo na Escritura. Seria assim a oração de Jesus: profundamente radicada na Palavra de Deus. E assim deve ser também a nossa. “Ao abrires o Santo Evangelho, pensa que o que ali se narra – obras e ditos de Cristo – não só o tens de saber, como o tens de viver. Tudo, cada ponto relatado, se recolheu, pormenor a pormenor, para que o encarnes nas circunstâncias concretas da tua existência – O Senhor chamou-nos, aos católicos, para que o sigamos de perto e, nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida – Aprenderás a perguntar tu também, como o Apóstolo, cheio de amor: ‘Senhor, que queres que eu faça?’... – A Vontade de Deus! – ouvirás na tua alma de modo terminante. – Então pega no Evangelho diariamente, e lê-o e vive-o como norma concreta. Assim procederam os santos”[12].

3. Conselhos para ler a Bíblia

“Todos podemos – comenta o Papa Francisco – melhorar um pouco neste aspecto, tornando-nos todos mais ouvintes da Palavra de Deus, para sermos menos ricos com as nossas palavras e mais ricos com as suas Palavras. Penso no sacerdote, que tem a tarefa de pregar. Como pode pregar, se antes não abriu o seu coração, não ouviu no silêncio a Palavra de Deus? (...). Penso no pai e na mãe, que são os primeiros educadores: como podem educar, se a sua consciência não for iluminada pela Palavra de Deus, se o seu modo de pensar e de agir não se deixar orientar pela Palavra? (...) E penso nos catequistas, em todos os educadores: se o seu coração não for aquecido pela Palavra, como podem sensibilizar os corações dos outros, das crianças, dos jovens e dos adultos? Não é suficiente ler as Sagradas Escrituras, mas é preciso ouvir Jesus que fala através delas”[13]. Se procurarmos melhorar sempre nesta atitude de escuta, que se nutre igualmente do estudo e da leitura espiritual, poderemos dizer cada vez mais com o profeta Jeremias: “Quando encontrava tuas palavras, eu as devorava. Tuas palavras eram um gozo para mim, as delícias do meu coração” (Jr 15, 16).

A leitura e meditação da Escritura requer tempo e calma. “Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: ‘Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Por que é que isto não me interessa?’; ou então: ‘De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai?’”[14]

É necessário também ouvir os silêncios de Jesus. “Sabemos pelos Evangelhos – escreveu o Papa emérito Bento XVI – que Jesus costumava passar as noites a orar a sós, "sobre o monte", em diálogo com o Pai. Sabemos que o seu falar, que a sua palavra provém da permanência no silêncio e que só no silêncio poderia amadurecer. É revelador, portanto, o fato de que a sua palavra só possa ser compreendida de modo justo quando se adentra também em seu silêncio; só se aprende a escutá-la a partir dessa sua permanência no silêncio. É claro que, para interpretar as palavras de Jesus, é necessária uma competência histórica que nos ensine a compreender o tempo e а linguagem da época. Mas isso por si só não basta para colher verdadeiramente, em toda a sua profundidade, a mensagem do Senhor. Quem lê os comentários aos Evangelhos, cada vez mais volumosos, que são feitos atualmente fica desapontado no final. Aprende muitas coisas úteis sobre o passado e defronta-se com muitas hipóteses que, no final, em nada favorecem a compreensão do texto. No final, tem-se a sensação de que àquele excesso de palavras falta alguma coisa essencial: entrar no silêncio de Jesus, silêncio do qual nasce a sua palavra. Se não conseguirmos entrar nesse silêncio, sempre ouviremos a palavra de modo superficial e assim não a compreenderemos verdadeiramente”[15].

“Procure ler o Evangelho pelo menos cinco minutos por dia. Você verá que isso muda sua vida”[16]. O Papa formula este conselho regularmente, em especial durante o Ângelus dominical[17].

Em outra ocasião, o Papa Francisco disse também: “A palavra de Deus: ela tem a força para derrotar Satanás. Por esta razão, é necessário familiarizar-se com a Bíblia: lê-la frequentemente, meditá-la, assimilá-la. A Bíblia contém a Palavra de Deus, que é sempre atual e eficaz. Alguém disse: o que aconteceria se tratássemos a Bíblia como tratamos o nosso celular? Se a trouxéssemos sempre conosco, ou pelo menos o pequeno Evangelho de bolso, o que aconteceria? Se voltássemos atrás quando o esquecemos: te esqueces do celular — oh, não o tenho, volto atrás para o procurar; se a abríssemos várias vezes por dia; se lêssemos as mensagens de Deus contidas na Bíblia como lemos as mensagens do celular, o que aconteceria? Obviamente a comparação é paradoxal, mas faz refletir. Com efeito, se tivéssemos sempre a Palavra de Deus no coração, nenhuma tentação poderia afastar-nos de Deus e nenhum obstáculo nos poderia fazer desviar do caminho do bem; saberíamos vencer as insinuações quotidianas do mal que está em nós e fora de nós; seríamos mais capazes de levar uma vida ressuscitada segundo o Espírito, acolhendo e amando os nossos irmãos, especialmente os mais débeis e necessitados, e também os nossos inimigos”[18].


[1] São Jerônimo, Epist. 53, 5 (PL 22, 544)

[2] Santo Hilário de Poitiers, Liber ad Constantium Imperatorem, 9 (PL 10, 570).

[3] Francisco, Misericordia et misera, 6

[4] Catecismo da Igreja Católica, 112 (cfr Lc 24, 25-27. 44-46; Concilio Vaticano II, Const. Dei Verbum, 12).

[5] Santo Agostinho, Quaestiones in Heptateuchum, 2, 73 (PL 34, 623).

[6] São Tomás de Aquino, Expositio in Psalmos 21, 11 (citado no Catecismo da Igreja Católica, 112).

[7] Javier Echevarría, ‘Introdução’ a Enquanto nos falava pelo Caminho, 17 (AGP biblioteca, P18).

[8] F. Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 8.

[9] São Jerônimo, Comentariorum in Isaiam, Prólogo (PL 24, 17).

[10] F. Ocáriz, Carta pastoral, 5/04/2017.

[11] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 122.

[12] São Josemaria, Forja, n. 754

[13] Francisco, Discurso, 4/10/2013

[14] Francisco, Ex. Ap. Evangelii Gaudium (24/11/2013), 153.

[15] Bento XVI, prefácio à segunda edição de R. Sarah, A força do silêncio (Loyola, 2017).

[16] Tweet do Papa Francisco de 15 de julho de 2018.

[17] No dia 3 de janeiro de 2016, ele disse: “E recordo também aquele conselho que dei muitas vezes: todos os dias ler um trecho do Evangelho, uma passagem do Evangelho, para conhecer melhor Jesus, para abrir o nosso coração a Jesus, e assim poder dá-lo melhor a conhecer aos outros. Levem um pequeno Evangelho no bolso, na bolsa: vai fazer-nos bem. Não esqueçam: ler todos os dias um trecho do Evangelho”.

[18] Francisco, Ângelus, 5 de março de 2017.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-sagrada-escritura-na-vida-do-cristao/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF