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segunda-feira, 20 de março de 2023

III Pregação da Quaresma 2023 “Deus é amor!” - texto integral

Terceira Pregação da Quaresma de 2023 (Vatican Media)

O pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 17 de março, a terceira pregação da Quaresma intitulada "Deus é amor". O Papa Francisco participou deste momento.

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap

“DEUS É AMOR!”

Terceira Pregação, Quaresma de 2023

Há necessidade da teologia!

Para a minha e a sua consolação, Santo Padre, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, esta meditação será centrada toda e apenas sobre Deus. A teologia, isto é, o discurso sobre Deus, não pode permanecer estranha à realidade do Sínodo, como não pode permanecer estranha a qualquer outro momento da vida da Igreja. Sem a teologia, a fé se tornaria facilmente morta repetição; careceria do instrumento principal para a sua inculturação.

Para desempenhar esta tarefa, a teologia necessita, ela própria, de uma renovação profunda. O que o povo de Deus necessita é uma teologia que não fale de Deus sempre e apenas “em terceira pessoa”, com categorias frequentemente tomadas do sistema filosófico do momento, incompreensíveis fora do círculo restrito dos “iniciados”. Está escrito que “o Verbo se fez carne”, mas, na teologia, frequentemente o Verbo se fez somente ideia! Karl Barth desejava o advento de uma teologia “capaz de ser pregada”, mas este desejo me parece ainda estar longe de ser realizado. São Paulo escreveu:

O Espírito sonda tudo, até mesmo as profundezas de Deus... Ninguém conhece o que é de Deus, a não ser o Espírito de Deus. Nós não recebemos o espírito do mundo, mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para conhecermos os dons que Deus nos concedeu (1Cor 2,10-12).

Mas, então, onde encontrar uma teologia que se apoie no Espírito Santo, mais do que em categorias de sabedoria humana, para conhecer “as profundezas de Deus”? É preciso, para isso, recorrer a matérias chamadas “opcionais”: à “Teologia espiritual”, ou então à “Teologia pastoral”. Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização de um ensinamento doutrinal em forma mais abstrata, que lhe fosse anterior e superior. É, ao contrário, o próprio ensinamento doutrinal, em sua forma mais alta. Isto era verdadeiro para a primeira pregação cristã, aquela dos apóstolos, e igualmente verdadeiro para a pregação daqueles que lhes sucederam na Igreja: os Padres, os Doutores e os nossos Pastores na presente hora”[1].

Estou convicto de que não há qualquer conteúdo da fé, por mais elevado, que não possa ser tornado compreensível a toda inteligência aberta à verdade. Se há uma coisa que podemos aprender dos Padres da Igreja é que podemos ser profundos sem ser obscuros. São Gregório Magno afirma que a Sagrada Escritura é “simples e profunda, come um rio em que, por assim dizer, um cordeiro pode caminhar e um elefante pode nadar”[2]. A teologia deveria se inspirar neste modelo. Cada um deveria poder aí encontrar pão para seus dentes: o simples, a sua alimentação, e o douto, alimento refinado para seu paladar. Sem contar que, frequentemente, é revelado aos “pequeninos” o que permanece oculto “aos sábios e entendidos”.

Mas peço desculpas se estiver traindo minha promessa inicial. Não é um discurso sobre a renovação da teologia que pretendo fazer nesta sede. Eu não teria nenhum título para fazê-lo. Gostaria mais de mostrar como a teologia, entendida no sentido acenado, pode contribuir para apresentar de modo significativo a mensagem evangélica ao homem de hoje e a dar nova seiva à nossa fé e à nossa oração.

A mais bela notícia que a Igreja tem o dever de fazer ressoar no mundo, aquela que todo coração humano espera ouvir, é: “Deus te ama!”. Esta certeza deve tirar do lugar e substituir aquela que trazemos dentro de nós desde sempre: “Deus te julga!”. A solene afirmação de João: “Deus é amor” (1Jo 4,8) deve acompanhar, como uma nota de fundo, todo anúncio cristão, mesmo quando deverá recordar, como faz o Evangelho, as exigências práticas desse amor.

Quando invocamos o Espírito Santo – também na presente ocasião do Sínodo –, pensamos primeiramente no Espírito Santo como luz que nos ilumina sobre as situações e nos sugere as soluções justas. Pensamos menos no Espírito Santo como amor; ao contrário, é esta a primeira e mais essencial operação do Espírito de que a Igreja necessita. Somente a caridade edifica; o conhecimento – também teológico, jurídico e eclesiástico – frequentemente não faz outra coisa senão inchar e dividir. Se nos perguntarmos por que estamos tão ansiosos em conhecer (e hoje, tão animados com a perspectiva da inteligência artificial!) e tão pouco, ao contrário, preocupados em amar, a resposta é simples: é que o conhecimento se traduz em poder, o amor, ao invés, em serviço!

O próprio Henri de Lubac escreveu: “É preciso que o mundo saiba: a revelação do Deus Amor inverte tudo o que ele concebera sobre a divindade”[3]. Até hoje não terminamos (nem terminaremos jamais) de tirar todas as consequências da revolução evangélica sobre Deus como amor. Nesta meditação, gostaria de mostrar como, partindo da revelação de Deus como amor, iluminam-se de nova luz os principais mistérios da nossa fé: a Trindade, a Encarnação e a Paixão de Cristo, e torna-se menos difícil fazê-los compreender pelas pessoas.

Por que a Trindade?

