O que esperar da Cúpula dos Povos em Belém?
Falta apoio e hospedagem ao evento que ocorrerá em paralelo à COP30, onde movimentos populares serão protagonistas.
Lideranças contam como se organizarão, suas bandeiras, os entraves para receber
cerca de 15 mil indígenas e ativistas e seu projeto de cozinha solidária.
A reportagem é de Brenda Taketa, publicada
por O Joio e o Trigo,
21-10-2025.
Multilateralismo e internacionalização das lutas
Realizada pela primeira vez em paralelo à Rio-92 e, 20 anos depois, à Rio+20,
cada edição da Cúpula dos Povos parte de um longo processo de
debate e organização multilateral de povos e comunidades indígenas e
tradicionais, assim como sindicatos, associações e coletivos de trabalhadores
da América do Sul e de outras partes do mundo.
Os movimentos veem o processo de construção da Cúpula como
um espaço para unificar e internacionalizar as lutas de base, pressionar
governos a fazerem mudanças estruturais necessárias e para criar
“constrangimentos necessários” aos causadores da crise climática.
Pablo Neri, da direção nacional do MST afirma
que um dos fatores que impulsionam os movimentos a colocar mais força na Cúpula
e na presença em Belém durante a COP30 “é
que, nesse momento, com o fracasso do multilateralismo da ONU, o
internacionalismo enquanto entendimento universal dessa relação dos povos, pode
ser uma convocação global para construção de algo diferente”.
No plano nacional, as ameaças aos territórios combinam
velhas e novas práticas e modelos de “desenvolvimento” e vão dos projetos de
construção de rodovias, hidrovias e ferrovias, da ampliação das fronteiras
agropecuárias e da exploração de combustíveis fósseis ao aumento da extração de
minerais de transição e em parques de energias renováveis, como eólicas e hidrelétricas.
“Hoje, na Cúpula dos Povos, se concentram e se mobilizam os
principais movimentos de base popular do Brasil, que ao mesmo tempo fazem a
luta contrária à devastação e às agendas da extrema direita que têm sido
impostas no país”, afirma Cleidiane Vieira, coordenadora do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).
A entrevista foi concedida à beira do Rio Guamá, no
final da tarde do dia 30 de maio, quando a Cúpula realizou um ato político
na UFPA, com representações de diferentes movimentos e setores do
Brasil e de fora. Na ocasião, diversas lideranças destacaram a articulação
internacional como fator estratégico para as lutas estabelecidas em cada país.
“A crise climática é algo que unifica todo mundo. Não é só uma
questão do Brasil, mas nós vivemos, nos últimos anos, na pele, o aumento dos eventos extremos. Não é uma brincadeira,
não é só falação, é uma realidade. Olha o que aconteceu no Rio Grande do Sul, olha o que está acontecendo na Amazônia
todo ano. Secas e cheias”.
Defesa da terra, do território e da natureza
O coordenador do setor político da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), Paulino Montejo, enfatizou que a aliança entre os
diferentes povos passa, historicamente, pela defesa da terra, do território e
da natureza.
Segundo ele, esse alinhamento só é possível porque vai além
da compreensão da terra física como bem passível de compra e venda. Para esses
povos e comunidades, montanhas, rios e florestas são entes vivos e autônomos, e
possuem tanto uma dimensão sagrada quanto formas de uso e presença
compartilhadas por espécies humanas e não-humanas.
“É um fracasso civilizatório essa compreensão de que o
lucro, a acumulação imediata, consequentemente o consumo exacerbado, a
exploração da natureza à exaustão, sem limite, não terá um custo cobrado pela
própria natureza”, critica.
A demarcação e a proteção dos territórios indígenas são,
para o representante da Apib, medidas essenciais para a solução das
crises climática, ambiental e social, além de uma forma de restituir direitos
negados ao longo de 500 anos de genocídios, esbulhos, remoções forçadas,
assassinatos e ecocídios impostos aos povos originários.
Montejo lembra que a participação indígena na
construção do Brasil não foi secundária nem passiva. “Não é de agora que os
povos indígenas dão sua contribuição à formação social do Estado brasileiro.
Foi ao longo da história, inclusive com suas próprias vidas, e até protegendo
as fronteiras tanto no Norte quanto no Sul do país”.
Diante da urgência em ampliar alianças, a Apib tem
investido na campanha “A resposta somos nós”, que convoca a sociedade
brasileira e internacional a se sentir corresponsável na tarefa de proteger as
florestas, os direitos fundamentais e a vida, não apenas dos povos indígenas,
mas de toda a população do planeta.
Nesse espírito, em junho deste ano, o movimento indígena
realizou em Brasília a Pré-COP Indígena, coordenada pela Coalizão das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O evento
reuniu povos originários da Bacia Amazônica para formular a chamada NDC (sigla
em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) Indígena. O documento
reúne compromissos e soluções dos povos indígenas para combater as mudanças
climáticas.
Entre outras exigências, as organizações indígenas querem
que os governos nacionais considerem a demarcação e a proteção de territórios
indígenas como política climática fundamental, implementem planos de adaptação
baseados em saberes tradicionais, garantam acesso direto e proporcional ao
financiamento climático para organizações e territórios indígenas e ponham fim
às explorações minerais e de combustíveis fósseis em seus territórios.
Falsas soluções climáticas
Na mira de outros movimentos também se encontram as chamadas
“falsas soluções climáticas”, representadas por programas, projetos e
instrumentos que partem de lógicas de mercado por vias como a da financeirização da natureza e de iniciativas
“sustentáveis” como o mercado de carbono – impostas aos territórios por
governos e grandes corporações.
