São GREGÓRIO DE NISSA |
(Aprox. 330-395)
Sobre a Vida de Moisés
Tradução segundo a Patrologia Grega de Migne
com base na versão de D. Lucas F. Mateo
História de Moisés
Capítulo 14
Como pode a história estabelecer uma lei contrária à razão? Considerando a interpretação espiritual, não será mais razoável crer que isto sucede como figura e que, através do que foi dito, o Legislador quis propor um ensinamento? O ensinamento é este: que quem se empenha na luta da virtude contra o vício deve fazê-lo desaparecer em seus primeiros brotos. De fato, com a destruição dos primeiros brotos, se destrói também o que lhes segue em continuação, como nos ensina o Senhor no Evangelho, ordenando quase com as mesmas palavras destruir os primogênitos dos vícios egípcios; exorta-nos assim a cortar a concupiscência e a ira (Mt 5, 22 e 28), e a não ter medo nem da sujidade do adultério, nem da mancha do homicídio, pois nenhum destes males tem consistência por si mesmo, mas que é a cólera que leva a cabo o homicídio e o desejo é que conduz ao adultério. Precisamente porque aquele que engendra o mal, antes do adultério produziu o desejo e antes do crime produziu a cólera, quem destrói o primogênito destrói totalmente a descendência que segue o primogênito, do mesmo modo que quem golpeou a cabeça da serpente matou com o mesmo golpe o corpo que rasteja atrás. Porem isto não poderia acontecer se previamente não tivessem sido borrifadas as ombreiras das portas com aquele sangue que afugenta o Exterminador (Ex 12, 23). E se queremos captar com maior exatidão o sentido de quanto se diz, a história no-lo insinua através destas coisas: através da morte do primogênito e através da proteção da entrada com o sangue. Ali, com efeito, se destrói o primeiro movimento do mal e aqui mesmo, pelo verdadeiro cordeiro, se afasta a primeira entrada do mal em nós. Pois uma vez que o exterminador esteja dentro, não o expulsaremos com um simples pensamento; vigiemos com a Lei, para que nem se quer comece a entrar em nós. A vigilância e a segurança consistem em sinalizar com o sangue do cordeiro o montante e as ombreiras da entrada (Ex 12, 22). A Escritura nos explica estas coisas da alma com figuras; também a ciência profana as intuiu ao distinguir a alma em seu aspecto racional, concupiscível e irascível. Deles - diz - o irascível e o concupiscível estão abaixo, sustentando cada um a parte racional da alma, e assim a parte racional, tendo subjugadas as outras duas, as governa e, por sua vez, é sustentada por elas: é impulsionada ao valor pelo apetite irascível e é elevada pelo apetite concupiscível à participação no bem. Enquanto a alma se encontra estabilizada nesta disposição, estando segura por pensamentos virtuosos como se fossem cavilhas, dá-se uma cooperação para o bem de todas as faculdades entre si: a parte racional dá segurança por si mesma às partes que lhe estão submetidas e, por sua vez, recebe o mesmo benefício da parte delas. Porem se a ordem for invertida e o que está acima passar par baixo, caindo para a parte em que é pisada, a razão fará subir sobre si as disposições concupiscível e irascível, e então, o exterminador entrará no interior, sem que se oponha a ele nenhum repúdio proveniente do sangue, isto é, sem que a fé em Cristo ajude no combate àqueles que se encontram nestas disposições. Manda borrifar com sangue primeiro o montante, e besuntar depois as ombreiras de um lado e outro. Como poderia alguém untar primeiro o que está acima, se não estivesse em cima? Não estranhes se estes dois episódios - a morte dos primogênitos e a aspersão do sangue - não acontecem igualmente aos israelitas, e não repudies, por causa disto, nossa consideração a respeito da destruição do mal, como se estivesse fora da verdade. Interpretamos a diferença entre os nomes hebreu de egípcio como a diferença entre a virtude e o vício. Se, pois, o sentido espiritual sugere entender o israelita como o bom, não seria coerente que alguém tentasse matar as primícias dos frutos da virtude, mas aquelas cuja destruição é mais útil que sua conservação. Assim pois, coerentemente, aprendemos com Deus que é necessário destruir as primícias da estirpe egípcia, para que seja destroçado o mal, aniquilado com a destruição de seus primeiros brotos. Esta interpretação está de acordo com a história. A proteção dos filhos dos israelitas tem lugar por meio da aspersão do sangue para que o bem chegue à plenitude; por outro lado, aquele que ao amadurecer haveria de constituir o povo egípcio, este é destruído antes que chegue à plenitude no mal. O que segue está de acordo com a interpretação espiritual que propusemos, acomodando-se ao sentido do discurso. Prescreve-se, com efeito, que se converta em nosso alimento o corpo daquele do qual fluiu este sangue que, mostrado nos montantes das portas, afasta o exterminador dos primogênitos dos egípcios. A atitude dos que levam à boca esta comida há de ser sóbria e conforme com pessoas que têm pressa, não como a que se vê naqueles que se divertem em banquetes, cujas mãos estão soltas, as vestes sem cingir, os pés livres de calçados de viagem. Aqui tudo é o oposto. Os pés estão aprisionados nos sapatos, o cinturão cinge as pregas da túnica aos rins e, na mão, o bastão que defende dos cães (Ex 12, 11). E neste atavio, a comida é posta diante deles sem nenhuma preparação complicada, mas elaborada apressadamente sobre o fogo, de forma improvisada. Os convidados a devoram rapidamente, a toda pressa, até que todo o corpo do animal tenha sido consumido. Comem tudo o que é comestível em redor dos ossos, porem não tocam no que está dentro, pois é proibido romper os ossos deste animal. O que sobra de comida é consumido pelo