Iniciemos do mistério da Trindade: por que nós, cristãos, cremos que Deus é uno e trino? Tenho me encontrado, mais de uma vez, a pregar a palavra de Deus a cristãos que vivem em países de maioria islâmica, nos quais, contudo, há uma relativa tolerância e possibilidade de diálogo, como ocorre nos Emirados Árabes. São pessoas, na maioria imigrantes, empregadas como mão de obra. Às vezes, perguntaram-me sobre o que responder à questão que lhes é dirigida nos lugares de trabalho: “Por que vocês, cristãos, dizem que são monoteístas, se não creem em um Deus uno e único?”.

Digo o que tenho aconselhado a lhes responder, pois é a explicação que deveríamos dar a nós mesmos e a quem nos interroga sobre o mesmo problema. Nós cremos em um Deus uno e trino porque cremos que Deus é amor. Todo amor é amor a alguém, ou a algo; não se dá um amor ao acaso, sem objeto, como não há conhecimento que não seja conhecimento de alguém ou de algo.

Portanto, quem ama a Deus, para ser definido amor? O universo? A humanidade? Mas então é amor apenas há algumas décadas de milhares de anos, isto é, desde quando existe o universo físico e a humanidade. Antes de então, quem amava a Deus para que fosse amor, a partir do momento em que Deus não pode mudar e começar a ser o que, precedentemente, não era? Os pensadores gregos, concebendo Deus sobretudo como “pensamento”, podiam responder, como faz Aristóteles em sua Metafísica: Deus pensava a si mesmo; era “puro pensamento”, “pensamento de pensamento”[4]. Mas isto não é mais possível, do momento em que se diz que Deus é amor, pois o “puro amor de si mesmo” seria apenas egoísmo ou narcisismo.

E eis a resposta da revelação, definida no Concílio de Niceia de 325. Deus é amor desde sempre, ab aeterno, porque antes ainda que existisse um objeto fora de si para amar, tinha em si próprio o Verbo, “o Filho unigênito”, que amava com um amor infinito, que é o Espírito Santo. Se “no princípio era o Verbo” (Jo 1,1), quer dizer que no princípio era o amor!

Tudo isso não explica como a unidade possa ser contemporaneamente trindade, mistério incognoscível por nós porque ocorre somente em Deus. Ajuda-nos, porém, a intuir porque em Deus a unidade deve ser também comunhão e pluralidade. Deus é amor: por isso é Trindade! Um Deus que fosse puro conhecimento ou pura lei, ou poder absoluto, não teria certamente necessidade de ser trino. Isto, ao invés, complicaria as coisas. Nenhum triunvirato e nenhuma diarquia jamais duraram longamente na história!

Também os cristãos creem, portanto, na unidade de Deus e são, por isso, monoteístas; uma unidade, porém, não matemática e numérica, mas de amor e comunhão. Se há algo que a experiência do anúncio demonstra ser ainda capaz de ajudar os homens de hoje, se não para explicar, ao menos para se fazer uma ideia da Trindade, isso, repito, é justamente o que gira em torno do amor. Deus é “ato puro”, e este ato é um ato de amor, do qual emergem, simultaneamente e ab aeterno, um amante, um amado e o amor que os une.

O mistério dos mistérios não é, pensando bem, a Trindade, mas entender o que é, na realidade, o amor! Sendo ele a essência de Deus, não nos será dado entender plenamente o que é o amor nem mesmo na vida eterna. Ser-nos-á dado, contudo, algo de melhor do que conhecê-lo, isto é, possuí-lo e nos saciar dele eternamente. Não se pode abraçar o oceano, mas nele se pode adentrar!

Por que a encarnação?

Passemos ao outro grande mistério para crer e anunciar ao mundo: a Encarnação do Verbo. À luz da revelação de Deus como amor, também isso, veremos, adquire uma nova dimensão. Peço perdão se, nesta parte, talvez eu peça um esforço de atenção superior ao que é lícito pedir aos ouvintes em uma pregação, mas creio que o esforço valha a pena ser feito uma vez na vida.

Retomemos a partir da famosa pergunta de Santo Anselmo (1033-1109): “Por que Deus se fez homem?”. Cur Deus homo? É conhecida a sua resposta. É porque somente alguém que fosse ao mesmo tempo homem e Deus podia nos resgatar do pecado. Como homem, de fato, ele podia representar toda a humanidade e, como Deus, o que fazia tinha um valor infinito, proporcional à dívida que o homem contraíra com Deus ao pecar.

A resposta de Santo Anselmo é perenemente válida, mas não é a única possível, e nem mesmo totalmente satisfatória. No credo, professamos que o Filho de Deus se fez carne “por nós, homens, e para nossa salvação”, mas a nossa salvação não se limita apenas à remissão dos pecados, muito menos de um pecado particular, o original. Sobra espaço, portanto, para o aprofundamento da fé.

É o que buscar fazer o Bem-aventurado João Duns Scotus (1265 - 1308). Deus – afirma ele – se fez homem porque este era o projeto divino originário, anterior à própria queda: isto é, que o mundo – criado “per meio de Cristo e em vista dele” (Cl 1,16) – encontrasse nele, “na plenitude dos tempos”, a sua coroação e a sua recapitulação (Ef 1,10).

Deus, escreve Scotus, “antes de tudo ama a si mesmo; depois, quer ser amado por alguém que o ame em sumo grau fora de si mesmo”; por isso, “prevê a união com a natureza, que devia amá-lo em sumo grau”. Este amante perfeito não podia ser nenhuma criatura, sendo finita, mas somente o Verbo eterno. Este, por isso, teria se encarnado “mesmo que ninguém tivesse pecado”[5]. O pecado de Adão não determinou o próprio fato da encarnação, mas somente a sua modalidade de expiação mediante a paixão e a morte.