O entendimento geral é que, sem diálogo e reconhecimento de
direitos dos povos e comunidades, as desigualdades de acesso a bens essenciais,
como terra e água, e os conflitos históricos nos territórios tendem a se
agravar.
Os movimentos, porém, não trazem apenas críticas. As falas
assertivas contra o modelo de desenvolvimento vigente são acompanhadas de
respostas concretas a problemas tratados como insolúveis por grande parte dos
setores da sociedade brasileira.
Ayala Ferreira, liderança nacional do MST,
relata as experiências do movimento na produção de alimentos saudáveis que são
hoje referência no mundo, como o arroz agroecológico. A expectativa do MST é
que, em breve, a transição para a agroecologia alcance o café e o cacau.
Além disso, o movimento tem investido em parcerias
internacionais para adquirir e produzir máquinas que buscam ampliar a escala da
produção do arroz, com produtividade do trabalho e do menor sofrimento de agricultores familiares e camponeses em
atividades fisicamente extenuantes. Um exemplo disso será a adaptação de
colheitadeiras de arroz para a realidade de Açailândia, região de
baixada alagada no Maranhão, graças à parceria com parques
tecnológicos da China. A ideia é que elas realizem em dois ou três
dias o trabalho humano que, atualmente, demanda mais de um mês para colher
cerca de um hectare de arroz.
Com potencial de solução para velhos problemas urbanos e
rurais brasileiros, outra iniciativa do MST é a pesquisa para
acelerar o tempo e aumentar a escala de produção de adubo orgânico, com base em
novas tecnologias de tratamento do lixo.
Desenvolvida em colaboração com a Universidade de
Brasília (UnB), a inovação usa elementos próprios dos
ecossistemas brasileiros para permitir que grandes quantidades de resíduos,
como os produzidos por uma cidade como Belém, sejam transformados em adubo
orgânico em cerca de sete dias. Em outras circunstâncias, quantidades
inferiores de resíduo levariam em média seis meses para virarem adubo.
Agenda internacional promove mercado de carbono
Em silêncio em relação ao apoio formal à realização da Cúpula,
o governador paraense Helder Barbalho propagandeou durante a Semana
do Clima em Nova York, na semana anterior à
visita de Lula e sua comitiva a Belém, que o Pará pretende
comercializar R$ 40 bilhões em créditos de carbono até 2028, segundo reportagem
veiculada pela CNN.
A promessa é que o mercado de carbono traga muito dinheiro
gerado pela redução do desmatamento. Os recursos, segundo o governo, serão
divididos entre comunidades locais e em políticas de redução de emissões.
As altas expectativas em faturar com créditos de carbono
esbarram, porém, na realidade dos territórios paraenses. Diversos projetos
de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa por Desmatamento
e Degradação Florestal (REDD+) têm sido alvo de críticas e denúncias.
No ano passado, O Joio e o Trigo, em parceria com o Sumaúma,
publicou reportagem sobre conflitos gerados em torno de projetos de carbono
assinados com pelo menos cinco comunidades da Ilha do Marajó.
Em abril deste ano, os Ministérios Públicos Federal (MPF)
e do Estado do Pará (MPPA) recomendaram a anulação de um contrato
de venda de créditos de carbono no valor de quase R$ 1
bilhão. O acordo envolve o governo, a Companhia de Ativos Ambientais do Pará (Caap)
e a Leaf (sigla em inglês para Reduzir Emissões
Acelerando o Financiamento Florestal), coalizão estrangeira de governos
internacionais (como o dos Estados Unidos, Reino Unido, Noruega e República
da Coreia) e de grandes corporações, que incluem Amazon, Bayer, BCG, Capgemini, H&M
Group e Fundação Walmart.
Na época, os MPs argumentavam que o projeto
de REDD+ no Pará ainda estava em fase de construção e os
créditos ainda não existiam como patrimônio do estado no momento da negociação
– o que violaria a Lei Federal nº 15.042/2024, que proíbe expressamente a venda
antecipada de créditos referentes a períodos futuros.
Além da ilegalidade principal, a recomendação apontava uma
série de problemas, como a falta de transparência, a ausência de consulta
prévia, livre e informada às comunidades tradicionais e indígenas, e os riscos
de especulação financeira.
Em maio deste ano, após requerimento feito pela Caap,
o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) suspendeu os efeitos da
recomendação. A decisão permitiu que o processo de captação de recursos
seguisse em curso, mas o caso ainda será analisado em definitivo pelo órgão.
Com direito a foto com o ex-governador da Califórnia e
estrela de Hollywood, Arnold Schwarzenegger, a semana em Nova York foi, segundo
declarações do governador à imprensa, uma oportunidade para fortalecer
alianças, apresentar o Sistema Jurisdicional de REDD+ do
estado e afirmar o protagonismo do Pará no mercado de carbono e na bioeconomia,
tendo como horizonte a COP30.
Para os povos, a conferência será vivida de outros modos e
terminará com um grande banquete para celebrar a partilha de alimentos
produzidos nos territórios com a população de Belém, de outros
estados e os estrangeiros que circularão pela cidade em novembro.
Ao servir comida e exemplo nas ruas, o objetivo da Cúpula
dos Povos, além de ecoar as vozes que não chegam aos grandes salões e
gabinetes blindados por vidros e outros materiais de luxo, é o de afirmar
concretamente alternativas para que o planeta não apenas sobreviva, mas seja
recriado pela via da solidariedade e da imaginação de outros mundos.
Segundo os participantes desse movimento, só assim os
limites e ameaças impostos pela emergência climática e pelas graves desigualdades que
a envolvem poderão ser ultrapassados pelas práticas de esperança realizadas por
quem, de fato, mantém a floresta em pé: os povos e comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais.

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