Translate

sexta-feira, 23 de maio de 2025

O sono faz bem ao corpo, mas pode prejudicar o espírito

fizkes | Shutterstock

Aleksander Banka - publicado em 30/11/23

O sono é necessário para a nossa saúde, não há dúvida. No entanto, pode ser prejudicial à saúde da nossa alma.

Será que existe alguém que não gosta de dormir? Na verdade, dormir é algo muito prazeroso e saudável: descansa a mente, regenera o corpo e libera tensões mentais. A falta de sono altera muitas funções e processos biológicos do corpo humano.

É por isso que é tão importante dormir bem, e os distúrbios do sono são um problema sério. Em outras palavras: com o sono saudável, não há só um corpo, mas também um espírito são. 

O outro lado

Porém, o sono, embora bom e necessário por si só, às vezes pode esconder outra coisa: torna-se um lugar onde nos refugiamos de problemas que não podemos resolver ou que não queremos enfrentar. Depois refugiamo-nos no sono, um pouco como a proverbial avestruz que, em vez de enfrentar o perigo, finge não estar ali, enterrando a cabeça na areia. Às vezes, o sono também é uma manifestação de doença, como a sonolência que acompanha alguns casos de depressão.

Portanto, entre a vida ativa e o descanso, do qual o sono é parte essencial, deve haver uma harmonia bem compreendida. Para não perder esta harmonia, para que o sono - no bom sentido da palavra - sirva ao corpo, os professores cristãos da vida espiritual recomendavam vigílias. Tratava-se, portanto, de restringir periodicamente o sono e subordiná-lo a uma vontade que levasse a vigília orante num determinado período de tempo normalmente dedicado ao sono.

O objetivo de tal ação era a necessidade de dominar as necessidades do corpo e integrá-las a um determinado processo espiritual e, assim, integrar as diferentes esferas da personalidade humana em torno do valor supremo, que era o relacionamento com Deus. Porque é isso que pertence à essência do despertar espiritual.

"Eu durmo, mas meu coração está acordado"

No Evangelho de São Lucas, encontramos as seguintes palavras: "Bem-aventurados os servos a quem o senhor achar vigiando, quando vier! Em verdade vos digo: ele há de cingir-se, dar-lhes à mesa e os servirá” (Lucas 12,37). 

Pois, enquanto o sono faz bem ao corpo, o oposto ocorre com o espírito, significando uma espécie de letargia, indiferença e estagnação ou submissão direta às necessidades do corpo. Isto é, obviamente, uma metáfora. O espírito, entendido como a parte mais profunda da alma humana, o “lugar” imaterial de encontro com Deus, não necessita de sono, ao contrário do corpo.

Porém, quando está “adormecido” – voltado para o corpo, dominado pelas suas necessidades, imerso nos desejos materiais e nas paixões carnais – então o homem perde a sua perspectiva sobrenatural e a sua existência, a sua dimensão espiritual.

É por isso que Jesus nos convida a estar vigilantes, ainda mais: a estarmos espiritualmente despertos, para não perdermos o que há de mais precioso em nós: a nossa orientação para Deus e a nossa relação com Ele.

Se cuidarmos disto, se - na nossa vida espiritual - a vigília, entendida como uma relação constante, fiel e confiante com Deus, não for apenas um acontecimento aventureiro, mas uma parte permanente da nossa vida cotidiana, então poderemos dizer como a esposa do Cântico dos Cânticos: "Eu dormia, mas meu coração velava."

Fonte: https://pt.aleteia.org/2023/11/30/o-sono-faz-bem-ao-corpo-mas-pode-prejudicar-o-espirito

Novos corações serão criados: Matrimônio e celibato apostólico (1) – Parte II

Lanternas de papel (Opus Dei)

Novos corações serão criados: Matrimônio e celibato apostólico (1) – Parte II

Como amar a Cristo, uma pessoa viva a quem não vemos? E como amar os outros como Ele nos amou? No matrimônio e no celibato, o Espírito Santo transforma nossos sentidos para tornar nosso coração semelhante ao Dele.

22/05/2025

Um processo que conta com nossas fraquezas

Quando Jesus sobe ao céu e envia seu Espírito para, dessa forma, estar junto a cada um de nós, de um modo novo, “todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28,20), o que Ele queria nos entregar exatamente? O que Ele continua nos oferecendo? Jesus conhece nossas dificuldades para conhecê-lo e para amá-lo. “Não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se de nossas fraquezas” (Hb 4,15), diz São Paulo. Jesus sabe que o desejo de comunhão que reside em nós foi ferido pelo pecado, que muitas vezes nos leva a agir às cegas, com expectativas falsas, com uma consciência equivocada de nosso próprio valor. E o Espírito Santo vem curar em todos, solteiros e casados, esse desejo de dar e receber amor. Deus vem facilitar que encontremos a verdadeira fonte da vida, que é Ele mesmo: “tem sede de que nós tenhamos sede dele”[12].

O Espírito enviado por Cristo vem resgatar a capacidade dos discípulos para conhecê-lo e amá-lo, às vezes até usando seus próprios pecados. Pedro, por exemplo, aprende que sua traição não tem a última palavra, e que aquilo não deve obscurecer sua visão ou seu coração. Jesus mesmo reacende sua vida, perguntando-lhe sobre o verdadeiro amor que está no fundo de seu coração, para lançá-lo novamente à missão: “Apascenta minhas ovelhas” (v. 17). A ressurreição de Cristo e o envio do Espírito Santo em Pentecostes nos lembram que podemos receber um fogo para conhecer e amar de modo novo, independentemente da nossa idade ou do que possa acontecer. Ernesto Cofiño[13], já com mais de cinquenta anos de idade, decidiu abrir-se mais intensamente a esse trabalho do Espírito Santo. Sua esposa percebeu que algo novo estava acontecendo e, talvez para encorajar esse impulso, disse a quem ajudava Ernesto espiritualmente: “Eu não sei o que vocês fizeram com meu marido (…) mas é uma maravilha!”[14]. Esta oferta do Senhor – esta graça – pode ser aproveitada por “todos os que tiverem um coração grande, ainda que tenham sido maiores as suas fraquezas”[15].

Força que podemos moldar junto de Deus

Uma vez cheios do Espírito Santo, o Senhor nos impulsiona à missão de modos variados. Envia Maria Madalena para anunciar aos apóstolos que ressuscitou; envia os apóstolos para proclamar o Evangelho ao mundo inteiro; Marta, Maria e Lázaro podem ser vistos como um modelo de acolhimento a Cristo em seu próprio lar. Assim, cada santo é uma expressão de amor, movida pelo amor de Deus. Essa maleabilidade ou flexibilidade da nossa capacidade de amar é uma característica natural do ser humano que o Senhor reforça. Graças à liberdade, não estamos necessariamente escravizados aos nossos impulsos, como a vida animal, mas somos capazes de escolher o que amar, quanto amar e como amar.

Nas pessoas casadas, essa flexibilidade permite moldar a vida matrimonial conforme as fases da vida. O amor experimentado no início do namoro adquire nuances diferentes ao longo do tempo, com a paternidade e a maternidade, e pode continuar a se desenvolver à medida que enfrentamos tempos de prosperidade e crise. Quando o amor de Deus está no centro desse projeto, o casamento encontra uma âncora e uma fonte inesgotável de amor e de vida. Tomás Alvira[16], já na maturidade, em uma conferência que ministrou para avós, refletiu sobre sua própria experiência e disse: “O que são setenta ou oitenta anos diante de uma eternidade? Nada. Diz-se que, comparado à eternidade, todo homem é sempre jovem (…). Um jovem de dezesseis ou dezoito anos, com músculos bem desenvolvidos, se sente jovem ao ajudar um idoso a se levantar ou a carregar um objeto pesado. Uma pessoa mais velha não tem os músculos fortes para realizar essas tarefas, mas pode ter um espírito firme, sentir-se jovem espiritualmente e ajudar os jovens, seus netos, abrindo-lhes caminhos e as melhores rotas que conhece por sua experiência”[17]. Assim, tanto uns como outros vão descobrindo a maneira de amar própria da sua idade, impulsionados pelo Espírito Santo, que conserva um amor sempre jovem, brotando do eterno e infinito coração de Deus.

A flexibilidade dessa força, desse amor, também se manifesta quando ele parece ser instável, ou seja, quando surge com vigor e não conseguimos direcioná-lo como gostaríamos. Vemos isso, por exemplo, nas infidelidades, assim como quem alimenta desejos mundanos ou em quem gera relações tóxicas ou abusivas. Esses casos costumam expressar um desejo descontrolado de amar e ser amado, mostrando até que ponto o pecado original enfraqueceu a condição humana. “Sinto-me capaz de todos os horrores e de todos os erros que as piores pessoas cometeram”[18], dizia São Josemaria. Por isso, podemos concluir com Santo Agostinho: “O homem é realmente um grande mistério (...) os cabelos são muito mais facilmente enumeráveis do que as afeições e sentimentos do coração”[19].

Contudo, a vida de Cristo nos lembra que a grandeza dessa força de amar pode não apenas ser resgatada, mas também moldada maravilhosamente pelo Espírito Santo. Isso se aplica até mesmo a situações em que uma tentativa de vida matrimonial fracassou ou a momentos de dificuldade especial. Vemos como o amor de Jesus acolhe com ternura a todos: crianças e idosos necessitados; fortalece os apóstolos jovens e os que parecem já ter uma vida estabelecida; oferece amizade aos que levarão a semente do Evangelho para longe de seu lar e aos que evangelizarão a partir de casa.

Ele também dedica muita atenção àqueles que o consideram adversário, fariseus, saduceus e mestres da lei, e até tenta atrair Judas Iscariotes até o fim. Em resumo, seu amor se dirige não apenas à sua família em Nazaré, a seus amigos próximos ou aos de sua região, mas a todo aquele que deseja se abrir ao amor de Deus, em qualquer circunstância: essa é sua família (cf. Mc 3,35).

Essa grande flexibilidade da capacidade de amar, que Cristo deseja que também surja em nós – sustentada, fortalecida e moldada pelo Espírito Santo –, é a que torna possível a grandeza tanto do matrimônio quanto do celibato, para casados e solteiros.

O fluxo de amor que brota no coração humano pode se direcionar tanto ao cônjuge e à própria família quanto se expandir – à imagem de Jesus – para a grande família do Senhor, vivendo como Ele mesmo viveu. O Espírito Santo habita essa flexibilidade da nossa capacidade de amar e eleva qualquer caminho humano.

Por isso, seguindo os ensinamentos de São Josemaria, o prelado do Opus Dei, Mons. Fernando Ocáriz, recorda que “o matrimônio é um ‘caminho divino na terra’”, e que, por sua vez, o celibato é “um chamado a uma especial identificação com Jesus Cristo, que também comporta, inclusive humanamente, mas sobretudo sobrenaturalmente, mais capacidade para querer bem a todo o mundo. Daí que o celibato, que não conta com a paternidade e a maternidade físicas, torne possível uma maternidade ou paternidade espirituais muito maiores”[20]. Por isso, pedimos na tradicional oração ao Espírito Santo: “Vinde Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai o vosso Espírito e tudo será criado. E renovareis a face da terra”. Então, em quem vive o celibato, ou está casado, nos solteiros e viúvos, novos corações serão criados.

***

Com a ausência física de Cristo e com a efusão do Espírito Santo em Pentecostes, os apóstolos iniciavam uma etapa diferente. Tudo permanecia igual e, ao mesmo tempo, tudo mudava. Em certo sentido, a missão agora estava mais em suas mãos. Continuariam a fazer o mesmo, mas com uma autonomia especial. Esse fato demonstra até que ponto o Senhor valoriza e confia em nossa liberdade para continuar a buscá-Lo, compreender o caminho e decidir o rumo da nossa missão. Por isso, em qualquer caminho ao qual Deus nos chama, o crescimento como apóstolos passa por formar verdadeiramente um time com o Espírito Santo. Embora a felicidade na terra possa ser um pouco efêmera, a pessoa que vive no Espírito Santo mostra que, tanto nos sucessos quanto nos fracassos, o Senhor continua presente e nos atrai para si. Com sua graça, Ele transforma progressivamente nossos sentidos para evitar que nos acomodemos e para que descubramos o quanto deseja que cresçamos em seu amor, para depois abraçar-nos definitivamente no céu.

Gerard Jiménez Clopés e Andrés Cárdenas Matute

Tradução: Mônica Diez


[12] Santo Agostinho, De diversis quaestionibus octoginta tribus 64, 4. Citado no Catecismo da Igreja Católica, n. 2560.

[13] Ernesto Cofiño (1899-1991) foi um médico e pediatra guatemalteco, pioneiro na saúde infantil em seu país. Ele dedicou sua vida ao cuidado das crianças e ao ensino, influenciando, com sua vida cristã, diversas iniciativas sociais. Foi membro do Opus Dei e seu processo de beatificação está em andamento.

[14] José Luis Cofiño, José Miguel Cejas Arroyo, Ernesto Cofiño, Rialp, Madrid 2003, 122.

[15] São Josemaria, Instrucción, 1-IV-1934, n. 66. Citado em Andrés Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. I, Quadrante.

[16] Tomás Alvira (1906-1992) foi um educador e cientista espanhol, doutor em Ciências e professor catedrático. Membro do Opus Dei, destacou-se pelo compromisso com a formação dos jovens e pelo exemplo de vida cristã no matrimônio e na família. Seu processo de beatificação está em andamento.

[17] Alfredo Méndiz, Tomás Alvira. Vida de un educador (1906-1992), Rialp, Madri 2023, 289-290.

[18] São Josemaria, Via Sacra, capítulo XIV.

[19] Santo Agostinho, As Confissões, Livro IV, XIV, 2.

[20] Mons. Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 20 de outubro de 2020, n. 22. A citação interna é de São Josemaria, recolhida em Conversaciones, n. 92.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/novos-coracoes-serao-criados-matrimonio-e-celibato-apostolico-1/

“Temos necessidade de uma nova Rerum Novarum”

Padre Jorge Cunha, professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa - foto Radio Renascença  (Rui Saraiva - Porto)

O teólogo Jorge Cunha assinala a possibilidade de que no pontificado de Leão XIV seja produzido um texto orientador sobre a inteligência artificial no mundo do trabalho.

Rui Saraiva - Portugal

Analisando o novo Papa Leão XIV, o padre Jorge Cunha assinala a importância de um pronunciamento da Igreja com “um texto orientador acerca do trabalho humano, do trabalho confrontado com a inteligência artificial”.

Na segunda parte da entrevista conjunta à Rádio Renascença e Agência Ecclesia, o professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa afirma a “necessidade de uma nova Rerum Novarum”.

O sacerdote da diocese do Porto espera que Leão XIV seja sucessor de Leão XIII, “que é o homem da Igreja que se volta finalmente para observar aquilo que se passa à sua volta”.

Uma entrevista conduzida por Henrique Cunha da Rádio Renascença e Octávio Carmo da Agência Ecclesia.

O Papa americano terá mais força perante uma administração Trump?

O Papa americano vai ter força para isso, vai ter força para comunicar aos seus concidadãos e ao presidente da América. E, na minha opinião, o presidente da América tem um estilo. É um estilo, mas ele no fundo está em sintonia com a América profunda e a imagem que nós temos na Europa do presidente é um pouco distorcida, é a ideia que me dá. Ele não põe em causa as instituições, ele não põe em causa o funcionamento da democracia, a substituição do poder, o respeito pelos direitos dos cidadãos, nunca pôs isso em causa. Ele põe em causa algumas questões económicas, algumas distorções que nós temos, que são distorções, por exemplo, a respeito das diversidades, a respeito das questões fraturantes que nós temos hoje, que são pensadas com menos interioridade, com menos ética. Eu calculo que ele pode ter esse efeito benéfico e pode levar a América a desempenhar o seu papel de líder do mundo, de administração ao serviço da paz, de inovação da economia, de inovação da tecnologia, de construção de uma tecnologia que respeite e aproxime os seres humanos e não propriamente aquilo que tem sido até agora, portanto, de uma artificialização que põe em causa a nossa interioridade. O Papa é agostinho, Santo Agostinho é o inventor da interioridade, eu creio que ele vai dar esse contributo ao nosso mundo da tecnologia.

Leão XIII é ainda hoje uma referência do pensamento social católico com a sua ‘Rerum Novarum’. Num tempo de tantas novidades na esfera do trabalho e com o advento da inteligência artificial, é mesmo preciso um Leão XIV? 

É muito preciso um Leão XIV, que é sucessor de vários, não só do Leão XIII, para mim. Eu espero que ele seja sucessor do Leão Magno, aquele que enfrentou Átila, que seja até sucessor do Leão X, que foi o Papa do Renascimento e que seja também o sucessor do Leão XIII, que é o homem da Igreja que se volta finalmente para observar aquilo que se passa à sua volta.

Nós hoje temos necessidade de uma nova ‘Rerum Novarum’ e de uma nova encíclica sobre o trabalho humano. As inovações que estão a acontecer no trabalho humano são, por um lado, uma fonte de grande esperança para o nosso mundo. O robô vai-nos livrar de muita escravatura do trabalho produtivo, mas o robô pode-nos também parasitar a alma. O robô, quando aplicado à comunicação, quando aplicado à tomada de decisões, vai exigir de nós uma grande capacitação para sermos os inventores do robô, os planeadores do robô, os controladores do robô e, portanto, vamos precisar de uma grande educação moral, de uma grande educação espiritual para não nos perdermos nisso.

Eu espero muito que o Papa, que escolheu o nome de Leão, siga por diante e nos faça, por exemplo, um texto orientador acerca do trabalho humano, do trabalho confrontado com a inteligência artificial, da preservação da liberdade no tempo da comunicação avançada que nos substitui e nos facilita a vida, mas, por outro lado, que pode tomar conta de nós se nós não estivermos advertidos.

Portanto, nós precisamos de uma grande educação moral, precisamos de um crescimento em espiritualidade, precisamos de pensar de novo a questão da justiça, porque o robô vai substituir-nos na produção, nós vamos ter no futuro o problema da distribuição de riqueza no contexto novo. Temos um grande mundo à nossa frente e o Papa Leão vai ser capaz disso, não tenho dúvida disso, e que vai ter a força de um leão.

Ah, eu também gostava que ele fosse substituto de outro leão, que é o leão das ‘Crónicas de Nárnia’, que é um livrinho que diz respeito a toda a gente, que muita gente conhece, que é um livro de ficção, mas é uma ficção sobre a guerra e sobre as consequências da guerra, e que nos faz pensar que ao inverno da guerra que nós estamos a viver há de suceder a primavera. Há uma personagem leonina que é assimilada ao Cristo, que é o Cristo pacificador do mundo, o Cristo que nos anuncia continuamente a primavera. Espero que seja também sucessor do leão das ‘Crónicas de Nárnia’.

O novo Papa é um religioso que tem como referência espiritual Santo Agostinho, bispo do século IV e V, que inspirou muito o pensamento teológico da Igreja ao longo do século. Nesse sentido podemos esperar um perfil um bocadinho mais clássico, digamos assim, de Leão XIV nas suas intervenções?

Sim, eu espero que ele possa pôr no terreno essas velhas intuições do Santo Agostinho. O Santo Agostinho, como já dissemos, é o inventor da interioridade e da teologia a partir da nossa subjetividade, da assimilação interior do mistério de Cristo. Nesse sentido o Santo Agostinho escreveu as obras mais importantes do cristianismo, as “Confissões”, a “Cidade de Deus”, que são livros orientadores para todos os tempos.

Ele referiu-se logo ao Santo Agostinho, dizendo “eu venho de Santo Agostinho”. E se ele puder dar esse contributo ao nosso mundo será um contributo muitíssimo importante para que a Igreja se situe no seu lugar no coração, que já é uma dimensão que vem de trás. Nós somos do coração, nós não somos da força, nem da política da força, ele disse isso, nós somos do coração, somos da força da razão, somos da expansão das energias infinitas da nossa alma habitada por Cristo. E, portanto, eu espero muito dele nesse capítulo que possa inaugurar uma era com o melhor que tem o pensamento agostiniano. Uma era agostiniana no seu melhor.

O padre Jorge Cunha é professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e sacerdote da diocese do Porto.

Neste início de pontificado destaquemos as palavras do Papa Leão na sua homilia de domingo passado na Praça de S. Pedro. Ditas com temor e tremor, apresentando-se como irmão para percorrer o caminho do amor de Deus.

“Fui escolhido sem qualquer mérito e, com temor e tremor, venho até vós como um irmão que deseja fazer-se servo da vossa fé e da vossa alegria, percorrendo convosco o caminho do amor de Deus, que nos quer a todos unidos numa única família. Amor e unidade: estas são as duas dimensões da missão confiada a Pedro por Jesus”, disse Leão XIV.

“Irmãos, irmãs, esta é a hora do amor!”, declarou o Papa.

Laudetur Iesus Christus

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Cidade onde Leão XIV cresceu quer comprar casa em que ele passou a infância

Casa de infância de Robert Prevost, atual papa Leão XIV, em Dolton, Illinois, EUA. | Michael Howie, atribuição, via Wikimedia Commons

Cidade onde Leão XIV cresceu quer comprar casa em que ele passou a infância.

Por Amira Abuzeid*

22 de mai de 2025

A vila de Dolton, um subúrbio ao sul de Chicago, EUA, e cidade natal do papa Leão XIV, está tentando comprar sua casa de infância para usá-la como um local histórico.

Steve Budzik, corretor da casa, disse à CNA, agência em inglês da EWTN, que ele e Pawel Radzik, o atual proprietário, estão ansiosos para trabalhar com a vila e chegar a um acordo.

“O vendedor quer vender e a vila quer comprar. A questão é: como determinamos o valor justo de mercado para algo tão único, tão raro? Não há comparações, não há nada parecido”, disse Budzik à CNA.

Segundo Budzik, eles receberam uma carta da vila na semana passada, indicando seu interesse em comprar a casa. A carta dizia que a arquidiocese de Chicago também está trabalhando com a cidade para adquirir a casa. A arquidiocese não respondeu a um pedido de comentário.

Segundo Burt Odelson, o advogado da vila, Dolton gostaria de comprar a casa, que foi colocada à venda em janeiro, para transformá-la num local histórico acessível ao público. Se não for possível chegar a um acordo sobre o preço, Odelson disse à Fox2Now que a vila tentará adquirir a casa por desapropriação.

“Temos o direito legal de tomar a propriedade para uso público. Essa é a palavra-chave — uso público. Um sítio histórico é uso público”, disse ele.

Jason House, prefeito de Dolton eleito recentemente, disse à rede de televisão ABC7 Chicago que a vila só usará essa opção se as negociações atuais falharem.

No ano passado, Radzik pagou US$ 66 mil (cerca de R$ 371,5 mil) pela casa de três quartos, três banheiros e 99,7 m² no número 212 da East 141st Place. Depois de muitas reformas, ela foi colocada à venda por US$ 219 mil (cerca de R$ 1,2 milhões) em janeiro. O preço caiu para US$ 199,9 mil (cerca de R$ 1,12 milhões) em abril.

Ao saber, em 8 de maio, que a casa era dos pais do papa recém-eleito, que a compraram do construtor em 1949 e viveram nela por décadas, o dono a retirou do mercado "para se reorganizar" e reavaliar a situação, segundo Budzik.

Cerca de uma semana depois, com a ajuda da imobiliária Paramount Realty USA Radzik colocou a casa a venda novamente num leilão fechado. Os lances estão ativos e abertos até 18 de junho.

No entanto, House disse à ABC7 Chicago que se outra pessoa comprar a casa no leilão, deve saber que sua compra só seria “temporária", porque a cidade ainda tentará adquiri-la por meio de domínio eminente.

O anúncio diz que a casa é "um pedaço da história papal", chamando-a de "uma oportunidade única" com "uma história de transformação, legado e potencial ilimitado", e onde um comprador pode "ter um lugar onde a história foi feita".

“Nascido Robert Francis Prevost em Chicago e criado aqui em Dolton, a jornada do papa Leão XIV deste humilde bairro até o Vaticano é um testemunho de fé, perseverança e propósito. Agora, você tem a rara oportunidade de ter uma parte tangível de seu legado inspirador”, diz o anúncio.

Na última segunda-feira, autoridades de Dolton decidiram renomear uma parte do 141st Place em homenagem ao primeiro papa nascido nos EUA, disse Budzik à CNA.

Ward Miller, do grupo Preservation Chicago, uma organização sem fins lucrativos dedicada à preservação de locais históricos de Chicago e ao incentivo à designação de marcos históricos na cidade, disse à CNA que, embora a casa não possa ser considerada para a designação de marco histórico pela cidade de Chicago, por estar fora da jurisdição municipal, espera que ela receba, ao menos, o título de marco histórico local de Dolton.

Ele disse que isso "não impediria que a casa fosse eventualmente" listada como um local do Registro Nacional de Lugares Históricos dos EUA "ou mesmo um marco histórico nacional".

Miller defende que a paróquia de Santa Maria da Assunção, em que Leão XIV passou a infância, que fica dentro da jurisdição da cidade, receba o título de patrimônio histórico de Chicago. Uma petição (link em inglês) foi criada para esse fim.

A paróquia está vaga desde 2011. "A designação de marco histórico de Chicago é a única coisa que impedirá que o prédio seja demolido", disse Miller à CNA. O imóvel foi adquirido recentemente por Joel Hall, que disse à ABC7 Chicago que está aberto a buscar a designação de marco histórico de Chicago.

Miller disse à CNA que a Preservation Chicago compareceu diante de um comitê da Comissão de Marcos Históricos de Chicago na última sexta-feira (16), recomendando a criação de um distrito histórico com muitos locais — como a paróquia de Santa Maria da Assunção — associados a Leão XIV.

Ele disse que espera que a decisão de criar o distrito histórico seja acelerada, considerando a "coisa fenomenal e notável que aconteceu" com a eleição de Prevost ao papado.

Essa é "uma chance para Chicago chegar ao topo", disse Miller, que é católico, à CNA.

"É incrível, o primeiro papa americano, e ele é de Chicago!", disse também Miller.

*Amira Abuzeid é editora sênior da Catholic News Agency, agência em inglês da EWTN News.

Fonte: https://www.acidigital.com/noticia/62865/cidade-onde-leao-xiv-cresceu-quer-comprar-casa-em-que-ele-passou-a-infancia

Um trabalho digno para todos: a mensagem dos três últimos Papas

Um trabalho digno para todos (Vatican News)

O vídeo com a intenção de oração pontifícia para o mês de maio muda de formato com o falecimento de Francisco. Para favorecer a reflexão, o tema sobre o trabalho é apresentado através de mensagens de João Paulo II, Bento XVI e Francisco que reafirmam que as pessoas devem ser prioridade para que, através dele, "cada pessoa se realize, as famílias sejam sustentadas com dignidade e se humanize a sociedade”.

https://youtu.be/FUyOnKqRVTk

Vatican News

Na publicação anual das intenções de oração para 2025, o Papa Francisco nos convidou a rezar em maio “Pelas condições de trabalho”. Devido à sua morte, em 21 de abril, o vídeo que acompanha esta intenção de oração muda de formato: para favorecer a reflexão, recorda mensagens sobre o tema dos três últimos Papas - João Paulo II, Bento XVI e Francisco.

O Vídeo do Papa de maio foi realizado com a ajuda da Câmara de Comércio de Roma e da Fondazione PRO Rete Mondiale di Preghiera del Papa, divulgado pela Rede Mundial de Oração do Papa e convida “para que, através do trabalho, cada pessoa se realize, as famílias sejam sustentadas com dignidade e se humanize a sociedade”.

As imagens que acompanham as palavras dos Pontífices reúnem diferentes experiências de vida em torno do mundo do trabalho. Em primeiro lugar, vemos uma oficina de carpinteiro, com uma imagem de São José esculpida à mão no século XIX, em madeira de tília, por mestres escultores de Val Gardena. O vídeo ainda traz as várias realidades da Cidadela de Loppiano - a oficina de cerâmica, a cooperativa agrícola, a empresa de embalamento e acabamento de muitos artigos - em que o trabalho é vivido numa perspectiva de comunhão. E não faltam imagens evocativas da exploração de que são vítimas milhões de trabalhadores em várias partes do mundo.

160 milhões de crianças obrigadas a trabalhar

O mundo do trabalho tem estado muito presente no magistério da Igreja desde o final do século XIX: uma consequência do olhar atento dos Papas sobre a realidade e da sua preocupação com o bem espiritual e material das pessoas. Atualmente, segundo dados da ONU e da OIT, 402,4 milhões de pessoas em todo o mundo estão desempregadas; 160 milhões de crianças são obrigadas a trabalhar; 240 milhões de trabalhadores recebem um salário inferior a 3,65 dólares por dia; e mais de 60% da população ativa mundial trabalha na economia informal, o que significa que cerca de 2 mil milhões de pessoas estão privadas de direitos laborais e de proteção social.

Os Papas e o mundo do trabalho

As palavras de Francisco sublinham que o trabalho confere “uma unção de dignidade”: ganhar o pão dá dignidade à pessoa. O próprio Jesus trabalhou como carpinteiro, “um ofício bastante duro” que “não assegurava grandes rendimentos”, e que partilhou com todos os trabalhadores ao longo da história.

Algumas das frases de Bento XVI sublinham a importância primordial do trabalho “para a realização humana e o desenvolvimento da sociedade”. Por conseguinte, o trabalho deve ser “organizado e realizado no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum”. Ao mesmo tempo, o homem não deve deixar-se “escravizar pelo trabalho (...) pretendendo encontrar nele o sentido último e definitivo da vida”, que só se encontra em Deus.

Por fim, as palavras de São João Paulo II exortam a enfrentar os desequilíbrios económicos e sociais e as situações de injustiça que existem no mundo do trabalho, colocando em primeiro lugar “a dignidade do homem e da mulher que trabalha, a sua liberdade, responsabilidade e participação”. Tudo isto, sem esquecer “aqueles que sofrem por falta de emprego, por salários insuficientes, por falta de meios materiais”. São precisamente estes desequilíbrios e situações de injustiça que tornam necessário rezar para que o centro do trabalho e da vida económica e social seja o ser humano e não o lucro.

Um bem-estar partilhado

"O trabalho”, comenta Lorenzo Tagliavanti, presidente da Câmara de Comércio de Roma, "é como o ar: apercebemo-nos do seu valor quando nos falta. Segundo a Doutrina Social da Igreja, o trabalho é um direito humano fundamental e um elemento decisivo para a realização pessoal de cada um e para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária: tudo aspetos sobre os quais procuramos dar o nosso melhor todos os dias, como instituição de referência da comunidade económica de Roma e da sua Província, ao lado das empresas e dos trabalhadores. Esta intenção de oração, que acompanha o Jubileu dos Trabalhadores e o Jubileu dos Empresários, oferece-nos, portanto, a oportunidade de reafirmar o compromisso assumido em 1831, quando precisamente um Papa - Gregório XVI - fundou a Câmara de Comércio de Roma com decreto do Cardeal Bernetti, Secretário de Estado: prosseguir um modelo de desenvolvimento baseado na cooperação e na atenção ao interesse comum". “Permita-me”, conclui Tagliavanti, "recordar as palavras do Papa Francisco em 2023 a um grupo de empresários franceses: 'se é verdade que o trabalho enobrece o homem, é ainda mais verdade que é o homem que enobrece o trabalho'. É precisamente esta atenção ao homem que motiva o nosso trabalho quotidiano, na busca de um modelo de desenvolvimento orientado para um bem-estar partilhado por todos”. 

Trabalho e dignidade

"Outro conceito sublinhado pelos Pontífices é que o valor do trabalho vai muito além do seu aspeto económico. Se perguntarmos a dez crianças o que gostariam de fazer quando crescerem”, comenta Stefano Simontacchi, membro fundador e membro do conselho de administração da Fondazione PRO Rete Mondiale di Preghiera del Papa, “provavelmente obteremos dez respostas diferentes, porque as aspirações de cada um são diferentes: como na parábola dos talentos, de facto, a cada um foi dado o seu, e o trabalho é a possibilidade de o fazer frutificar, de realizar a sua personalidade. No trabalho, de facto, há muito mais do que a independência económica, que também é importante: há o contributo que se dá à sociedade e, para nós, crentes, também a participação na criação divina. O Papa Francisco usou uma expressão muito bonita para definir tudo isto: chamou ao trabalho a “unção da dignidade”, e esta unção da dignidade é o que realmente faz a diferença nas nossas vidas”. Ainda mais nesta era de grandes mudanças, como a inteligência artificial, que nos deve levar a promover sistemas solidários como forma de coesão social. A gratidão, o respeito e a solidariedade devem ser a nossa bússola”.

Trabalho digno, um objetivo prioritário

O diretor internacional da Rede Mundial de Oração do Papa, Pe. Cristóbal Fones, explica que, para São João Paulo II, o ser humano é chamado ao trabalho exatamente “porque é feito à imagem e semelhança de Deus”: é precisamente o Senhor que lhe dá a possibilidade de participar na sua obra criadora através do trabalho. Na sua encíclica Laborem exercens, João Paulo II diz-nos que, através do nosso trabalho, a dignidade humana, a união fraterna e a liberdade devem multiplicar-se na terra. O trabalho do cristão, unido à sua oração, faz progredir o mundo e, mais importante ainda, contribui para o desenvolvimento do Reino de Deus”.

“Nesta base” - continua o Pe. Fones - "o seu sucessor, Bento XVI, afirma na encíclica Caritas in Veritate que a dignidade da pessoa exige que as escolhas económicas não aumentem a desigualdade e que o trabalho digno para todos seja um objetivo prioritário. Bento XVI assegura que a pobreza é, em muitos casos, o resultado da violação da dignidade do trabalho humano: por vezes as possibilidades da pessoa são limitadas, como no caso do desemprego ou do subemprego; e outras vezes o direito a um salário justo ou à segurança do trabalhador e da sua família não é respeitado”.

Neste sentido, o Pe. Fones sublinha a continuidade do magistério do Papa Francisco com o dos seus antecessores: “o Papa Francisco diz-nos que o trabalho é sagrado. É o meio que temos para construir uma sociedade mais humana: se queremos uma sociedade mais justa, temos de promover o emprego digno, estável, realizado em ambientes saudáveis e com medidas de segurança adequadas, o que implica o respeito pelos direitos fundamentais e a proteção social, bem como um salário que permita às famílias manter uma boa qualidade de vida”.

Isso será possível “se recuperarmos o verdadeiro valor do trabalho, se abandonarmos a lógica do lucro a qualquer custo e colocarmos ao centro as pessoas, especialmente aquelas que hoje não conseguem viver de forma humanamente digna”.

Finalmente, no contexto do Ano Santo de 2025, O Vídeo do Papa adquire uma relevância especial, porque nos dá a conhecer as intenções de oração pontifícia. Para obter a graça da indulgência jubilar, é necessário rezar por estas intenções.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Novos corações serão criados: Matrimônio e celibato apostólico (1) – Parte I

Lanternas de papel (Opus Dei)

Novos corações serão criados: Matrimônio e celibato apostólico (1) – Parte I

Como amar a Cristo, uma pessoa viva a quem não vemos? E como amar os outros como Ele nos amou? No matrimônio e no celibato, o Espírito Santo transforma nossos sentidos para tornar nosso coração semelhante ao Dele.

22/05/2025

As pessoas que caminharam com Jesus durante sua passagem pela terra, teriam imaginado durante aqueles anos que, em algum momento, teriam que continuar sua existência sem Ele? Ao vê-lo morrer na Cruz, teriam vislumbrado como continuariam, na sua ausência, durante todos os anos que ainda viveriam? Mais cedo ou mais tarde, tiveram que enfrentar esses pensamentos. Talvez por isso se esforçaram para guardar cada momento. Verônica procura manter as feições de Cristo na tela; a Virgem Maria, Maria Madalena e, perto delas, São João, gravam em seu coração cada gesto e cada palavra do Senhor. Outros apóstolos talvez também tenham tentado conservar esses momentos, contemplando-os à distância, por medo de serem reconhecidos. Em todos os casos, a separação foi dolorosa, pois nunca é fácil dizer adeus a quem se ama.

Três dias depois da sua morte, no entanto, Jesus volta. Podemos imaginar a alegria dos apóstolos. Talvez tenham recuperado uma esperança, mais forte desta vez, de permanecer o resto de suas vidas junto ao Mestre, com a certeza de que Ele não partiria novamente. Os encontros com os discípulos de Emaús, com Maria Madalena e com os outros discípulos parecem apontar para isso. “Fica conosco” (Lc 24,29), pedem os que o encontraram afastando-se de Jerusalém. No entanto, o Senhor pede, a cada um, de diferentes modos, que não o retenha. “Não me segures” (Jo 20,17), pede a Maria Madalena, enquanto “desaparecia” (Lc 24,31) da presença dos discípulos de Emaús. Depois de transmitir seus últimos ensinamentos aos apóstolos, parece que desta vez Ele realmente parte definitivamente: “Afastou-se deles e foi levado para o céu” (Lc 24,51).

Como entender essa separação anunciada e desejada pelo próprio Jesus? Mais ainda, como entendê-la quando Ele já não estava sujeito às limitações do tempo nem do espaço? Jesus ressuscitado podia aparecer em uma casa fechada, caminhar junto aos discípulos sem ser reconhecido e desaparecer em um instante. Já não havia distâncias que O separassem dos seus, nem muros que impedissem sua presença. Ele podia estar onde quisesse, com quem quisesse, quando quisesse. E, no entanto, escolhe partir. Justo quando nada o prende, justo quando o vemos manifestar-se sem restrições, decide subir ao céu. Essa escolha, tão inesperada, nos fala de um mistério ainda mais profundo: o seu desejo de nos ensinar a amar de outro modo.

Amar de um modo novo

Talvez nós também já tenhamos imaginado, em algum momento, como teria sido emocionante ver e ouvir Jesus diretamente, viver em seu tempo, senti-lo fisicamente mais perto. Em alguma ocasião, como aconteceu com São Josemaria, pode ter vindo à nossa mente um pensamento como este: “Senhor, quero te dar um abraço!”[1]. Assim como os discípulos de Jesus naquele dia da ascensão, nós também desejamos entender o sentido dessa separação. Pode ser que naquele dia tenham lembrado as palavras que Cristo havia pronunciado um tempo antes: “Quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós” (Jo 14,3). O próprio Jesus lhes havia dito que essa separação era para nos atrair a um lugar melhor e, desta vez sim, definitivo. Ele “precede-nos junto do Pai, eleva-se à altura de Deus e convida-nos a segui-lo”[2]. Embora surpreendente, sua ausência será como um ímã para que não nos detenhamos aqui, mas para que nos aproximemos progressivamente do nosso destino, ao encontro definitivo com Jesus.

Os primeiros homens e mulheres que seguiram o Senhor ressuscitado tiveram que aprender algo realmente novo, algo que ninguém havia tido que realizar antes: aprender a amar uma pessoa viva, relacionar-se realmente com ela no presente, mas sem estar fisicamente perto dela. Tiveram que descobrir modos diferentes de se comunicar e de expressar o afeto. A partida de Jesus para o céu inaugura, para todos, um novo modo de amar. Os discípulos foram os primeiros que tiveram que descobrir essa realidade que, agora, todos os cristãos vivem, pois não podemos amar Jesus exatamente da mesma maneira que amamos outra pessoa. Por exemplo, diante de sua presença real na Eucaristia, nossos sentidos ficam confusos: “A vista, o tato, o gosto se enganam”[3], nos lembra São Tomás de Aquino. Que maneira peculiar de se tornar íntimo de alguém! À primeira vista pode parecer insuficiente, e por isso pressupõe uma nova educação dos sentidos; um processo que não será imediato, nem se realizará sem esforço. “Ai, quem poderá me curar!” – dizia São João da Cruz que, como todos, viveu constantemente esse aprendizado. “Entrega-te, pois, já deveras, e não queiras enviar-me mais mensageiro algum, pois não sabem dizer-me o que desejo[4]”.

Aprender a relacionar-se com um Deus que se revela e que ao mesmo tempo se esconde não é questão de um dia, nem apenas tarefa do nosso próprio engenho. Desde o início, os próprios apóstolos precisaram de uma ajuda especial para entrar nesse novo modo de conhecer e amar. Jesus prometeu essa ajuda, que seria o Espírito Santo, pois Ele é quem “manifesta-lhes o Senhor ressuscitado, lembra-lhes sua palavra, abrindo-lhes o espírito à compreensão de sua Morte e Ressurreição. Torna-lhes presente o mistério de Cristo (...) a fim de reconciliá-los, de colocá-los em comunhão com Deus”[5]. Por isso, em um famoso hino da tradição cristã, pedimos ao Espírito Santo que desperte em nós os sentidos espirituais: “Vinde, Espírito Criador, visitai a alma dos vossos fiéis; enchei de graça celestial os corações que Vós criastes (...). Acendei a vossa luz em nossas almas, infundi o vosso amor em nossos corações; e a fraqueza da nossa carne, fortalecei-a com perpétua força”[6].

Os santos, casados ou não, aprenderam isso

Todos os cristãos, solteiros e casados, jovens e idosos, sacerdotes e leigos, precisam aprender este jogo de nos deixar atrair por um Deus que se manifesta e se esconde de um modo particular. Talvez naqueles que receberam o dom do celibato ou nas pessoas solteiras, essa necessidade de aprender a amar pela fé seja mais evidente, pois sua vida, também destinada a dar e receber amor, não conta com a presença física de uma pessoa com quem compartilhar sua existência e sua intimidade. No entanto, também na vida matrimonial, é Jesus Cristo quem preenche totalmente a necessidade de amor de cada cônjuge. Em uns e outros, assim como nos primeiros discípulos, o Espírito Santo é quem torna possível essa transformação.

Eduardo Ortiz de Landázuri[7], médico supernumerário do Opus Dei, casado com Laura Busca, contava que aprendeu sobretudo duas coisas de São Josemaria: amar todas as pessoas, com seus defeitos e limitações normais, porque via em cada uma um filho de Deus; e descobrir nas atividades normais de cada dia uma profundidade sobrenatural, espiritual, divina[8]. Ambas as coisas requerem ver além da superfície, do que aparece diante de nossos olhos, captar o verdadeiro valor das pessoas e até das coisas mais insignificantes. “As pessoas, geralmente, têm uma visão plana, pegada à terra, de duas dimensões – escrevia São Josemaria-. Quando a tua vida for sobrenatural, obterás de Deus a terceira dimensão: a altura. E, com ela, o relevo, o peso e o volume”[9]. Essa nova maneira de ver a realidade é especialmente importante nos momentos difíceis. Anos mais tarde, Eduardo contou a um jornal como estava vivendo sua doença, tinha sido diagnosticado com um câncer. Em resposta a seu testemunho, outro paciente escreveu-lhe uma carta de agradecimento e disse-lhe o quanto o havia achado inspirador, mesmo sendo ateu. Eduardo respondeu: “Pode ter certeza de que, como médico, estou totalmente convencido de que o Senhor acampa sempre junto ao doente. Isso faz muito bem a eles. Seus ouvidos são muito mais sensíveis e sua visão mais profunda”[10].

Os santos são os mestres dos sinais discretos de Deus e os que melhor aprenderam a olhar, compreender e amar desse modo novo. São Josemaria aprendeu a reconhecer a presença de Deus no que poderia parecer mais banal. Na sua adolescência, ao ver as pegadas de um carmelita na neve, acendeu-se nele a chama da vocação; nos primeiros anos de sacerdócio, vivendo com poucos recursos, atreveu-se a pedir ao seu anjo da guarda que o despertasse pela manhã; mais tarde, durante a guerra civil espanhola, saiu de uma grande perturbação interior quando, ao encontrar uma rosa de madeira (parte de um retábulo de uma igreja destruída), compreendeu que deveria seguir em frente em seu caminho; e posteriormente, durante sua vida e como parte desse aprendizado alcançado, gostava de decorar a casa em que vivia com objetos que despertassem o sentido da presença de Deus, essa nova maneira de se comunicar com Jesus. Os santos aprenderam a se guiar e a amar pelos sentidos espirituais. Sua tarefa agora é “despertar o desejo de Deus, naqueles que tem a felicidade de deles se aproximar”[11].

Gerard Jiménez Clopés e Andrés Cárdenas Matute

Tradução: Mônica Diez


[1] Pilar Urbano, O homem de Villa Tevere, Quadrante, São Paulo.

[2] Bento XVI, Homilia, 26 de maio de 2005.

[3] São Tomás de Aquino, Hino Adoro te devote

[4] São João da Cruz, Cântico Espiritual, Cântico 6-7.

[5] Catecismo da Igreja Católica, n.737.

[6] Hino Veni Creator.

[7] Eduardo Ortiz de Landázuri (1910-1985) foi um médico espanhol especializado em medicina interna, reconhecido por seu trabalho na Clínica da Universidade de Navarra. Destacou-se por sua profunda consciência da vocação cristã e sua dedicação ao atendimento dos pacientes.

[8] Cfr. Esteban López-Escobar, Pedro Lozano, Eduardo Ortiz de Landázuri, Palabra, Madrid 1994, 267-268.

[9] São Josemaria, Caminho, n.279.

[10] Juan Antonio Narváez Sánchez, El doctor Ortiz de Landázuri. Un hombre de ciencia al encuentro con Dios, Palabra, Madri 1997, 177.

[11] São João Paulo II, Homilia, 18 de outubro de 1991.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/novos-coracoes-serao-criados-matrimonio-e-celibato-apostolico-1/

Papa Francisco, doze anos de novos dinamismos e portas abertas

Papa Francisco na Praça São Pedro (Vatican Media)

Papa Francisco, doze anos de novos dinamismos e portas abertas

O pontificado de Jorge Mario Bergoglio no trono de Pedro, entre viagens, reformas, documentos, reestruturações eclesiais, compromissos pela paz, pelos pobres e migrantes, no horizonte da inovação e da fraternidade.

Salvatore Cernuzio – Vatican News

Papa Francisco foi o primeiro em muitas coisas. Primeiro Papa jesuíta, primeiro Papa originário da América Latina, primeiro a escolher o nome Francisco sem um numeral, primeiro a ser eleito com seu antecessor ainda vivo, primeiro a residir fora do Palácio Apostólico, primeiro a visitar terras nunca antes tocadas por um pontífice - do Iraque à Córsega -, primeiro a assinar uma Declaração de Fraternidade com uma das autoridades islâmicas mais importantes. Também foi o primeiro Papa a se equipar com um Conselho de Cardeais para governar a Igreja, a atribuir funções de responsabilidade a mulheres e leigos na Cúria, a lançar um Sínodo que envolvia diretamente o povo de Deus, a abolir o segredo pontifício para casos de abuso sexual e a remover a pena de morte do Catecismo. O primeiro também, a liderar a Igreja enquanto no mundo não há “a” guerra, mas muitas guerras, pequenas e grandes, travadas “em pedaços” nos diferentes continentes. Uma guerra que “é sempre uma derrota”, como repetiu nos mais de 300 apelos, mesmo quando sua voz falhava, e que ocuparam todos os últimos pronunciamentos públicos desde o início da violência na Ucrânia e no Oriente Médio.

Última passagem com o Papamóvel de Francisco na Praça São Pedro, após a Urbi et Orbi de ontem, 20 de abril de 2025, Domingo de Páscoa   (Vatican Media)

Processos

Mas Francisco, nascido Jorge Mario Bergoglio, provavelmente não gostaria que o conceito de “primeiro” fosse associado ao seu pontificado, projetado nesses 12 anos não para atingir metas ou conquistar primados, mas para iniciar “processos”. Processos em andamento, processos concluídos ou distantes, processos que provavelmente são irreversíveis até mesmo para quem o sucederá no trono de Pedro. Ações que geram “novos dinamismos” na sociedade e na Igreja - como está escrito na road map do pontificado, a Evangelii Gaudium - sempre no horizonte do encontro, da troca, da colegialidade.

Do fim do mundo

“E agora iniciamos este caminho, Bispo e povo”, foram as primeiras palavras pronunciadas da Sacada Central da Basílica de São Pedro, no final da noite de 13 de março de 2013, para uma multidão que lotava a Praça São Pedro há um mês, sob os refletores após a renúncia de Bento XVI. Para aquela multidão, o recém-eleito Papa de 76 anos, escolhido por seus irmãos cardeais, originário “do fim do mundo”, pediu uma bênção. Com o povo, quis recitar uma Ave Maria, tropeçando em um italiano que até então não havia praticado assiduamente, dadas as raras visitas do pastor de Buenos Aires a Roma, pronto para fazer as malas imediatamente após o Conclave. E ao povo, no dia seguinte, ele quis prestar sua homenagem íntima, dirigindo-se à paróquia de Santa Ana no Vaticano e depois à Basílica de Santa Maria Maior, agradecendo à Salus Populi Romani, protetora de seu pontificado, a quem ele continuou a prestar homenagem em todos os momentos mais fortes. E exatamente nessa Basílica, Francisco expressou seu desejo de ser enterrado.

A eleição em 13 de março de 2013   (ANSA)

Pastor no meio do povo

A proximidade com o povo, um legado do ministério argentino, foi manifestada pelo Papa em todos os anos seguintes de várias maneiras: com visitas aos funcionários do Vaticano nos seus escritórios, com as Sextas-feiras da Misericórdia no Jubileu de 2016 em locais de marginalização e exclusão, com as celebrações da Quinta-feira Santa em prisões, asilos e centros de acolhida, com o longo tour em paróquias nos subúrbios romanos, com visitas e telefonemas surpresa. E manifestou essa proximidade em todas as viagens apostólicas, começando pela primeira ao Brasil em 2013, herdada de Bento XVI, da qual nos lembramos a imagem do papamóvel bloqueado no meio da multidão.

