Relacionamento interpessoal (Poder da Escuta)
Dom Antonio de Assis
Bispo auxiliar de Belém do Pará (PA)
AMIZADE, CONFLITO e RESILIÊNCIA RELACIONAL
(Parte 12)
Ninguém pode afirmar com segurança e
despreocupação que tem um amigo garantido e ficar tranquilo. Um amigo não é um
objeto e a amizade não é um contrato assinado, mas é uma relação viva, sempre
atual e condicionada pelo dinamismo de vida dos sujeitos envolvidos e inseridos
em contextos variados.
Se afirmamos que a amizade é relação entre
dois ou mais sujeitos, então naturalmente, ela precisa de cuidado, atenção,
vontade, dedicação, zelo, discernimento conjunto. Por outro lado, nas relações
humanas sobretudo, na experiência de amizade, nem tudo depende da simples
vontade dos indivíduos. Como já vimos no artigo anterior, há princípios,
valores, virtudes e atitudes fundamentais que comprovam a existência da
Amizade. Há poucos meses uma jovem já madura, acima dos 25 anos, me disse que
ama profundamente o seu namorado, mas ele, apesar de declarar amor com
palavras, é ciumento, violento e lhe agrediu diversas vezes deixando-a com
hematomas pelo corpo. E me perguntava: Por que isso acontece? Naturalmente lhe
respondi que é porque não se amam, vivem uma relação doentia!
O amor não é possessivo, agressivo e nem
violento. O amor autêntico não gera dependência deixando o outro vivendo à
mercê dos seus impulsos; a amizade não é uma relação por pena de deixar o outro
na solidão… isso não é amizade! A amizade é uma qualidade de relação possível
somente para pessoas maduras e que querem crescer juntas, e sabem se cuidar!
Por isso, uma relação tóxica, fria, sem respeito, nem espírito ético, venenosa
e agressiva não está alicerçada no Amor! Nessa situação não pode haver amizade!
Amizade e vulnerabilidade
afetiva
Há muitos fatores que influenciam
profundamente a qualidade de uma amizade, que podem contribuir para o seu
fortalecimento ou para o seu fim e, muitas vezes, há até a passagem brusca, da
amizade para uma terrível e violenta inimizade. A vulnerabilidade da amizade,
ou seja, a possibilidade de mudanças, é natural porque está condicionada à
instabilidade do comportamento humano. Mas isso não é motivo para o
fracasso.
Na relação de amizade há sempre um compromisso
de gestão recíproca da relação. Ou seja, o teor da experiência de amizade,
depende basicamente da maturidade das pessoas envolvidas, sendo capazes de
resolver problemas, conflitos, desentendimentos, frustrações etc. Isso implica
o cultivo de muitas virtudes para os envolvidos. Uma séria e madura amizade
está sempre alicerçada na rocha de muitas virtudes. Sem a existência de uma
teia de virtudes, não conseguimos estabelecer compromissos duradouros com
ninguém, seja nas relações de amizade, namoro, noivado, matrimônio, na vida
profissional ou em qualquer outro compromisso relacional. Portanto, podemos
afirmar que pessoas socioafetivamente imaturas, não são capazes de relações de
amizade estáveis e profundas.
Amizade é relação entre sujeitos diferentes,
livres, vulneráveis, passíveis de muitas situações imprevisíveis; mas, ao mesmo
tempo, a amizade é relação entre pessoas cheias de recursos e, por isso,
capazes de sonhar, querer, lutar, crescer, discernir, perseverar em bons
propósitos. Um dos fatores que possibilitam a estabilidade de uma amizade é a
questão da formação humana. Quem não amadureceu e nem desenvolveu a sua
dimensão socioafetiva, dificilmente terá condições de estabelecer estáveis
relações de amizade. Pessoas afetivamente imaturas são possessivas, violentas,
agressivas, fechadas, autodefensivas, egoístas, interesseiras, ciumentas,
intolerantes, oportunistas, desconfiadas, facilmente interpretam mal gestos,
atitudes e palavras.
Todavia, a experiência da amizade madura,
pressupõe um dinamismo profundamente diferente, rico de conteúdos positivos e
promotor da formação recíproca, porque está baseada na abertura, na
comunicação, no diálogo, na escuta, no perdão, na compaixão, no respeito, na
confiança, na correção mútua, na solidariedade, na corresponsabilidade, na
compreensão dos limites do outro.
A experiência da amizade é uma relação entre
sujeitos carregados de virtudes, valores, crenças, bem como, de fragilidades,
defeitos e tendências negativas. Quem está em busca de um amigo perfeito jamais
o encontrará. E mesmo o amigo fiel, não é perfeito!