fogo (Ex 12, 9-10 e Nm 9, 12). De tudo isto se depreende com clareza que a Escritura está visando um significado mais elevado, já que a Lei não nos ensina o modo de comer, para estas coisas é suficiente guia a natureza, a qual colocou em nós o apetite, mas através disto quer significar outra coisa. De fato, que tem a ver com a virtude ou o vício a comida ser apresentada de uma forma ou de outra, com a cintura cingida ou sem cingir, descalços os pés ou com os sapatos, tendo o bastão na mão ou o havendo deixado? Resulta claro, ao contrário, o que significa simbolicamente a preparação do aparato de viagem. Convida-nos diretamente a que reconheçamos que na vida presente estamos de passagem, como caminhantes, impelidos desde o nascimento até à morte pela mesma necessidade das coisas. E que é necessário que as mãos, os pés e tudo o demais estejam preparados para esta saída a fim de ter segurança no caminho. Para que não sejamos feridos nos pés desprotegidos e descalços pelos espinhos desta vida, os espinhos poderiam ser os pecados, protejamo-los com a defesa dos sapatos. Isto é a vida casta e austera, que quebra e dobra por si mesma as pontas dos espinhos, e evita que o mal penetre dentro de nós com um começo pequeno e imperceptível. Uma túnica que flutua solta sobre os pés e que se enreda entre as pernas seria um estorvo para quem anda corajosamente por este caminho, segundo Deus. Neste contexto, poderíamos entender a túnica como a relaxação prazenteira nos cuidados desta vida a qual uma mente sábia, convertendo-se em cinturão do caminhante, reduz e aperta. Que o cinturão é a temperança, se atesta pelo lugar ao qual cinge. O bastão que defende das feras é a palavra da esperança, com a qual sustentamos a alma em suas fadigas e afugentamos os que ladram. O alimento para nós preparado no fogo comparo com a fé cálida e ardente que acolhemos sem demora, de que comemos quanto de comestível está à mão do que come, enquanto deixamos de lado, sem buscar e sem espiar curiosamente, a doutrina que está velada em conceitos duros e dificilmente assimiláveis, entregando ao fogo um alimento semelhante. Para explicar os símbolos utilizados em relação a isto, dizemos o seguinte: alguns dos ensinamentos divinos têm um sentido exeqüível; não convém recebê-los preguiçosamente nem de má vontade, mas saciar- nos, como famintos impelidos pelo apetite, dos ensinamentos que estão diante de nós, de forma que o alimento se converta em robustecimento para nossa saúde. Outros ensinamentos são obscuros, como o indagar qual é a substância de Deus, ou o que existia antes da criação, ou o que há alem das aparências, ou que necessidade marca os acontecimentos, e todas as coisas deste estilo que são investigadas pelos curiosos; é necessário deixar que estas coisas só sejam conhecidas pelo Espírito Santo, que penetra as profundidades de Deus, como diz o Apóstolo (1Co 2, 10). Com efeito, ninguém que esteja familiarizado com a Escritura ignora que nela o Espírito freqüentemente é lembrado e é designado como fogo. Somos levados a esta interpretação pela advertência da Sabedoria: Não especules sobre o que te ultrapassa (Eclo 3, 22), isto é, não rompas os ossos do ensinamento, pois não te é necessário o que está escondido (Eclo 3, 23).
Capítulo 15
Assim é que Moisés tira o povo do Egito. Do mesmo modo, todo o que segue as pegadas de Moisés livra da tirania egípcia a todos aqueles a quem chega a palavra. Penso que os que seguem a quem os conduz à virtude não devem ser privados da riqueza egípcia, nem carecer dos tesouros estrangeiros, mas devem levar consigo todas as coisas que pertencem a seus adversários por empréstimo. Isto é o que Moisés manda o povo fazer (Ex 12, 35-36). Que ninguém, tomando isto ao pé da letra, entenda o propósito do Legislador como se ele mandasse despojar os ricos e se convertesse assim em condutor da injustiça. Ninguém que considere atentamente as leis que seguem em continuação proibindo a injustiça contra os que estão perto, tanto aos que estão acima como aos que estão abaixo, diria na verdade que o Legislador tivesse ordenado isto, ainda que a alguns pareça ser justo que, com este subterfúgio os israelitas paguem a si mesmos os salários pelos trabalhos prestados aos egípcios. Com efeito, uma ordem assim não estaria livre da acusação de não estar limpa de mentira e engano. De fato, quem toma uma coisa emprestada, e sendo alheia não a devolve a seu dono, comete injustiça por privá-lo dela; e se esta coisa é sua, ao menos é chamado mentiroso por enganar a quem a tinha com a esperança de tirar proveito. Por esta razão, mais apropriada que a interpretação literal, é a interpretação espiritual que exorta aqueles que buscam uma vida livre através da virtude a abastecer-se com a riqueza estrangeira na qual se glorificam os que são alheios à fé. Assim ocorre com a ética, a física, a geometria, a astronomia, a dialética e todas as demais ciências que são cultivadas por quem não pertence à Igreja. O guia da virtude exorta a tomá-las de quem, no Egito, as possui em abundância, e a usá-las quando forem necessárias a seu tempo, quando seja necessário embelezar o divino templo do mistério com as riquezas da inteligência. Na verdade, aqueles que haviam entesourado para si esta riqueza a apresentaram a Moisés quando trabalhava na construção da tenda do testemunho, prestando cada um sua contribuição para a preparação das coisas santas. Podemos ver que isto também ocorre hoje. Muitos apresentam à Igreja de Deus, como um dom, a cultura pagã. Assim fez o grande Basílio que adquiriu formosamente a riqueza egípcia no tempo de sua juventude, a dedicou a Deus, e embelezou com esta riqueza o verdadeiro tabernáculo da Igreja.