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domingo, 19 de março de 2023

Da Mesopotâmia à China

Povos da Mesopotâmia | Brasil Escola/UOL

Da Mesopotâmia à China

Como a fé em Jesus Cristo chegou até a China pela Ásia Central no primeiro milênio, graças a uma Igreja que a maioria desconhece.

de Lorenzo Cappelletti

A surpresa de Marco Polo, quando encontrou cristãos nas longínquas terras chinesas, é a mesma que se apodera ainda hoje da maior parte dos cristãos no Ocidente, quando ouve falar da existência de comunidades cristãs presentes desde a mais distante Antiguidade a leste das fronteiras do Império Romano, no interior dos vastos territórios da Ásia Central, da Pérsia e até da Índia e da China. São comunidades um pouco apressadamente chamadas de nestorianas, pois na época do Concílio de Éfeso (431), que condenou o patriarca constantinopolitano Nestório, ficaram fiéis à tradição teológica antioquena, da qual provinha Nestório, contra o extremismo da corrente teológica alexandrina (mostrando visão de futuro, pois, é forçoso dizer, esta estava levando a desvios monofisistas). Mesmo porque já antes do Concílio de Éfeso, essas comunidades tinham pretendido tomar distância da Igreja de Estado romana. Desde o início do século III, esses cristãos tinham um patriarca seu ( katholikos), com sede em Selêucia-Ctesifonte, às margens do Tigre, cuja autonomia nasceu da necessidade de mostrar a independência desses cristãos em relação ao Império Romano, que constituía havia séculos o inimigo por excelência do mundo persa. Mais que um distanciamento em nível dogmático, em outras palavras, sua autonomia tendia a evitar incompreensões e perseguições.

O berço dessa Igreja siro-oriental (denominação que, pelo que dissemos até aqui, condiz mais com sua natureza que “nestoriana”) foi a região noroeste da Mesopotâmia, área de fronteira entre o Império Romano e o Persa. Desde a metade do século II se estabeleceram nessa região, que bem cedo se estendeu para o oriente, comunidades cristãs ligadas à Igreja de Antioquia, Igreja de caráter pluralista e aberto ao mundo pagão, como sabemos pelos próprios Atos dos Apóstolos.

Quando os persas, no século IV, ocupam a parte da região mesopotâmica sujeita a Roma, as deportações, também de cristãos, fazem crescer as comunidades cristãs do Oriente persa. Estas se desenvolverão, apesar de alguns períodos de perseguição entre os séculos IV e V, não apenas dentro do Império Persa, mas também a leste dele.

A cidade de Herat, que infelizmente vemos vez por outra nos jornais apenas pelo fato de serem o quartel-general do contingente italiano no Afeganistão, foi sé arquiepiscopal a partir de 585. Da mesma forma, outras cidades e regiões de nome mítico e exótico foram sedes de comunidades cristãs que floresceram ao longo da rota da seda. Merw, a atual Mary, no Turcomenistão, considerada a porta da Ásia, já era sé episcopal e rica em mosteiros no século IV. Samarcanda e Tashkent, no Uzbequistão, na região além do rio Oxus (o atual Amu Darya), foram o lugar de encontro com os sogdianos, mercadores nômades que, por sua vez, levaram o cristianismo para o Extremo Oriente. De fato, a sua língua, que era usada em toda a Ásia Central para as trocas e o comércio, tornou-se também o meio de comunicação que permitiu ao cristianismo chegar no final do século VI a algumas tribos turco-mongóis do Altai e depois, a partir do oásis de Turfan, ao território chinês, indo até a capital imperial Chang an.

Atualmente, os herdeiros da tradição siro-oriental, que tem em comum o siríaco como língua litúrgica, são os caldeus católicos do Iraque e do Irã (cerca de 700 mil no total), em plena comunhão com Roma desde 1553, guiados pelo patriarca da Babilônia dos Caldeus (Bagdá), e a Igreja assíria do Oriente (menos de 300 mil fiéis), que não está em plena comunhão com Roma e até pouco tempo atrás era chamada “nestoriana”, mas com a qual foi firmada em 11 de novembro de 1994 uma declaração comum concernente a profissão da fé em Jesus Cristo e, ainda mais recentemente (20 de julho de 2001), estabeleceram-se orientações para a admissão à eucaristia, de modo a promover uma crescente comunhão entre a Igreja caldeia e a Igreja assíria do Oriente. Podem também ser considerados pertencentes à tradição siro-oriental os quase quatro milhões de siro-malabarenses da costa ocidental da Índia.
Sem querermos ser professorais, talvez valha a pena propor algumas indicações bibliográficas muito simples, pelo fato de a questão envolver temas e lugares extremamente distantes do nosso horizonte habitual e, com isso, corrermos o risco de nos perder. Um breve panorama sobre a atualidade das Igrejas do Oriente pode ser encontrado numa obra de Ronald Roberson, The Eastern Christian Churches. A Brief Survey, que em 2008 chegou a sua sétima edição e contém também uma rica bibliografia. E, se o leitor quiser um manual em italiano de caráter histórico sobre o tema, podemos sugerir a obra em três volumes de Giorgio Fedalto, Le Chiese d’Oriente, ou então Le Chiese d’Oriente. Identità, patrimônio e quadro storico generale, de Filippo Carcione, ambos de meados da década de 1990. Mais propriamente sobre a história que liga a Antioquia apostólica à China, é possível consultar La via radiosa per l’Oriente, de Matteo Nicolini-Zani, de 2006. “De fato, não é possível isolar o cristianismo que floresceu na China no primeiro milênio de sua origem médio-oriental e de seu percurso de expansão centro-asiática” (p. 20). Recentemente (2008), com organização de Ilaria Ramelli, foram publicados (acompanhados de rica bibliografia) os Atti di Mar Mari, ou seja, o relato da primeira evangelização da Mesopotâmia, por obra de Mari, discípulo de um dos setenta discípulos do Senhor. Concluindo poderíamos indicar o livro do cardeal Etchegaray, Vers les chrétiens en Chine, vus par une grenouille au fond d’un puits (2005), no qual fala das suas quatro viagens à China.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF