Paulo
Teixeira - publicado em 16/10/25
Entenda a polêmica da tradução que incomoda, mas é
mantida por especialistas em várias línguas. A resposta não está no dicionário,
mas na história e na teologia.
Estava lendo em casa minha Bíblia e me deparei com o Salmo
47 (46) e, em um dos versos, a palavra "terrível" surge para
descrever o Altíssimo. Logo isso me causou estranheza. Afinal, um Deus de amor,
misericórdia e bondade pode ser chamado de "terrível"? A controvérsia
não é nova, e as traduções litúrgicas oficiais parecem preferir manter a
palavra, mesmo com a existência de sinônimos mais "suaves" como
"sublime" ou "excelso". Mas por quê?
O ponto de partida para essa discussão não é a sensibilidade
do ouvinte, mas a precisão da tradução. Especialistas em Bíblia e linguística,
responsáveis por traduzir os textos sagrados, explicam que a palavra
"terrível" é a que mais se aproxima do original hebraico. Em outras
palavras, não é uma escolha aleatória, mas um esforço para ser fiel ao texto
que saiu do forno há milênios.
O Salmo em sua essência
A questão central é que a tradução de um texto antigo não
pode se basear apenas em dicionários contemporâneos. A palavra hebraica por
trás de "terrível" carrega um significado muito mais complexo do que
o "medonho" ou "violento" que associamos hoje. Para os
antigos, essa palavra evocava uma mistura de reverência, poder avassalador e
admiração.
Imagine a força de um furacão, a grandiosidade de uma
montanha ou o mistério de um eclipse solar. Esses fenômenos são
"terríveis" no sentido de que inspiram uma mistura de medo e
fascínio. Eles nos lembram de nossa pequenez e do poder imenso que os criou. É
essa dimensão de poder transcendente que a palavra "terrível" tenta
capturar.
O que os especialistas argumentam é que sinônimos como
"excelso" ou "sublime", embora agradáveis, já estão
contidos na palavra "Altíssimo", gerando uma redundância. Além disso,
esses termos perdem a nuance de poder e majestade que o termo original
contém.
A Bíblia de Jerusalém e a Bíblia Pastoral, por
exemplo, mantêm a palavra. As Bíblias em línguas românicas (espanhol, francês,
italiano) também a adotam, o que sugere uma escolha técnica e não uma simples
convenção de tradução.
Do medo ao temor: a diferença teológica
A Bíblia está repleta de adjetivos que, à primeira vista,
parecem "duros" para descrever Deus. Ele é o "Justo Juiz",
o "Deus dos Exércitos", e o Credo diz que "há de vir em sua
glória, para julgar os vivos e os mortos". A teologia por trás disso é que
Deus, além de amor, é também justiça. E sua onipotência, expressa no termo
"Todo-poderoso", não significa que ele é um "déspota" ou um
"prepotente", mas que sua força é ilimitada.
Outro exemplo é o "temor de Deus", um dos sete
dons do Espírito Santo. Ele não significa "ter medo" de Deus no
sentido de que ele vai nos punir, mas sim um medo de ofendê-lo, uma profunda
reverência por sua santidade e grandeza.
A tradução litúrgica, portanto, não é um exercício de
"agradar" o fiel, mas de educá-lo. Ao manter a palavra
"terrível", ela convida a uma reflexão mais profunda sobre a
totalidade de Deus: um ser que é amor incondicional, mas também justiça e poder
absolutos.
A sensibilidade moderna pode se chocar com a dureza de
certas palavras, mas a tradição teológica insiste que a Bíblia deve ser
compreendida em seu próprio contexto. Afinal, a tradução perfeita é aquela que
captura não só a letra, mas também o espírito do texto original.
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