Dizia o filósofo Blaise Pascal que o ser
humano é como um monte de grandezas e misérias. Considerando essa condição, a
realização dos nossos bons propósitos, muito dependerá dos nossos investimentos
pessoais de força de vontade, de inteligência relacional, de valores que
cultivamos, de virtudes nas quais nos treinamos, de reflexão e discernimento
nas variadas circunstâncias da vida. Amizade é vida e, por isso, está sempre
inserida numa grande variedade de situações.
A experiência da diversidade
Apesar de constituirmos uma única humanidade,
todos os seres humanos são diferentes entre si. A experiência da amizade só é
possível porque somos diferentes, essa diversidade possibilita o nosso
enriquecimento recíproco. Quem procura uma pessoa igual a si mesma, para ser
sua amiga, jamais fará a experiência da amizade. Na verdade, esse é um desejo
narcisista que tem como intenção uma relação dominadora, possessiva,
exploradora. A pessoa narcisista é alguém profundamente apegada a si mesma, que
fica sempre projetando sobre os outros a própria imagem e se impondo sobre
elas; esse não é o figurino da amizade autêntica, que é encontro de pessoas
diferentes, que se acolhem incondicionalmente, se conhecem, se identificam,
divergem, compartilham o que pensam, sentem e vivem; se complementam, se
respeitam, se corrigem, se ajudam.
Por outro lado, essa experiência da
diversidade também ocasiona a possibilidade do surgimento do conflito, do
desentendimento, da frustração nas expectativas pela falta de correspondência.
A questão da diversidade humana é ampla; não envolve somente os aspectos
físicos, mas diz respeito à dimensão psicológica, afetiva, sexual, mental,
religiosa, vocacional, moral, cultural, existencial (experiência de vida) etc.
Dessas dimensões ricas de diferenças, temos consequentemente, a diversidade de
atitudes e comportamento dos amigos por causa da variedade de crenças,
sensibilidades, gostos, interesses, expectativas, modos de entender os valores,
convicções religiosas e morais, opções políticas e esportivas, histórias
vividas pessoalmente na família e com outros. A experiência da amizade não nega
e nem neutraliza aquilo que o outro é (a sua identidade) e nem a sua
história.
Conflito, reconciliação e
resiliência
No livro do profeta Jeremias encontramos um
versículo muito interessante. Deus manifesta a sua convicção de amor para com o
povo lhe dizendo através do profeta: “Eu te amo com amor eterno e te reservo
misericórdia” (Jr 31,3). O que mais nos chama atenção nesse versículo não é a
declaração de amor eterno de Deus para com o povo, mas é o fato de Deus
declarar o seu amor eterno considerando a fragilidade do povo. É por isso que
lhe reserva a misericórdia, ou seja, o perdão. O fato de Deus amar o povo, não significa
negar sua fragilidade e a possibilidade de erros e traição.
Amar não significa negar os defeitos do outro!
Quem faz da pessoa amada um ser perfeito não considerando sua realidade
ambivalente, corre o perigo de uma séria frustração. Uma das mais fortes
manifestações da fragilidade de uma amizade é o idealismo. A experiência da
amizade entre sujeitos perfeitos só acontece na Santíssima
Trindade.
Quanto mais idealizamos os nossos amigos mais
corremos o perigo de uma grave frustração por causa da excessiva expectativa e
do esquecimento de que o outro é profundamente humano e pode errar. Isso não
significa reconhecer suas virtudes e admirá-los. Mas é na experiência da sábia
e serena gestão do erro do outro, que podemos dar testemunho da grandeza do
nosso amor para com ele. Onde há idealismo amistoso, há também perfeccionismo e
intolerância. Pessoas assim, não conseguem estabelecer uma relação de amizade,
porque amor e perdão caminham juntos.
Uma das mais significativas formas de
manifestação de maturidade afetiva entre os amigos é a experiência da
resiliência, ou seja, quando os amigos são capazes de sofrer, perdoarem-se,
reconciliarem-se e restaurar a experiência da Amizade sem ficarem com mágoas
recíprocas. A experiência de amizade longeva e madura é consequência da
resiliência. Amigos verdadeiros são capazes de testemunhar o amor entre si
através do perdão, da paciência, da delicadeza, da reconciliação. Todavia,
quando alguém desconsidera a corresponsabilidade na manutenção da amizade,
quando há pertinácia em graves erros com a traição da confiança, a violência,
prejuízos econômicos e muitas formas de abusos, o fracasso da amizade é
inevitável.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
Por que não é bom idealizar os amigos?
O que é a resiliência relacional?
Por
que não é admissível a “amizade líquida”?
Fonte: https://www.cnbb.org.br/