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Reflexão sobre a Amoris Laetitia do Prof. Mons. Ángel Rodríguez Luño, decano da faculdade de teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma
A Exortação Apostólica Amoris laetitia oferece as bases para dar um novo e muito necessário impulso à pastoral familiar em todos os seus aspectos. O capítulo VIII se refere às delicadas situações em que a debilidade humana mais se evidencia. A linha proposta pelo Papa Francisco pode resumir-se com as palavras que compõem o título do capítulo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. Somos convidados a evitar os julgamentos sumários e as atitudes de rechaço e exclusão, e a assumir, em vez disso, a tarefa de discernir as diferentes situações, empreendendo com os interessados um diálogo sincero e cheio de misericórdia. “Trata-se de um itinerário de acompanhamento e discernimento que ‘orienta estes fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cfr. Familiaris consortio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. ‘”[1]. Parece útil recordar alguns pontos que convém ter em conta para que o processo de discernimento seja conforme o ensinamento da Igreja[2], o que o Santo Padre pressupõe e de modo algum desejou alterar.
Pelo que concerne aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, a Igreja ensinou sempre e em todo lugar que “quem tem consciência de estar em pecado grave deve receber o sacramento da Reconciliação antes de comungar”[3]. A estrutura fundamental do sacramento da Reconciliação “compreende dois elementos igualmente essenciais: de um lado, os atos do homem que se converte sob a ação do Espírito Santo, a saber, a contrição, a confissão e a satisfação; de outro lado, a ação de Deus por intermédio da Igreja.”[4]. Se faltasse completamente a contrição perfeita ou imperfeita (atrição), que inclui o propósito de mudar de vida e evitar o pecado, os pecados não poderiam ser perdoados, e não obstante fosse dada a absolvição, esta seria inválida[5].
O processo de discernimento deve ser coerente também com a doutrina católica sobre a indissolubilidade do matrimônio, cujo valor e atualidade o Papa Francisco enfatiza fortemente. A ideia de que as relações sexuais no contexto de uma segunda união civil são lícitas implica que essa segunda união fosse considerada um verdadeiro matrimônio, e nesse caso se entraria em contradição objetiva com a doutrina sobre a indissolubilidade, segundo a qual o matrimônio válido e consumado não pode ser dissolvido, nem sequer pelo poder vicarial do Romano Pontífice[6]; se, em vez disso, se reconhecesse que a segunda união não é verdadeiro matrimônio, porque o verdadeiro matrimônio é e continua sendo somente o primeiro, então se aceitaria um estado e uma condição de vida que “contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia”[7]. Se, ademais, a vida more uxorio na segunda união fosse considerada moralmente aceitável, se negaria o princípio fundamental da moral cristã, segundo o qual as relações sexuais são lícitas somente dentro do matrimônio legítimo. Por essa razão, a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 14 de setembro de 1994 dizia: “O fiel que convive habitualmente more uxorio com uma pessoa que não é a legítima esposa ou o legítimo marido, não pode receber a comunhão eucarística. Caso aquele o considerasse possível, os pastores e os confessores – dada a gravidade da matéria e as exigências do bem espiritual da pessoa e do bem comum da Igreja – têm o grave dever de adverti-lo que tal juízo de consciência está em evidente contraste com a doutrina da Igreja”[8].
O Papa Francisco recorda justamente que podem existir ações gravemente imorais sob o ponto de vista objetivo que, no plano subjetivo e formal, não sejam imputáveis ou não o sejam plenamente, devido à ignorância, ao medo ou a outros atenuantes que a Igreja sempre levou em conta. À luz desta possibilidade, não se poderia afirmar que quem vive em uma situação matrimonial assim chamada “irregular” objetivamente grave esteja necessariamente em estado de pecado mortal[9]. A questão é delicada e difícil, porque sempre se reconheceu que “de internis neque Ecclesia iudicat”, sobre o estado mais íntimo da consciência nem sequer a Igreja pode julgar. Por isso, a Declaração do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos acerca do cânon 915, citada pelo Papa Francisco[10], na qual se dizia que a proibição de receber a Eucaristia compreende também os fiéis divorciados que voltaram a casar, foi muito cuidadosa em precisar o que deve entender-se por pecado grave no contexto desse cânon. O texto da Declaração diz: “A fórmula ‘e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto’ é clara e deve ser compreendida de modo a não deformar o seu sentido, tornando a norma inaplicável. As três condições requeridas são: a) o pecado grave, entendido objetivamente, porque da imputabilidade subjetiva o ministro da Comunhão não poderia julgar; b) a perseverança obstinada, que significa a existência de uma situação objetiva de pecado que perdura no tempo e à qual a vontade do fiel não põe termo, não sendo necessários outros requisitos (atitude de desacato, admonição prévia, etc.) para que se verifique a situação na sua fundamental gravidade eclesial; c) o carácter manifesto da situação de pecado grave habitual.”[11].
A mesma Declaração esclarece que não se encontram nessa situação de pecado grave habitual os fiéis divorciados que voltaram a casar que, não podendo interromper a convivência por causas graves, se abstêm dos atos próprios dos cônjuges, permanecendo a obrigação de evitar o escândalo, posto que o fato de não viverem more uxorio é oculto[12]. Fora esse caso, em atenção pastoral a esses fiéis, será preciso considerar também que parece muito difícil que aqueles que vivem em uma segunda união tenham a certeza moral subjetiva do estado de graça, pois somente mediante a interpretação de sinais objetivos esse estado poderia ser conhecido pela própria consciência e pela do confessor. Ademais, seria preciso distinguir entre uma verdadeira certeza moral subjetiva e um erro de consciência que o confessor tem a obrigação de corrigir, como se disse antes, já que na administração do sacramento o confessor é não somente pai e médico, mas também mestre e juiz, tarefas todas essas que certamente há de cumprir com a máxima misericórdia e delicadeza, e buscando antes de tudo o bem espiritual de quem busca a confissão.
Os aspectos doutrinais mencionados, que pertencem ao ensinamento multissecular de a Igreja, e muitos deles ao Magistério ordinário e universal, não devem impedir os sacerdotes de empenhar-se com espírito aberto e coração grande em um diálogo cordial de discernimento. Como escreveu o Papa Francisco, trata-se de “evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente ‘exceções’, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla”[13]. Pelo contrário, sabendo que a variedade das circunstâncias particulares é muito grande, como muito grande é também sua complexidade, os princípios doutrinais antes mencionados deveriam ajudar a discernir o modo de ajudar às pessoas interessadas em empreender um caminho de conversão que lhes conduza a uma maior integração na vida da Igreja e, quando seja possível, a recepção dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia.
Mons. Angel Rodríguez Luño, Professor ordinário de teologia moral fondamental naPontificia Università della Santa Croce, em Roma.
Trad.: Viviane da Silva Varela.
[1] Francisco, Exortação Apostólica Pós-sinoidal Amoris laetitia, 19-III-2016, n. 300. A nota interna é do n. 86 da Relação final do Sínodo de 2015.
[2] O Santo Padre assim o disse explicitamente em Amoris laetitia, n. 300.
[3] Catecismo da Igreja Católica, n. 1385.
[4] Catecismo da Igreja Católica, n. 1448.
[5] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1451-1453; Concilio de Trento, Sess. XIV,Doutrina do sacramento da penitência, cap. 4 (Dz-Hü 1676-1678).
[6] São João Paulo II, em seu discurso à Rota Romana, de 21-I-2000, n. 8, declarou que essa doutrina é definitiva.
[7] São João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, 22-XI-1981, n. 84.
[8] Congregação para a Doctrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica acerca da recepção da Comunhão eucarística por parte dos fiéis divorciados que voltaram a se casar, 14-IX-1994, n. 6.
[9] Cfr. Francisco, Amoris laetitia, n. 301.
[10] Cfr. Ibid., n. 302.
[11] Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, Declaração acerca da admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que voltaram a se casar, 24-VI-2000, n. 2.
[12] Cfr. ibidem. Não é demais ter em conta que não se pode exigir que os fiéis que vivem em uma segunda união civil garantam absolutamente que nunca mais terão relações. Basta que tenham o sincero e firme propósito de absterem-se. Às vezes somente um dos cônjuges pode ter esse propósito. Nesse caso, segundo as circunstâncias e a idade, pode ser suficiente para que possa receber os sacramentos, tratando sempre de evitar o escândalo.
[13] Francisco, Amoris laetitia, n. 300.
Fonte: https://pt.zenit.org/articles/orientacoes-doutrinais-para-um-discernimento-pastoral/
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