No início de tudo, ainda há, infelizmente, como se vê em Scotus, um Deus para amar mais do que um Deus que ama. É um resíduo da visão filosófica do Deus “motor imóvel”, que pode ser amado, mas não pode amar. “Deus – escrevera Aristóteles – move o mundo à medida que é amado”, isto é, enquanto objeto de amor, não quando ama[6]. Em linha com a visão ocidental da Trindade, Scotus põe a natureza divina, não a pessoa do Pai, no início do discurso sobre Deus. E a natureza não é um sujeito que ama! Isso, os nossos irmãos ortodoxos, herdeiros dos Padres gregos, viram mais justamente do que nós, latinos.

Sobre este ponto, a Escritura nos chama a todos, creio, a dar hoje um passo à frente, também em relação a Scotus, sempre conscientes, contudo, de que as nossas afirmações sobre Deus não são outra coisa senão instáveis sinais traçados com o dedo na superfície do oceano. Deus Pai decide a encarnação do Verbo não porque quer, fora de si, alguém que o ame de modo digno de si, mas porque quer ter fora de si alguém para amar de modo digno de si! Não para receber amor, mas para derramá-lo. Ao apresentar Jesus ao mundo, no Batismo e na Transfiguração, o Pai celeste diz: “Este é o meu Filho, o amado” (Mc 1,11; 9,7); não diz: “o amante”.

Somente o Pai, na Trindade (e em todo o universo!), não necessita ser amado para existir; necessita apenas amar. Isto é o que garante o papel do Pai como fonte e origem única da Trindade, mantendo, ao mesmo tempo, a perfeita igualdade de natureza entre as três divinas Pessoas. Há, na origem de tudo, a fulgurante intuição de Agostinho e da escola nascida a partir dele. Ela define o Pai como o amante, o Filho como o amado e o Espírito Santo como o amor que os une[7]. Nisso, também nós, latinos, temos algo de precioso e essencial a oferecer para uma síntese ecumênica. Graças a Deus, uma plena reconciliação entre duas teologias não parece tão difícil e distante. Este seria um passo decisivo em direção à unidade da Igreja.

Por que a paixão?

Vamos agora ao terceiro grande mistério: a paixão de Cristo, que estamos prestes a celebrar na Páscoa. Vejamos como, partindo da revelação de Deus como amor, também isso se ilumina de nova luz. “Por seus ferimentos fomos curados”: com estas palavras, ditas sobre o Servo de Javé (Is 53,5-6), a fé da Igreja expressou o significado salvífico da morte de Cristo (1Pd 2,24). Mas será que chagas, cruz e dor – fatos negativos e, como tais, somente privação de bem – podem produzir uma realidade positiva, como é a salvação de todo o gênero humano? A verdade é que não fomos salvos pela dor de Cristo, mas pelo seu amor! Mais precisamente, do amor que se expressa no sacrifício de si mesmo. Pelo amor crucificado!

A Abelardo, que, já a seu tempo, achava repugnante a ideia de um Deus que se “agrada” com a morte do Filho, São Bernardo respondia: “Não foi a sua morte que lhe agradou, mas a sua vontade de morrer espontaneamente por nós”: “Non mors, sed voluntas placuit sponte morientis”[8].

A dor de Cristo conserva todo o seu valor, e a Igreja jamais deixará de meditar sobre ela: não, porém, como causa, por si mesma, de salvação, mas como sinal e demonstração do amor: “Deus, contudo, prova o seu amor para conosco, pelo fato de que Cristo morreu por nós, quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8). A morte é o sinal; o amor, o significado. O evangelista São João põe como uma chave de leitura no início da sua narração da Paixão: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).

Isso tira da paixão de Cristo uma conotação que sempre suscitou perplexos e insatisfeitos: a ideia, isto é, de um preço e um resgate a ser pago a Deus (ou, pior, ao demônio!), de um sacrifício com o qual aplacar a ira divina. Na realidade, foi mais Deus quem fez o grande sacrifício de nos dar o seu Filho, de não “poupá-lo”, como Abraão fez sacrifício de não poupar o seu filho Isaac (Gn 22,16; Rm 8,32). Deus é mais o sujeito do que o destinatário do sacrifício da cruz!

Um amor digno de Deus

Agora devemos ver o que muda em nossa vida a verdade que contemplamos nos mistérios de Trindade, Encarnação e Paixão de Cristo. E, aqui, aguarda-nos a surpresa que jamais falta quando se busca aprofundar os tesouros da fé cristã. A surpresa é descobrir que, graças à nossa incorporação a Cristo, também nós podemos amar a Deus com um amor infinito, digno d’Ele!

São Paulo escreve que: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5). O amor que foi derramado em nós é aquele mesmo com que o Pai, desde sempre, ama o Filho, não um amor diferente! “Eu neles e tu em mim – diz Jesus ao Pai –, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles” (Jo 17, 23.26). Note-se: “o amor com que me amaste”, não um diferente. É um transbordar do amor divino da Trindade sobre nós. Deus comunica à alma – escreve São João da Cruz – “o mesmo amor que comunica ao Filho, ainda que isto não aconteça por natureza, como no caso do Filho, mas por união[9].

A consequência é que nós podemos amar o Pai com o amor com que o ama o Filho e podemos amar Jesus com o amor com que o ama o Pai. Tudo graças ao Espírito Santo, que é esse mesmo amor. O que damos, então, a Deus de nosso, quando lhe dizemos: “Eu te amo!”? Nada mais do que o amor que recebemos d’Ele! Nada, portanto, absolutamente, da nossa parte? Seria, talvez, o nosso amor a Deus nada mais do que “reverberar” o seu próprio amor para Ele, como o eco retorna o som à sua origem?

Não neste caso! O eco do seu amor retorna a Deus da cavidade do nosso coração, mas com uma novidade que, para Deus, é tudo: o perfume da nossa liberdade e da nossa gratidão de filhos! Tudo isso se realiza, de modo exemplar, na Eucaristia. O que fazemos nela, senão oferecer ao Pai, como “nosso sacrifício”, aquilo que, na realidade, o próprio Pai nos deu, isto é, o seu Filho Jesus?

Podemos dizer a Deus Pai: “Pai, eu te amo com o amor com que te ama o teu Filho Jesus!” E dizer a Jesus: “Jesus, eu te amo com o amor com que te ama o teu Pai celeste”. E saber, com certeza, que não é uma piedosa ilusão! Toda vez que, rezando, procuro fazê-lo eu mesmo, volta-me à mente o episódio de Jacó que se apresenta ao pai Isaac par receber a bênção, passando-se pelo irmão mais velho (Gn 27,1-23). E tento imaginar o que Deus Pai poderia dizer a si mesmo naquele momento: “Realmente, a voz não é mesmo aquela do meu Filho primogênito; mas as mãos, os pés e todo o corpo são os mesmos que meu Filho tomou na terra e trouxe aqui em cima, no céu”.

E estou certo de que Ele me abençoa, como Isaac abençoou Jacó! E os abençoa todos, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs. É o esplendor da nossa fé de cristãos. Espero ter sido capaz de transmitir algum fragmento aos homens e mulheres do nosso tempo, que estão sedentos de amor, mas desconhecem a sua fonte.

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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. H. de Lubac, Exégèse médièvale, I, 2, Parigi 1959, p. 670.

[2] Cf. Gregório Magno, Moralia in Job, Epist. Missoria, 4 (PL 75, 515).

 [3] Cf. Henri de Lubac, Histoire et Esprit, Aubier, Paris 1950.

[4] Cf. Aristóteles, Metafísica, XII,7, 1072b.

[5] Cf. Duns Scotus, Opus Parisiense, III, d. 7, q. 4 (Opera omnia, XXIII, Paris 1894, p. 303).

[6] Cf. Aristóteles, Metafísica, XII,7, 1072b.

[7] Cf. Agostinho, De Trinitate,VIII, 9,14; IX, 2,2; XV,17,31; Ricardo de São Vítor, De Trin. III,2.18; Boaventura, I Sent. d. 13, q.1.

[8] Cf. Bernardo de Claraval, Contro gli errori di Abelardo, VIII, 21-22: “Non mors, sed voluntas placuit sponte morientis”.

[9] Cf. João da Cruz, Cântico espiritual A, estrofe 38,4.

Trabalho escravo

Trabalho escravo | Revista PUB

TRABALHO ESCRAVO

Cardeal Sergio da Rocha 
Arcebispo de Salvador (BA)

Numa época de grandes avanços científicos e tecnológicos, marcada pelo risco de alguém se tornar “escravo do trabalho”, perdura tristemente o trabalho escravo. Notícias a respeito têm sido veiculadas pela mídia, nem sempre recebendo a devida atenção, indignação e resposta efetiva. As vítimas têm o seu clamor sufocado, o que leva as novas formas de escravidão a se perpetuarem e a se agravarem. Dentre elas, estão migrantes provenientes das áreas mais pobres do país e pessoas que sofrem com a miséria e a fome. Notícias recentes sobre a exploração de trabalhadores provenientes do Nordeste, principalmente da Bahia, têm favorecido algum conhecimento e reflexão sobre esta dura realidade. O caso veio a público com particular intensidade, gerando reações de indignação, mas certamente muitas outras situações ocorrem sem conhecimento público, nem a necessária resposta, 

 A capacidade humana de indignar-se perante esta forma de violação da vida e da dignidade das pessoas ainda se manifesta, trazendo esperança. Contudo, a comoção provocada pelo noticiário e pelas redes sociais não é suficiente. É preciso a ação decidida e permanente de autoridades e órgãos públicos, a mobilização da sociedade civil organizada, a participação de igrejas, universidades, meios de comunicação social e organizações de defesa dos direitos humanos. Iniciativas em andamento, como a Rede Um Grito pela Vida, de combate ao tráfico de pessoas, necessitam ser valorizadas e difundidas. 

Além das ações de combate ao trabalho escravo, é preciso investir na sua prevenção. Para tanto, é preciso aprofundar a questão das suas causas para prevenir o surgimento de novos casos.  Há fatores, como a migração forçada em busca de sobrevivência ou melhores condições de vida, que tornam os trabalhadores presas fáceis de trabalho escravo. A miséria e a fome criam um terreno fértil para submeter a condições de escravidão, trabalhadores, migrantes, mulheres e crianças. É preciso combater as causas e não apenas os casos particulares. Além disso, são sempre muito necessárias campanhas veiculando informações e alertas para a população a fim de evitar que as pessoas se tornem vítimas de pessoas ou grupos inescrupulosos que se aproveitam da sua vulnerabilidade social. Sinais de esperança se descortinam no horizonte, como iniciativas de solidariedade e de justiça, ações de superação da miséria e da fome e projetos socioeducativos. Mas, é árduo e longo o caminho a percorrer para eliminar o trabalho escravo.  A complexidade e a gravidade da realidade social não devem ser motivo para a paralisia e o desânimo. É preciso dizer “não” ao trabalho escravo e à escravidão de qualquer natureza, que não condiz com a dignidade da pessoa, “imagem e semelhança” de Deus.

