Do morango do amor ao pudim: por que brasileiros gostam tanto de açúcar?
Autor: André Biernath
Da BBC News Brasil em Londres
14 agosto 2025
Do morango do amor aos
brigadeiros gourmet, passando pelos bolos de pote e ovos de Páscoa
recheados, o Brasil viveu sucessivas "febres" de doces.
Mas, afinal, por que os brasileiros gostam tanto de açúcar?
A história do açúcar no Brasil começa séculos atrás, bem
antes dos doces modernos, e tem relação direta com a colonização
portuguesa.
A cana-de-açúcar,
de onde boa parte do açúcar utilizado no país é extraído, é originária da Papua
Nova Guiné, na Oceania.
Pesquisadores acreditam que ela passou a ser cultivada pelos
seres humanos há cerca de 10 mil anos e, aos poucos, se espalhou pela
Polinésia, pela Ásia e pelo Mediterrâneo.
Mas, durante muito tempo, a oferta de açúcar era bem
limitada e ficava restrita às farmácias, onde havia uso na formulação de
remédios ou como tônico para dar energia.
Isso começou a mudar a partir do século 14, quando Portugal
investiu nas suas primeiras grandes plantações de cana-de-açúcar na Ilha de
Madeira, modelo que foi expandido para o Brasil — em uma escala ainda maior — a
partir do século 16.
O açúcar, então, se tornou a grande commodity da
então colônia portuguesa, que dependia da mão-de-obra dos escravizados nas
lavouras e nos engenhos.
Em seu livro História da Alimentação no Brasil,
o historiador Luís da Câmara Cascudo estima que, entre 1583 e 1587, os 66
engenhos de Pernambuco produziram quase 3 mil toneladas de açúcar.
Ainda que boa parte dessa produção fosse exportada pra
Europa, a facilidade no acesso ao açúcar no Brasil influenciou diretamente as receitas de
bolos e outras sobremesas, além das conservas e compotas com frutas.
"No século 16, você já começa a perceber a alteração
através dos livros de receitas das rainhas, principalmente, a alteração de
receitas que eram feitas com mel ou tinham uma outra configuração. Por exemplo,
o manjar branco, que antes era um prato que não era feito nem com açúcar nem
mel, passa a ser feito com açúcar", explica a historiadora e professora da
USP Vera Ferlini.
"Gradativamente, o açúcar vai entrando como um elemento
da dieta e da constituição de um receituário, principalmente conventual, de
doces, que são os que nós conhecemos: os fios de ovos, vários tipos de pasteis,
esses doces com massas, o pão de ló e tudo aquilo que ainda encontramos na
doçaria portuguesa. Então a doçaria brasileira vai ser uma herdeira dessa
doçaria portuguesa", acrescenta.
Houve ainda a influência dos africanos e dos indígenas, que
de acordo com a pesquisa de Câmara Cascudo, preferiam o gosto que vinha direto
da cana, de frutas como o cupuaçu, o açaí, o guaraná e o caju, ou dos favos de
mel das abelhas.
Mesmo hoje, séculos depois, o Brasil continua sendo o maior
exportador de açúcar do mundo.
A revolução do leite condensado
A partir do século 20, a relação do brasileiro com o açúcar
se diversificou. A industrialização dos alimentos trouxe novos produtos à mesa:
refrigerantes, bolachas recheadas e o leite condensado.
Em 2021, em uma reportagem da BBC
Brasil, a Nestlé disse — citando dados de uma pesquisa do Kantar Ibope,
realizada em 2020 — que o leite condensado estava presente na casa de 94% dos
brasileiros, que consomem em média 6 quilos e meio de leite condensado por ano.
A empresa, que é uma das maiores fabricantes do produto,
afirma que o leite condensado é parte de cerca de 60% das sobremesas feitas no
Brasil, um número sem paralelo em nenhum outro país.
A popularização deste produto, fabricado há mais de 100
anos, se reflete em inúmeras sobremesas no Brasil: no brigadeiro, nos mousses,
pavês e, mais recentemente, no morango do amor.
"O leite condensado junta em um produto só vários
atributos que o brasileiro ama. Porque a gente gosta de coisas doces, bem
doces. E a gente gosta de doces molhadinhos. E o leite condensado é isso. Ele é
úmido, ele é doce, ele traz textura. E ele é neutro, porque a base láctea
permite esses acréscimos do pistache, do chocolate, do morango, do limão, do
maracujá, do coco, do café, da laranja… Então você abre um leque de receitas
com saborização enorme, com uma facilidade de uso imensa", explica a
historiadora Débora Oliveira, autora do livro Dos Cadernos de Receitas
as Receitas de Latinha : Indústria e Tradição Culinária (Editora
Senac).
Curiosamente, as primeiras campanhas de marketing promoviam
o leite condensado como um alimento pra bebês e crianças, uma espécie de
substituto do leite tradicional e das fórmulas infantis.
Uma marca famosa dizia para as mães: "Senhora, não se
aflija com a falta de leite. Há um bom substituto, o único substituto, no qual
você deve ter total confiança."
Não existe nenhuma evidência científica que sustente essas
afirmações — e hoje o consumo de açúcar é
desaconselhado antes dos dois anos de idade.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Nestlé, que
fabrica a principal marca de leite condensado no mercado, para que ela pudesse
comentar o assunto, mas não foram enviadas respostas até a publicação da
reportagem.
Alguns anos depois, o leite condensado passou a trazer
fascículos com receitas, ou instruções de preparo de sobremesas nos próprios
rótulos, que passaram a ser colecionados pelas donas de casa.
Segundo pesquisadores, essas campanhas acertaram ao mirar
exatamente nas principais dores dos consumidores e oferecer uma solução
prática, confiável e barata pra preparar alimentos ligados ao conforto e ao
bem-estar de reuniões de família.
"O Gilberto Freyre tem essa frase no livro dele, que eu
amo, que aqui no Brasil, o doce visita. O doce agradece. O doce dá as
condolências. O doce celebra e tem um papel social. Então, quando nasce alguém,
nasceu seu sobrinho, você vai visitar a criança e não leva um leitão à
pururuca. Você leva um docinho. O doce tem uma função social de ser recompensa,
de ser essa gratidão, onde ele simboliza muito do afeto", afirma Débora
Oliveira, que tem mestrado pela USP.
O antropólogo Gilberto Freyre escreveu livros inteiros sobre
a importância desse ingrediente para a formação da identidade nacional. É o
caso da obra Açúcar: uma Sociologia do Doce, em que ele defende
que, sem o açúcar, não é possível compreender o homem do Nordeste.
O leite condensado também teve impacto em outros setores da
vida pública, como a política.
O próprio nome de um dos doces mais populares do Brasil, o
brigadeiro, teve origem nas eleições de 1945, quando o brigadeiro Eduardo Gomes
candidatou-se à presidência da República. No contexto militar, brigadeiro é uma
das mais altas patentes da força aérea brasileira.
Os apoiadores de Eduardo Gomes criaram o slogan: "Vote
no brigadeiro, que é bonito e solteiro" e distribuíram um novo doce, que
recebeu o mesmo nome, em festas e eventos de campanha.
O doce virou um sucesso, mas não foi suficiente pra garantir
a vitória nas eleições, que sagraram Eurico Gaspar Dutra como o novo
presidente.
Anos depois, o leite condensado voltou à cena política em
uma polêmica, por representar gastos de R$ 15,6 milhões pelo Governo Federal.
Na época, o presidente era Jair Bolsonaro, que compartilhou
diversos vídeos comendo esse ingrediente em um pedaço de pão.
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