Primeiro Papa no Iraque

O Pontífice argentino completou quarenta e sete peregrinações internacionais, feitas com base em eventos, convites de autoridades, missões a serem realizadas ou algum “movimento” interno, como ele mesmo revelou no voo de volta do Iraque. Sim, exatamente o Iraque: três dias em março de 2021 entre Bagdá, Ur, Erbil, Mosul e Qaraqosh, terras e vilarejos com cicatrizes ainda evidentes da matriz terrorista, com sangue nas paredes e tendas de pessoas deslocadas ao longo das estradas, em meio à pandemia da Covid e preocupações gerais com a segurança. Uma viagem desaconselhada por muitos por causa da saúde e do risco de atentados; uma viagem desejada a todo custo. A “mais bela” viagem, como o próprio Francisco sempre confidenciou, o primeiro Papa a pisar na terra de Abraão, onde João Paulo II não conseguiu ir, e a conversar com o líder xiita Al-Sistani.

Papa Francisco entre os escombros de Mosul, viagem ao Iraque (2021)   (Vatican Media)

A Porta Santa em Bangui e a mais longa viagem ao Sudeste Asiático e à Oceania

Uma boa obstinação o levou ao Iraque, a mesma que em 2015 o levou a Bangui, a capital da República Centro-Africana ferida por uma guerra civil que, nos mesmos dias da visita, deixou mortos pelas ruas. No país africano, onde disse que queria ir mesmo ao custo de saltar “de paraquedas”, Francisco abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia em uma cerimônia comovente que também marca o recorde de um Ano Santo aberto não em Roma, mas em uma das regiões mais pobres do mundo. Também pode ser descrito como uma boa obstinação a que animou sua decisão de empreender a viagem mais longa do pontificado em setembro de 2024, aos 87 anos: Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor-Leste, Cingapura. Quinze dias, dois continentes, quatro fusos horários, 32.814 km percorridos de avião. Quatro universos diferentes, cada um representando os principais temas do Magistério: fraternidade e diálogo inter-religioso, periferias e emergência climática, reconciliação e fé, riqueza e desenvolvimento a serviço da pobreza.

A abertura da Porta Santa em Bangui   (ANSA)

De Lampedusa a Juba

Não se pode esquecer, repercorrendo as viagens apostólicas e as visitas pastorais, a primeira viagem fora de Roma, à pequena ilha de Lampedusa, cenário de grandes tragédias migratórias, com a coroa de flores lançada no “cemitério a céu aberto” do Mediterrâneo. A denúncia também se repetiu na dupla viagem a Lesbos (2016 e 2021) nos contêineres e tendas de refugiados e pessoas deslocadas.

Na história do pontificado, ficaram marcadas também a viagem à Terra Santa (2014); à Suécia, em Lund (2016) para as celebrações do 500º aniversário da Reforma Luterana; ao Canadá (2022) com o pedido de perdão às populações indígenas pelos abusos sofridos por representantes da Igreja Católica. E, em seguida, na República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, em Juba (2023), esta última etapa compartilhada com o Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, e o Moderador da Assembleia Geral da Igreja da Escócia, Ian Greenshields, para sublinhar a vontade ecumênica de curar as feridas de um povo. As mesmas que ele implorou que fossem curadas aos líderes sul-sudaneses, reunidos em 2019 para dois dias de retiro na Casa Santa Marta, concluídos com o gesto perturbador de beijar seus pés.

Também, Cuba e Estados Unidos (2015), uma viagem para selar o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países. Um evento histórico para o qual Francisco passou meses, enviando cartas a Barack Obama e Raúl Castro, instando-os a “iniciar uma nova fase”. Foi o próprio Obama quem agradeceu publicamente ao Pontífice. Em Havana, houve também o encontro com o Patriarca Kirill e a assinatura de uma declaração conjunta para colocar em prática o “ecumenismo da caridade”, o compromisso dos cristãos para uma humanidade mais fraterna. Um compromisso que se tornou, anos depois, tragicamente atual e um tanto desconsiderado com a eclosão da guerra no coração da Europa.

A assinatura da Declaração sobre a Fraternidade Humana em Abu Dhabi (2019) (Vatican Media)

A assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana em Abu Dhabi

Por último, mas não menos importante, entre as viagens, Abu Dhabi (2019) e o Documento sobre a Fraternidade Humana assinado em conjunto com o Grão Imame al-Tayeb, coroando o degelo com a universidade sunita de Al-Azhar que começou com um abraço na Casa Santa Marta e terminou com a assinatura de um texto que imediatamente se tornou a pedra angular do diálogo islâmico-cristão, também transposto para várias Constituições.

As encíclicas

As experiências, os diálogos e os gestos vividos nessas viagens fluíram para os documentos do pontificado. Quatro encíclicas: a primeira, Lumen Fidei, sobre o tema da fé, a quatro mãos com Bento XVI; depois, Laudato si', um grito para invocar uma “mudança de rumo” para a “casa comum”, em crise pelas mudanças climáticas e pela exploração excessiva, e para estimular ações para erradicar a miséria e para o acesso equitativo aos recursos do planeta. A terceira encíclica, a Fratelli Tutti, o eixo fundamental do Magistério, fruto do Documento de Abu Dhabi, profecia - antes da deflagração de novas guerras - da fraternidade como o único caminho para o futuro da humanidade. Por fim, a Dilexit Nos para repercorrer a tradição e a atualidade do pensamento “sobre o amor humano e divino do coração de Jesus” e lançar uma mensagem a um mundo que parece ter perdido seu coração.

O Sínodo para a Região Pan-Amazônica   (Vatican Media)

Exortações Apostólicas e Motu Proprio

São sete exortações apostólicas: desde a já mencionada Evangelii Gaudium até C'est la confiance, para o 150º aniversário do nascimento de Teresa do Menino Jesus. Entre elas, as exortações pós-sinodais - Amoris Laetitia (Sínodo sobre a família), Christus Vivit (Sínodo sobre os jovens), Querida Amazonia (Sínodo para a Região Pan-Amazônica) -, Gaudete et Exsultate sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo, Laudate Deum, uma sequência ideal da Laudato si' para completar seu apelo para reagir pela Mãe Terra antes de um “ponto de ruptura”.

Foram emitidos cerca de 60 Motu Proprio para reconfigurar as estruturas da Cúria Romana e do território da Diocese de Roma, para alterar o Direito Canônico e o sistema judiciário do Vaticano, para emitir regras e procedimentos mais rigorosos na luta contra os abusos. Esse é o caso do Vos estis lux mundi, um documento que incorporou resultados, indicações e recomendações do Summit sobre a Proteção dos Menores, realizado no Vaticano, em fevereiro de 2019. Uma cúpula que representou o auge do trabalho para combater a pedofilia do clero e os abusos não só sexuais; uma expressão da disposição da Igreja de agir com verdade e transparência em uma atitude penitencial. Com o Vos estis lux mundi, Francisco estabeleceu novos procedimentos para a denúncia de assédios e violências e introduziu o conceito de accountability, ou seja, garantir que bispos e superiores religiosos prestem conta de suas ações.

Os melhores votos à Cúria Romana em dezembro de 2024   (VATICAN MEDIA Divisione Foto)

Reforma da Cúria

Portanto, processos. Os processos de reformas foram uma constante no papado de Francisco, que não quis ignorar as recomendações dos cardeais nas congregações pré-conclave que pediam ao futuro novo Papa que reestruturasse a Cúria Romana e, em particular, as finanças do Vaticano, que durante anos estiveram no centro de escândalos. Logo após sua eleição, o Papa criou um Conselho de Cardeais, o C9 (que se tornou C6 e C8 ao longo dos anos, conforme os vários membros foram mudando), um pequeno “senado” para ajudá-lo a governar a Igreja universal e trabalhar na reforma da Cúria. Fusões de Dicastérios e outras mudanças de títulos e organogramas foram os sinais do work in progress; o passo final foi a Constituição Apostólica Praedicate evangelium: aguardada por anos, promulgada em 2022, sem aviso prévio ou preâmbulo, introduzindo novidades significativas. Entre elas, a instituição do novo Dicastério para a Evangelização, presidido diretamente pelo Pontífice, e o envolvimento dos leigos “em funções de governo e responsabilidade”. Nessa onda de mudanças, devem ser vistas as nomeações do primeiro prefeito leigo, Paolo Ruffini, para o Dicastério para a Comunicação, da primeira “prefeita” para o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada, Irmã Simona Brambilla, e da primeira governadora da Cidade do Vaticano, Irmã Raffaella Petrini.

As Mulheres

As mulheres, outra vertente destes anos de Bergoglio no trono de Pedro, o Papa que, mais do que outros, confiou a figuras femininas papéis de responsabilidade, que criou duas comissões para o estudo das diaconisas, que nunca deixou de recordar o “gênio” feminino e a dimensão materna da Igreja (que “é mulher” porque “é a Igreja, não Igreja"). Além disso, colocou as mulheres lado a lado com cardeais e bispos nas mesas do último Sínodo sobre a Sinodalidade, irmãs, missionárias, professoras, especialistas, teólogas, às quais deu, pela primeira vez, o direito de voto.

Com os jovens na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa   (Vatican Media)

“Todos, todos, todos”

Uma abertura, como tantas outras feitas por Francisco. Aberturas e não extirpações, nem saltos; para alguns muito rápidos, para outros cautelosos demais. De fato, também esses, processos. Como a concessão dos sacramentos aos divorciados recasados, na perspectiva da Eucaristia como “remédio” para os pecadores e não como “alimento para os perfeitos”; a acolhida às pessoas Lgbtq+ com o convite à proximidade pastoral, porque dentro da Igreja há espaço para “todos, todos, todos”; a obstinação em dialogar com representantes de outras denominações e religiões cristãs, após séculos de preconceitos e suspeitas, também em virtude do “ecumenismo do sangue”. Também, o olhar à China, com o Acordo Provisório para a Nomeação de Bispos, assinado em 2019 e renovado três vezes. Um sinal de diálogo, entre tropeços e retomadas, com um “povo nobre” que ele desejou visitar por todos esses anos. Um desejo que remonta às aspirações missionárias da juventude.

Missionariedade e sinodalidade

Missão, este também é um tema central. De fato, a “missionariedade”, é um convite recorrente em textos e homilias, assim como a “sinodalidade”, outro termo que ressoou tantas vezes nesses doze anos. O Papa dedicou nada menos que duas sessões do Sínodo (2023 e 2024) à “sinodalidade”, renovando a estrutura e o funcionamento da assembleia, percebendo a necessidade de começar o caminho sinodal “de baixo” e instituindo também dez grupos de estudo para aprofundar temas doutrinários, teológicos e pastorais após os trabalhos.

Com migrantes no campo de refugiados em Lesbos (Vatican Media)

Pobres e migrantes

Neste pontificado serão lembrados também os axiomas que encapsularam inteiras realidades eclesiais, políticas e sociais: “Cultura do descarte”, “globalização da indiferença”, “Igreja pobre para os pobres”, “Igreja em saída”, “pastores com cheiro de ovelhas”, “ética global da solidariedade”. Permanecerá a atenção aos pobres com a instituição, em 2017, de um Dia dedicado a eles, sempre caracterizado pelo almoço do Papa na Sala Paulo VI, lado a lado com pessoas em situação de rua e sem-teto. Permanecerá o ensinamento sobre os migrantes, declinado nos quatro verbos “acolher, proteger, promover e integrar”, como indicações programáticas para enfrentar “uma das maiores tragédias deste século”. Assim como permanecerá o convite para elaborar “compromissos honrosos” como soluções para os conflitos que estão dilacerando a Europa, o Oriente Médio e a África.

Compromisso em prol da paz

Conflitos, angústia dos últimos anos, denunciados em apelos ressonantes e cartas a núncios e povos vítimas de violências, aliviados por meio de videochamadas - sobretudo a diária para a paróquia de Gaza - ou missões de cardeais e o envio de produtos de primeira necessidade. “Não pensei que seria um Papa em tempo de guerra”, confidenciou no primeiro e único podcast com a mídia do Vaticano no décimo aniversário de sua eleição.

A paz foi o objetivo constante. Pela paz, o Papa Francisco pediu continuamente orações, convocando Dias de jejum e oração - pela Síria, Líbano, Afeganistão, Terra Santa - envolvendo os fiéis de todas as latitudes; consagrou a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria em 2022; organizou momentos históricos, como o plantio de uma oliveira nos Jardins do Vaticano em 8 de junho de 2014 com os presidentes de Israel, Shimon Peres, e da Palestina, Mahmoud Abbas. Em prol da paz, o Papa fez gestos inusitados, como entrar em seu carro e ir, no dia seguinte ao lançamento da primeira bomba em Kiev, ao escritório do embaixador russo na Santa Sé, Alexander Avdeev, tentando iniciar contatos com o presidente Putin e assegurando-lhe sua disposição de mediar. Francisco repreendeu várias vezes os chefes de Estado e de governo, advertiu os senhores da guerra de que eles prestarão contas diante de Deus pelas lágrimas derramadas entre os povos, estigmatizou o florescente mercado de armas lançando uma proposta para usar os gastos com armas para criar um Fundo Mundial para erradicar a fome. Pediu a construção de pontes e não a construção de muros, e insistiu em colocar o bem comum acima das estratégias militares, sendo às vezes mal interpretado e criticado.

O Angelus de 2 de fevereiro de 2025   (VATICAN MEDIA Divisione Foto)

Inovações

Em todos esses anos não faltaram críticas contra o Papa argentino, que comentou escaladas e os ventos contrários com aquele humor que é o que “mais se aproxima da graça de Deus”. Francisco questionou e surpreendeu, talvez tenha feito alguém torcer o nariz pela quebra de tabus e a ruptura de protocolos e velhos costumes, ou pela remodelação do próprio papado com roupas diferentes, uma residência diferente, uma inusual gestualidade, um estilo pastoral original. Ou aparecendo em transmissões ao vivo pela Internet e em programas de TV, usando a conta X @Pontifex, em 9 idiomas, ou como um canal para transmitir mensagens de divulgação e imediatismo necessários.

Momentos difíceis e problemas de saúde

Nesses anos sempre densos, com raríssimos momentos de descanso (e o cancelamento das tradicionais férias papais em Castel Gandolfo), não faltaram momentos difíceis, em meio a processos judiciais - liderados pelo longo e complexo processo pela gestão dos fundos da Santa Sé -, o caso Vatileaks 2, escândalos de abusos e corrupção e a publicação de livros sem “nobreza e humanidade”. Também não faltaram problemas de saúde entre as operações no Hospital Gemelli em 2021 e 2023, a internação no mesmo hospital, novamente em 2023, as complicações respiratórias, e depois os resfriados, as gripes e as dores no joelho que o forçaram a usar a cadeira de rodas nos últimos três anos.

Saudações da Policlínica Gemelli   (VATICAN MEDIA Divisione Foto)

Dados estatísticos

Tantas dificuldades que nunca impediram uma intensa atividade ou sua presença em eventos. Várias estatísticas testemunham isso: mais de 500 audiências gerais, dez Consistórios para a criação de 163 novos cardeais que restituíram caráter de universalidade ao rosto da Igreja; mais de 900 canonizações (incluindo três predecessores: João XXIII, João Paulo II, Paulo VI); os “Anos Especiais”, entre os quais os da Vida Consagrada (2015-2016), São José (2020-2021) e a Família (2021-2022); quatro Jornadas Mundiais da Juventude: Rio de Janeiro, Cracóvia, Panamá, Lisboa. Dois Jubileus: o extraordinário sobre a Misericórdia em 2016 e o ordinário em 2025, atualmente em andamento, com o tema “Peregrinos da Esperança”.

Statio Orbis durante a pandemia da Covid

Jorge Mario Bergoglio foi um Papa que buscou a proximidade com o grande público também por meio de entrevistas, livros, prefácios, autobiografias. Um Papa do qual, talvez, mais do que as muitas palavras e escritos, será recordado com uma imagem: ele, sozinho, mancando, na chuva, no silêncio geral do lockdown e com o único som de fundo de uma ambulância, enquanto atravessa a Praça São Pedro no tempo suspenso da pandemia. Era a Statio Orbis de 27 de março de 2020, com o mundo fechado dentro de casa vendo em streaming um homem idoso que parecia carregar sobre os ombros todo o peso de uma tragédia que revirou cotidianidade e hábitos. A humanidade estava aflita, mas o Papa falou de esperança. E de fraternidade: “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo todos chamados a remar juntos”.

A Statio Orbis de 27 de março de 2020 (Vatican Media)
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt.html

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF