Arquivo 30Giorni n. 01 – 2001
"A fé nasce da vontade, não da coerção"
Com estas palavras de De civitate Dei ,
Alcuíno, o conselheiro mais ouvido de Carlos Magno, dirige-se ao rei franco que
tentou forçar o batismo dos saxões. Na história da Igreja, a autoridade de
Santo Agostinho, desde que reconhecida, representou um elemento de crítica à
imposição da prática cristã pela força. E a toda idealização doentia das
realidades mundanas. Entrevista com Alessandro Barbero.
por Paolo Mattei
Um espírito missionário mais genuíno do que em outras
épocas?
BARBERO: Devo fazer uma premissa metodológica por lealdade à minha
profissão: hesitaria em dizer que há certas épocas em que somos sinceros e
genuínos e outras em que não o somos mais. Em cada momento histórico há uma
coexistência de pontos de vista, de atitudes. Eu não chegaria à distinção um
tanto maniqueísta entre períodos históricos genuínos e bons e outros em que
tudo é negativo e ruim: essa é uma atitude anti-histórica. A era da qual estamos
falando não foi caracterizada apenas pela necessidade de expansão imperialista.
Deve ter havido também este aspecto, porque é fácil imaginar que para certos
guerreiros francos que lutaram na Saxónia sob Carlos Magno (uma guerra, repito,
que durou trinta anos e nunca terminou realmente, caracterizada pelas contínuas
rebeliões daquele povo visceralmente ligada aos (seus próprios ritos
religiosos) a conversão dos pagãos representava uma questão secundária em
relação à ampliação das posses fundiárias, à subjugação de novos escravos, à
divisão de cargos e prebendas. Em suma, a dimensão imperialista certamente
estava presente e trouxe consigo um pesado fardo de violência. Ao mesmo tempo,
porém, existia um clero, monges e intelectuais que refletiam sobre a natureza
moral e política da questão. E assim acontece que Alcuíno, o mais ouvido por
Carlos entre os seus conselheiros, ao saber da pesada violência que o rei
franco havia perpetrado contra os rebeldes saxões querendo batizá-los à força,
lhe escreve, citando o De civitate Dei , de Santo Agostinho,
que "a fé nasce da vontade, não da coerção. Você pode persuadir um homem a
acreditar, mas não pode forçá-lo." E acrescenta: "A Saxônia precisa
de pregadores, não de predadores". Carlos Magno escuta esses seus amigos.
E quando se tratou de "planejar" outra missão, desta vez contra os
ávaros, nos acampamentos do exército, em 796, reuniu-se uma espécie de
conferência episcopal, de cujo trabalho emergiu, em documento oficial, uma
condenação por demais forte. livre dos métodos seguidos na Saxônia. Não devemos
repetir os mesmos erros, devemos basear nossa pregação no amor e não na
imposição. Alcuíno e outros, como Paulino, patriarca de Aquileia, que presidiu
aquela conferência, deixaram claro que ninguém pode ser forçado a acreditar.
Além disso, por parte dessas pessoas, há toda uma consideração política
realista: é um clero, aquele que cerca Carlos Magno, que conhece o mundo. Na
Saxônia, eles ressaltam, introduzimos o sistema eclesiástico e, em todos os
lugares, forçamos as pessoas, antes de tudo, a pagar o dízimo para a manutenção
do pároco. E essas pessoas, é claro, não estavam felizes. Não podemos trazer o
cristianismo e primeiro dizer: você tem que pagar um imposto!
Em suma, há uma capacidade de gerir o problema tanto do
ponto de vista político como moral que, naquele momento, é notável.
O que levou a Igreja de Roma a estabelecer uma aliança
com os distantes francos, que eram, em última análise, bárbaros como os
lombardos, o que culminou na coroação imperial de Carlos Magno?
BARBERO: Vários motivos. Os lombardos estavam na Itália desde 568. Para
eles, um acordo com o papado só seria concebível se o papa concordasse em ser
bispo do reino lombardo. Roma teve que concordar em se tornar parte do reino e,
como todos os outros bispos, como os de Milão e Pavia, o bispo de Roma também
teve que reconhecer a autoridade de seu rei. Os lombardos queriam essa
submissão completa, essa era a linha deles, eles não podiam recuar mais. Por
outro lado, com os francos, que estavam distantes, era possível, de alguma
forma, lidar em termos de igualdade, como uma potência para outra.
Depois há outra razão, talvez ainda mais importante. Os
francos, do ponto de vista do Papa, eram na verdade "menos bárbaros"
que os lombardos porque estes últimos eram arianos há muito tempo e, portanto,
hereges. Eles então se converteram ao catolicismo, mas durante a longa fase
ariana tiveram relações muito ruins com toda a estrutura da Igreja. Este fato
teve um forte impacto na decisão de Roma. Enquanto os francos tiveram, digamos,
um "golpe de sorte" com o rei Clóvis, que, no século V, se converteu
ao cristianismo na forma católica, provavelmente no Natal de 496. Foi uma
coincidência, uma questão de encontros fortuitos, porque as tribos francas,
durante suas viagens, não encontraram nenhum ariano. Em vez disso, eles
conheceram católicos. Enquanto os lombardos, que vieram mais a leste, da
Panônia, estavam em contato com um clero ariano. São apenas coincidências.
Assim, os francos, estabelecidos na Gália, convertidos ao catolicismo,
imediatamente iniciaram uma colaboração muito próxima com o episcopado local.
Portanto, o reino franco, entre todos os reinos romano-bárbaros, mesmo antes de
Carlos Magno, era de longe o mais robusto, o que melhor funcionava, mesmo a
nível administrativo e cultural, porque tinha o apoio leal do episcopado e do
Clero católico. Obviamente esta boa notícia chega aos ouvidos de Roma que, a
certa altura, tira as suas conclusões...
Carlos Magno também teve que lidar, durante os anos em
que reinou, com os muçulmanos. Alguns estavam próximos, além dos Pireneus…
BARBERO: Os muçulmanos eram uma realidade relativamente nova naquela época.
Muito pouco se fala sobre eles nos círculos intelectuais. Na época de Carlos,
ainda não havia o esforço, que seria implementado depois do ano 1000, de ler
suas obras, de traduzir o Alcorão, de entender o que eles pensavam; Ainda não é
hora de descobrir que eles realizaram as poderosas traduções que permitirão ao
Ocidente recuperar toda a cultura grega. Este trabalho será então feito na
época de Dante. Na época de Carlos Magno, a sensação era de que o mundo era
grande e cheio de coisas, até mesmo misteriosas, cheio de cristãos, mas também
de bárbaros e pagãos. E até o fenômeno muçulmano é abordado com pragmatismo e
realismo político. Em outras palavras, para simplificar: se não podemos
derrotar essas pessoas, vamos tentar conviver com elas. Carlos teve que lidar
concretamente com os muçulmanos apenas na frente espanhola. Em 778, ele
organizou uma expedição além dos Pireneus para ajudar o governador de
Barcelona, Sulaimân ben Yaqzân ibn al-Arabi e outros “principes
Sarracenorum” que se rebelaram contra o emir de Córdoba e pediram ajuda a
Carlos Magno. Ao retornar desta expedição, a retaguarda do exército franco foi
destruída em uma emboscada nos Pireneus: deste episódio nasceu a lenda do herói
Rolando, do traidor Ganelon e da emboscada que os muçulmanos armaram perto de
Roncesvalles. Na realidade, os autores da armadilha fatal foram os bascos, os
cristãos, e não os muçulmanos.
Mas os muçulmanos não estavam apenas na Espanha…
BARBERO: Havia outros, mais distantes, como Harûn al-Rashid, em Bagdá, califa
de 786 a 809, com quem Carlos sempre manteve excelentes relações, enviando e
recebendo embaixadas e presentes. Famoso é o elefante Abul Abbas, um presente
do Califa, que Carlos sempre levará consigo em todas as suas viagens.
Em suma, professor, podemos falar de tolerância religiosa
nas relações entre cristãos e muçulmanos do século IX?
BARBERO: Eu não chegaria a falar de tolerância programática, mas de
pragmatismo, sim, de realismo político. Por outro lado, Harun al-Rashid
provavelmente também fez as mesmas considerações para manter relações cordiais
com Carlos em nome de uma prudência política muito realista: ele não sabia
muito sobre esses bárbaros do Norte que estavam em Roma ou Aachen. . Eles,
portanto, mantinham excelentes relações, sem espírito de guerra santa. A
questão é esta. Há uma concepção missionária nos cristãos da época de Carlos
Magno que, no entanto, é gerida com realismo político. A ideia não é: “nós e
eles”, “nós contra eles”. Acima de tudo, o problema de Jerusalém não surge
porque os árabes em Jerusalém naquela época são muito tolerantes: o patriarca
cristão continua a viver lá, mesmo sob o domínio árabe, e os peregrinos vão a
Jerusalém sem problemas. Ainda não existe essa ideia, eu diria doentia, de que
Jerusalém deve estar toda de um lado ou de outro. Uma ideia que está então na
origem de muitos problemas que estão aí para todos verem.
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