A fé sobrenatural

A fé sobrenatural | Opus Dei

A fé sobrenatural

A fé é uma virtude sobrenatural que capacita o homem a assentir firmemente a tudo o que Deus revelou.

03/01/2015

1. Noção e objeto da fé

O ato de fé é a resposta do homem a Deus que Se revela (cf. Catecismo, 142). “Pela fé, o homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus. Com todo o seu ser, o homem dá seu assentimento a Deus revelador” (Catecismo, 143). A Sagrada Escritura chama este assentimento de “obediência da fé” (cf. Rm 1, 5; 16, 26).

A virtude da fé é uma virtude sobrenatural que capacita o homem – ilustrando sua inteligência e movendo sua vontade – a assentir firmemente a tudo o que Deus revelou, não por sua evidência intrínseca, mas pela autoridade de Deus que revela. “A fé é primeiramente uma adesão pessoal do homem a Deus; é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou” (Catecismo, 150).

2. Características da fé

– “A fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por Ele (cf. Mt 16, 17). Para dar a resposta da fé é necessária a graça de Deus” (Catecismo, 153). Não basta a razão para abraçar a verdade revelada; é necessário o dom da fé.

– A fé é um ato humano. Ainda que seja um ato que se realiza graças a um dom sobrenatural, “crer é um ato autenticamente humano. Não contraria nem a liberdade nem a inteligência do homem confiar em Deus e aderir às verdades por Ele reveladas” (Catecismo, 154). Na fé, a inteligência e a vontade cooperam com a graça divina: “Crer é um ato do entendimento que assente à verdade divina por determinação da vontade movida por Deus mediante a graça”[1].

– Fé e liberdade. “O homem deve responder a Deus, crendo por livre vontade. Por conseguinte, ninguém deve ser forçado contra sua vontade a abraçar a fé. Pois o ato de fé é por sua natureza voluntário” (Catecismo, 160)[2]. “Cristo convidou à fé e à conversão, mas de modo algum coagiu. Deu testemunho da verdade, mas não quis impô-la pela força aos que a ela resistiam” (ibidem).

– Fé e razão. “Apesar de a fé estar acima da razão, jamais pode haver desacordo entre elas. Posto que o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé fez descer no espírito humano a luz da razão, não poderia negar-Se a Si mesmo, nem o verdadeiro contradizer jamais ao verdadeiro”[3]. “Por isso, se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente científica, segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as da fé originam-se do mesmo Deus” (Catecismo, 159).

Carece de sentido tentar demonstrar as verdades sobrenaturais da fé; por outro lado, pode-se provar sempre que é falso tudo o que pretende ser contrário a essas verdades.

– Eclesialidade da fé. “Crer” é um ato próprio do fiel enquanto fiel, isto é, enquanto membro da Igreja. Aquele que crê assente à verdade ensinada pela Igreja, que custodia o depósito da Revelação. “A fé da Igreja precede, gera, conduz e alimenta nossa fé. A Igreja é a mãe de todos os crentes” (Catecismo, 181). “Ninguém pode ter a Deus por Pai se não tem a Igreja por mãe”[4].

– A fé é necessária para a salvação (cf. Mc 16, 16; Catecismo, 161). “Sem a fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11, 6). “Aqueles que sem culpa própria não conhecem o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus de coração sincero e procuram em sua vida, com a ajuda da graça, fazer a vontade de Deus, conhecida através do que lhes dita a consciência, podem conseguir a salvação eterna”[5].

3. Os motivos de credibilidade

“O motivo de crer não é o fato de as verdades reveladas aparecerem como verdadeiras e inteligíveis à luz de nossa razão natural. Cremos 'por causa da autoridade de Deus que revela e que não pode nem enganar-se nem enganar-nos'” (Catecismo, 156).

Entretanto, para que o ato de fé fosse conforme com a razão, Deus quis dar-nos “motivos de credibilidade que mostram que o assentimento da fé não é de modo algum um movimento cego do espírito”[6]. Os motivos de credibilidade são sinais certos de que a Revelação é palavra de Deus.

Estes motivos de credibilidade são, entre outros:

– a gloriosa ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, sinal definitivo de sua Divindade e prova certíssima da veracidade de Suas palavras;

– “os milagres de Cristo e de Seus santos (cf. Mc 16, 20; At 2, 4)” (Catecismo, 156)[7];

– o cumprimento das profecias (cf. Catecismo, 156), feitas sobre Cristo ou pelo próprio Cristo (por exemplo, as profecias sobre a Paixão de Nosso Senhor; a profecia sobre a destruição de Jerusalém etc.). Este cumprimento é prova da veracidade da Sagrada Escritura;

– a sublimidade da doutrina cristã é também prova de sua origem divina. Quem medita atentamente nos ensinamentos de Cristo pode descobrir, em sua profunda verdade, em sua beleza e em sua coerência, uma sabedoria que excede a capacidade humana de compreender e de explicar o que é Deus, o que é o mundo, o que é o homem, sua história e seu sentido transcendente;

– a propagação e a santidade da Igreja, sua fecundidade, sua estabilidade “são sinais certos da Revelação, adaptados à inteligência de todos” (Catecismo, 156).

Os motivos de credibilidade não são ajuda apenas a quem não tem fé para superar os preconceitos que obstaculizam o recebimento dela, mas também a quem tem fé, confirmando-lhe que é razoável crer e afastando-o do fideísmo.

4. O conhecimento de fé

A fé é um conhecimento: faz-nos conhecer verdades naturais e sobrenaturais. A aparente obscuridade que experimenta o crente é fruto da limitação da inteligência humana ante o excesso de luz da verdade divina. A fé é uma antecipação da visão de Deus “face a face” no Céu (1Cor 13, 12; cf. Jo 3, 2).

A certeza da fé: “A fé é certa, mais certa que qualquer conhecimento humano, porque se funda na própria palavra de Deus, que não pode mentir” (Catecismo, 157). “A certeza que dá a luz divina é maior do que a que dá a luz da razão natural”[8].

A inteligência ajuda o aprofundamento na fé. “É característico da fé o crente desejar conhecer melhor Aquele em quem pôs sua fé e compreender melhor o que Ele revelou; um conhecimento mais penetrante despertará por sua vez uma fé maior, cada vez mais ardente de amor” (Catecismo, 158).

A teologia é a ciência da fé: ela se esforça, com a ajuda da razão, por conhecer melhor as verdades que se possuem pela fé; não para torná-las mais luminosas em si mesmas – o que é impossível –, porém mais inteligíveis para o crente. Este afã, quando é autêntico, procede do amor a Deus e vai acompanhado pelo esforço por aproximar-se d'Ele. Os melhores teólogos têm sido e serão sempre santos.

5. Coerência entre fé e vida

Toda a vida do cristão deve ser manifestação de sua fé. Não há nenhum aspecto que não possa ser iluminado pela fé. “O justo vive da fé” (Rm 1, 17). A fé atua pela caridade (cf. Gl 5, 6). Sem as obras a fé está morta (cf. Tg 2, 20-26).

Quando falta esta unidade de vida e se transige com uma conduta que não está de acordo com a fé, esta, necessariamente, debilita-se e corre o perigo de perder-se.

Perseverança na fé: A fé é um dom gratuito de Deus. Mas, podemos perder este dom inestimável (cf. 1Tm 1, 18-19). “Para viver, crescer e perseverar até o fim na fé, devemos alimentá-la” (Catecismo, 162). Devemos pedir a Deus que nos aumente a fé (cf. Lc 17, 5) e que nos faça “fortes in fide” (1Pe 5, 9). Para isto, com a ajuda de Deus, é preciso fazer muitos atos de fé.

Todos os fiéis católicos estão obrigados a evitar os perigos para a fé. Entre outros meios, devem abster-se de ler as publicações que sejam contrárias à fé ou à moral – tanto se as tem assinaladas expressamente o Magistério, como se o adverte a consciência bem formada –, a menos que exista um motivo grave e se deem as circunstâncias que tornem essa leitura inócua.

Difundir a fé: “Não se acende uma luz para pô-la debaixo de um alqueire, mas sobre um candeeiro... Brilhe assim vossa luz diante dos homens” (Mt 5, 15-16). Recebemos o dom da fé para propagá-lo, não para ocultá-lo (cf. Catecismo, 166). Não se pode prescindir da fé na atividade profissional[9]. É preciso informar toda a vida social com os ensinamentos e o espírito de Cristo.

Francisco Díaz

Bibliografia básica

Catecismo da Igreja Católica, 142-197.

Leituras recomendadas

São Josemaria, Homilia Vida de fé, em Amigos de Deus, 190-204.


[1] São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 2, a. 9.

[2] Cf. Concílio Vaticano II, Declar. Dignitatis humanae, 10; CIC, 748, §2.

[3] Concílio Vaticano I: DS 3017.

[4] São Cipriano, De catholicae unitate Ecclesiae: PL 4,503.

[5] Concílio Vaticano II, Const. Lumen gentium, 16.Concílio Vaticano II, Const. Lumen gentium, 16.

[6] Concílio Vaticano I: DS 3008-3010; Catecismo, 156.

[7] O valor da Sagrada Escritura como fonte histórica totalmente confiável pode ser estabelecido com provas sólidas: por exemplo, as que se referem à sua antiguidade (vários dos livros do Novo Testamento foram escritos poucos anos depois da morte de Cristo, o que dá testemunho de seu valor), ou as que se referem à análise do conteúdo (que mostra a veracidade dos testemunhos).

[8] São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 171, a. 5, ad 3.

[9] Cf. São Josemaria, Caminho, 353.

Papa Francisco: “o caminho para sermos felizes é a simplicidade”

Papa Francisco com membros da União Nacional Italiana Atrações Intinerantes
(Vatican Media) 

O Santo Padre recebeu na manhã desta segunda-feira, no Vaticano os membros da União Nacional italiana Atrações itinerantes.

Silvonei José – Vatican News

“Caros irmãos e irmãs, avancem em seu trabalho itinerante! Em um mundo onde muitas vezes respiramos um clima cinzento e pesado, vocês nos lembram que o caminho para sermos felizes é a simplicidade”: foi o que disse o Papa Francisco recebendo na manhã desta segunda-feira, no Vaticano os membros da União Nacional italiana Atrações itinerantes.

Após agradecer as palavras do presidente da Associação, o Santo Padre recordou que a pandemia os impediu de realizar suas atividades habituais, viajando de praça em praça com suas atrações. Sei que a Fundação Migrantes tem estado perto de vocês, - disse Francisco – “encorajando-os a seguir em frente com espírito de fé e esperança. Agora, graças a Deus, vocês puderam retomar suas atividades”.

O Pontífice reafirmou que a Igreja continua a acompanhá-los na proclamação do Cristo Salvador, que viajou por cidades e vilarejos levando a todos a alegre proclamação do Reino de Deus.

Vocês também cooperam em um sentido amplo na proclamação do Evangelho - destacou o Papa -, por causa da alegria que levam às pessoas com suas atrações. “É por isso que vos encorajo a manter sempre o coração e a vida abertos a uma perspectiva de fé, que nasce do encontro com Cristo, presente e em ação em sua Igreja”, disse.

O Santo Padre sublinhou que detendo-se com seus carrosséis nas cidades, “vocês oferecem às crianças e adultos momentos de descontração, distraindo-os um pouco das preocupações que assolam a vida cotidiana. A felicidade de uma criança em um carrossel é uma imagem de alegria limpa que pertence à memória de cada família”.

A sensação de alegria e de festa que se espalha brota da criatividade e fantasia, - disse ainda o Papa Francisco - não segue os modelos artificiais e conformista que circulam na mídia; alimenta-se não pela busca de sensações sempre novas, mas pela simplicidade e genuinidade que se pode respirar em um parque de diversões.

“Caros irmãos e irmãs, avancem em seu trabalho itinerante! Em um mundo onde muitas vezes respiramos um clima cinzento e pesado, vocês nos lembram que o caminho para sermos felizes é a simplicidade; e também uma forma de diversão ao ar livre e em companhia: o oposto do que vemos cada vez mais hoje, todos sozinhos com seu telefone celular ou seu computador”.

Francisco destacou que eles convidam as pessoas a sair, a se encontrarem na praça, a se divertirem juntas, por isso agradeceu as pessoas presente por isso. E concluiu: “e agradeço-lhes porque, afinal, vocês nos lembram que não fomos feitos apenas para trabalhar, mas também para a festa, e Deus se alegra quando celebramos juntos como irmãos na simplicidade”.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

domingo, 19 de março de 2023

Em que se resume a Lei e os profetas?

DyziO | Shutterstock
Por Julia A. Borges

Na Grécia antiga, dizia-se: “matas, morre”. Entenda:

“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” (Mt 5, 17-19).

A análise da passagem acima remete à época do Antigo Testamento, na qual a Lei era o conjunto de normas e prescrições aos quais os judeus deveriam fazer pleno cumprimento, ou, de forma mais pragmática, o que não se devia fazer. Já a menção aos profetas seriam os exemplos a serem seguidos a fim de impulsionar o povo a agir em conformidade com o bem moral revelado na Lei. E sob ela havia partes diferentes dentre as quais a lei natural, inscrita no coração do homem pelo próprio Criador e manifesta através dos Dez Mandamentos, e também uma série de práticas e cumprimentos que deveriam ser seguidos nas esferas jurídicas e também cerimoniais à época dos antigos hebreus.

Lei de Talião

A par disso, é de grande valia reportar-nos a períodos remotos nos quais a lei pujante era praticada através do Código de Hamurabi que ficou conhecida como a lei de Talião, que previa a punição do criminoso de forma semelhante ao crime cometido. Na Grécia antiga, dizia-se: “matas, morre”.

Acerca do pensamento contemporâneo, seria mais ou menos o que é conhecido como a terceira lei de Newton, ou seja, toda ação corresponde a uma reação de igual intensidade, mas que atua no sentido oposto. Isaac Newton percebeu que a toda ação correspondia uma reação. A descoberta científica vai além da física pura e aplicada, e basta olhar para o lado (e talvez para dentro de si também) que se percebe a insistência em se fazer cumprir a lei do retorno.

Talvez o leitor esteja a pensar que essa referida lei é excelente, afinal, dessa forma, ocorre a justiça, a qual tanto a sociedade persegue, ou diz almejar. Entretanto, não se trata de abolir as leis ou pregar um mundo anarquista onde cada uma possa agir segundo a sua própria vontade ou segundo seus próprios parâmetros. Até porque se esse caminho fosse seguido, entrar-se-ia em um verdadeiro caos.

Nova Aliança

É fato que a justiça deve ser entendida e almejada, assim deve-se viver e conviver em sociedade. Mas a graça que recebemos todos os dias não é pela justiça, afinal qual é o nosso mérito ao ser digno de tamanha benevolência? Somos agraciados única e exclusivamente por causa do amor de Deus. E se somos chamados a ser a Sua imagem, assim também devemos agir para com os nossos irmãos. 

Com o advento da Nova e Eterna Aliança de Cristo Jesus, as normas acerca dos rituais e também da esfera jurídica foram ultrapassadas e aperfeiçoadas pelo Salvador que as sintetizou na Lei do amor (cf. Jo 13, 35; 15, 12), mas que dessa vez não fora mais escrita em tábuas de pedras, mas gravadas no coração dos homens.

É a lei da misericórdia a qual Jesus nos convida a seguir – “Sejam misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso. “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados.” (Lucas 6: 36-37).

É também a Lei do perdão que Cristo nos convida seguir: “Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes? Jesus respondeu: “Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete.”(Mateus 18:21-22).

É tempo de quaresma, é tempo de virar pó, de morrer para a carne, para as coisas mundanas e para a justiça da ação e reação. É tempo de olhar para as coisas do alto, de se deixar queimar pelo fogo do Espírito Santo, de mergulhar em águas profundas e perceber que ao cumprir a Lei do Amor, não se corre o risco de entrar na prisão do egoísmo, da ira; na prisão do pecado.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

Da Mesopotâmia à China

Povos da Mesopotâmia | Brasil Escola/UOL

Da Mesopotâmia à China

Como a fé em Jesus Cristo chegou até a China pela Ásia Central no primeiro milênio, graças a uma Igreja que a maioria desconhece.

de Lorenzo Cappelletti

A surpresa de Marco Polo, quando encontrou cristãos nas longínquas terras chinesas, é a mesma que se apodera ainda hoje da maior parte dos cristãos no Ocidente, quando ouve falar da existência de comunidades cristãs presentes desde a mais distante Antiguidade a leste das fronteiras do Império Romano, no interior dos vastos territórios da Ásia Central, da Pérsia e até da Índia e da China. São comunidades um pouco apressadamente chamadas de nestorianas, pois na época do Concílio de Éfeso (431), que condenou o patriarca constantinopolitano Nestório, ficaram fiéis à tradição teológica antioquena, da qual provinha Nestório, contra o extremismo da corrente teológica alexandrina (mostrando visão de futuro, pois, é forçoso dizer, esta estava levando a desvios monofisistas). Mesmo porque já antes do Concílio de Éfeso, essas comunidades tinham pretendido tomar distância da Igreja de Estado romana. Desde o início do século III, esses cristãos tinham um patriarca seu ( katholikos), com sede em Selêucia-Ctesifonte, às margens do Tigre, cuja autonomia nasceu da necessidade de mostrar a independência desses cristãos em relação ao Império Romano, que constituía havia séculos o inimigo por excelência do mundo persa. Mais que um distanciamento em nível dogmático, em outras palavras, sua autonomia tendia a evitar incompreensões e perseguições.

O berço dessa Igreja siro-oriental (denominação que, pelo que dissemos até aqui, condiz mais com sua natureza que “nestoriana”) foi a região noroeste da Mesopotâmia, área de fronteira entre o Império Romano e o Persa. Desde a metade do século II se estabeleceram nessa região, que bem cedo se estendeu para o oriente, comunidades cristãs ligadas à Igreja de Antioquia, Igreja de caráter pluralista e aberto ao mundo pagão, como sabemos pelos próprios Atos dos Apóstolos.

Quando os persas, no século IV, ocupam a parte da região mesopotâmica sujeita a Roma, as deportações, também de cristãos, fazem crescer as comunidades cristãs do Oriente persa. Estas se desenvolverão, apesar de alguns períodos de perseguição entre os séculos IV e V, não apenas dentro do Império Persa, mas também a leste dele.

A cidade de Herat, que infelizmente vemos vez por outra nos jornais apenas pelo fato de serem o quartel-general do contingente italiano no Afeganistão, foi sé arquiepiscopal a partir de 585. Da mesma forma, outras cidades e regiões de nome mítico e exótico foram sedes de comunidades cristãs que floresceram ao longo da rota da seda. Merw, a atual Mary, no Turcomenistão, considerada a porta da Ásia, já era sé episcopal e rica em mosteiros no século IV. Samarcanda e Tashkent, no Uzbequistão, na região além do rio Oxus (o atual Amu Darya), foram o lugar de encontro com os sogdianos, mercadores nômades que, por sua vez, levaram o cristianismo para o Extremo Oriente. De fato, a sua língua, que era usada em toda a Ásia Central para as trocas e o comércio, tornou-se também o meio de comunicação que permitiu ao cristianismo chegar no final do século VI a algumas tribos turco-mongóis do Altai e depois, a partir do oásis de Turfan, ao território chinês, indo até a capital imperial Chang an.

Atualmente, os herdeiros da tradição siro-oriental, que tem em comum o siríaco como língua litúrgica, são os caldeus católicos do Iraque e do Irã (cerca de 700 mil no total), em plena comunhão com Roma desde 1553, guiados pelo patriarca da Babilônia dos Caldeus (Bagdá), e a Igreja assíria do Oriente (menos de 300 mil fiéis), que não está em plena comunhão com Roma e até pouco tempo atrás era chamada “nestoriana”, mas com a qual foi firmada em 11 de novembro de 1994 uma declaração comum concernente a profissão da fé em Jesus Cristo e, ainda mais recentemente (20 de julho de 2001), estabeleceram-se orientações para a admissão à eucaristia, de modo a promover uma crescente comunhão entre a Igreja caldeia e a Igreja assíria do Oriente. Podem também ser considerados pertencentes à tradição siro-oriental os quase quatro milhões de siro-malabarenses da costa ocidental da Índia.
Sem querermos ser professorais, talvez valha a pena propor algumas indicações bibliográficas muito simples, pelo fato de a questão envolver temas e lugares extremamente distantes do nosso horizonte habitual e, com isso, corrermos o risco de nos perder. Um breve panorama sobre a atualidade das Igrejas do Oriente pode ser encontrado numa obra de Ronald Roberson, The Eastern Christian Churches. A Brief Survey, que em 2008 chegou a sua sétima edição e contém também uma rica bibliografia. E, se o leitor quiser um manual em italiano de caráter histórico sobre o tema, podemos sugerir a obra em três volumes de Giorgio Fedalto, Le Chiese d’Oriente, ou então Le Chiese d’Oriente. Identità, patrimônio e quadro storico generale, de Filippo Carcione, ambos de meados da década de 1990. Mais propriamente sobre a história que liga a Antioquia apostólica à China, é possível consultar La via radiosa per l’Oriente, de Matteo Nicolini-Zani, de 2006. “De fato, não é possível isolar o cristianismo que floresceu na China no primeiro milênio de sua origem médio-oriental e de seu percurso de expansão centro-asiática” (p. 20). Recentemente (2008), com organização de Ilaria Ramelli, foram publicados (acompanhados de rica bibliografia) os Atti di Mar Mari, ou seja, o relato da primeira evangelização da Mesopotâmia, por obra de Mari, discípulo de um dos setenta discípulos do Senhor. Concluindo poderíamos indicar o livro do cardeal Etchegaray, Vers les chrétiens en Chine, vus par une grenouille au fond d’un puits (2005), no qual fala das suas quatro viagens à China.

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF