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domingo, 30 de junho de 2024

'A língua que falamos determina como pensamos' (1)

Língua do povo indígena pirahã é foco central de um polêmico debate acadêmico há décadas (Daniel  Everett)

'A língua que falamos determina como pensamos': americano que cresceu com indígenas na Amazônia explica relação.

  • Autor, Daniel Gallas
  • Role, Da BBC News Brasil em Londres
  • 22 junho 2024

Todos nós humanos vivemos no mesmo mundo e temos experiências semelhantes. Por isso, todas as línguas faladas no planeta possuem as mesmas categorias básicas para expressar ideias e objetos — refletindo essa experiência humana comum.

Essa noção foi defendida por anos por diversos linguistas, mas para o linguista americano Caleb Everett, quando analisamos os idiomas mais de perto, descobrimos que muitos conceitos básicos não são universais e que falantes de línguas diferentes veem e pensam o mundo de forma diferente.

Em um novo livro, baseado em muitas línguas que ele pesquisou na Amazônia brasileira, Everett mostra que muitas culturas não pensam da mesma forma o tempo, o espaço ou os números.

Algumas línguas têm muitas palavras para descrever um conceito como tempo. Outras, como a Tupi Kawahib, sequer tem uma definição de tempo.

Talvez poucas pessoas estejam mais aptas a pensar sobre esse problema do que Everett. Nascido nos Estados Unidos, ele teve uma infância incomum nos anos 1980, dividindo seu tempo entre seu país natal, escolas públicas em São Paulo e Porto Velho, e aldeias indígenas no interior da Amazônia, em Rondônia.

Caleb é filho do americano Daniel Everett, que veio ao Brasil nos anos 1970 como missionário cristão com o propósito de traduzir a Bíblia para o idioma pirahã — uma língua falada hoje por cerca de 300 indígenas brasileiros.

Daniel veio para ajudar a converter os indígenas, mas acabou ele próprio convertido: abandonou a religião e passou a se dedicar ao estudo do pirahã, com um doutorado em linguística na Unicamp.

Desde cedo, Caleb acompanhou o pai e a mãe (que também era missionária) em missões na Amazônia brasileira. Chegou a viver entre os indígenas, passando parte da infância pescando e brincando com eles na floresta.

De volta aos EUA, se formou e foi trabalhar no mercado financeiro. Mas uma questão sempre o perturbou: interessado em psicologia, ele lia em revistas científicas que diziam que a forma que os humanos aprendem e entendem os números é universal.

“Nem todos os humanos pensam assim. Eu tenho o grande privilégio de conhecer alguns dos povos indígenas do Brasil que não pensam assim”, diz Everett.

Cada vez mais interessado em pesquisar sobre os indígenas que conheceu na sua infância, ele resolveu dar uma guinada na sua vida. Abandonou o mundo financeiro, fez doutorado e voltou para Rondônia, onde foi investigar as línguas amazônicas.

Da pesquisa, saiu seu primeiro livro, de 2017, Numbers and the Making of Us: Counting and the Course of Human Cultures (“Os números e a nossa formação: a contagem e o curso das culturas humanas”, em tradução livre). No livro, Caleb Everett defende que os números são um conceito que não é natural ou inato ao ser humano — e varia imensamente de acordo com cada cultura e idioma, ao ponto que é impossível dizer que existe uma forma universal e “natural” para os humanos aprenderem quantidades.

Recentemente, ele lançou outro livro em que volta ao tema. Em A Myriad of Tongues: How Languages Reveal Differences in How We Think (“Uma miríade de línguas: como as línguas revelam diferenças na forma como pensamos”, em tradução livre), Everett diz que nos acostumamos a acreditar que todas as línguas do mundo usam categorias universais para classificar ideias e objetos — já que a experiência humana é limitada a alguns aspectos comuns de todas as culturas.

Afinal, todos nós — independentemente de onde nascemos — contamos quantidades, lembramos do passado, planejamos o futuro e usamos pontos geográficos para nos localizarmos.

O linguista americano Caleb Everett passou parte de sua infância junto ao povo pirahã, em Rondônia (Emily Fakhoury)

Mas, segundo Everett, nem todas as línguas refletem o mundo dessa forma. Há línguas no mundo — como a pirahã, que ele aprendeu na infância — que sequer têm números precisos. Algumas línguas possuem apenas dois tempos verbais (o futuro e o não-futuro); outras possuem sete.

Essas discrepâncias são muito maiores do que apenas diferenças culturais, argumenta Caleb. Elas determinam de forma profunda como cada ser humano percebe e pensa o mundo.

A diferença é que para um povo, algumas noções de tempo podem ser não só irrelevantes — como quase incompreensíveis. Já outros povos podem ter uma compreensão mais sofisticada de tempo do que outros.

Para entender isso, linguistas como Caleb estão se debruçando sobre muitas línguas que não eram devidamente estudadas no passado — sobretudo na Amazônia. A tecnologia e a facilidade de se viajar no mundo atual acelerou o trabalho dos linguistas.

Mas eles correm contra o tempo, já que a modernidade está "matando" línguas em um ritmo mais acelerado, com povos indígenas tendo cada vez mais dificuldade de se sustentarem sem o aprendizado de outros idiomas.

O estudo das línguas amazônicas também está desafiando noções antigas de intelectuais sobre como os humanos falam. Esse debate traz à tona uma famosa disputa que existe no mundo acadêmico entre seu pai, Daniel, e o linguista americano Noam Chomsky, em torno da língua pirahã, de Rondônia, justamente a que Caleb aprendeu ainda quando criança.

Chomsky é famoso por propor o conceito de “gramática universal” — a ideia de que todas as línguas humanas possuem uma estrutura comum, independentemente de onde essas línguas se desenvolvem.

Mas Daniel Everett afirma que a língua pirahã desmente a tese de Chomsky. Em pirahã, não existiria a recursividade — algo que Chomsky diz ser inerente a todas as línguas e, portanto, universal. Recursividade é quando se insere uma frase dentro de outra, como em: “O policial que prendeu o bandido que roubou uma casa está na delegacia”.

Esse é um dos debates mais acalorados no mundo da linguística. Chomsky chegou a chamar Daniel Everett de charlatão e sugeriu que sua pesquisa sobre os pirahã era falsificada – já que por anos Daniel foi o único acadêmico a falar a língua.

Em entrevista para a BBC News Brasil, Caleb disse acreditar que este debate está ficando no passado, com os avanços tecnológicos que estão acontecendo no mundo da linguística. No mundo de hoje, são faladas mais de 7 mil línguas — e graças a avanços como ciência de dados e aprendizado de máquina, linguistas estão conseguindo expandir sua compreensão desses idiomas em uma velocidade inédita.

O resultado, segundo Caleb, é que algumas noções clássicas do mundo da linguística dos anos 1970 estão finalmente podendo ser colocadas à prova — e muitas delas não estão sendo aprovadas no teste.

Confira abaixo a entrevista que Caleb Everett deu à BBC News Brasil na qual fala sobre suas experiências na Amazônia brasileira, o debate sobre como as línguas moldam o mundo que experimentamos e os avanços no estudo dos idiomas nos dias de hoje.

BBC News Brasil: Seu livro sugere que estamos tendo uma melhor compreensão das mais de 7 mil línguas que hoje são faladas no mundo. O que os linguistas estão aprendendo com essas línguas menos conhecidas?

Caleb Everett: Estamos aprendendo muito. O que está claro é que as línguas são muito mais diferentes entre si do que pensávamos. Nós costumávamos supor que existia essa diversidade entre as línguas, mas que por trás delas haveria algum tipo de componente universal — algo que todas as línguas compartilhavam.

E o que estamos descobrindo, à medida que olhamos para mais e mais línguas, é que elas são diferentes em maneiras muito profundas, que não foram previstas em alguns dos modelos teóricos da linguística dos anos 1960 e 1970.

Existem alguns pontos em comum, é claro. Todos nós temos os mesmos ouvidos, as mesmas bocas e os mesmos cérebros.

Há essas semelhanças entre as línguas, mas não é porque existe algo geneticamente programado dentro da linguagem.

Livro de Caleb Everett discute como línguas podem revelar formas diferentes de pensamento dos humanos (Divulgação)

BBC: Muito do seu trabalho é baseado em línguas amazônicas que você estuda há muito tempo. O que você aprendeu especificamente com elas?

Everett: A Amazônia é realmente fascinante, porque embora existam outras regiões do mundo, como a Nova Guiné ou a África Ocidental, que têm mais línguas, as línguas da Amazônia são totalmente não relacionadas entre si.

Existem algumas centenas de línguas, mas existem dezenas de famílias linguísticas, como tupi ou aruaque ou algumas outras línguas isoladas que não têm ‘parentes’ conhecidos.

Algumas são totalmente distintas entre si e estão a apenas 100 quilômetros de distância uma da outra.

A Amazônia é uma espécie de microcosmo fascinante da diversidade linguística que existe no mundo.

E podemos aprender muito sobre as diversas formas como os humanos se comunicam olhando apenas para as pessoas na Amazônia.

Muitas vezes, eu acho, nós somos culpados no Ocidente de uma espécie de homogeneização desses grupos. Nós meio que os colocamos suas línguas, suas culturas no mesmo bojo.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese

Reflexão para a festa de São Pedro e São Paulo (B)

Festa de São Pedro e São Paulo (Vatican News)

Festejar os santos é praticar seus ensinamentos e seguir seus testemunhos de fé.

Padre Cesar Augusto, SJ - Vatican News

Quando desejamos refletir bem, sem influência alguma de pessoas ou situações, nos retiramos para um local afastado e silencioso. Queremos estar a sós conosco na natureza e na presença de Deus. Foi o que Jesus fez com seus discípulos quando escolheu aquele que iria governar seu rebanho. O Senhor se dirigiu com eles a Cesaréia de Filipe, um lugar afastado do mundo judeu e significativo pela natureza, próximo ao monte Hermon e a uma das fontes do Jordão.  Lá, na solidão e apenas na presença do Pai, checou o coração de Simão e o fez seu vigário. O eleito estava tão purificado, tão livre de apegos e amarras mundanas e tão cheio do Espírito que declarou a identidade de Jesus, reconhecendo-o como o Messias de Deus.

Por outro lado, Jesus confirmou seu nascimento na fé, dando-lhe outro nome, o de Pedro, pedra e indicando seu novo e definitivo encargo: confirmar seus irmãos na fé.

Além de graças para viver plenamente essa missão, Pedro as recebeu também para levá-la até o fim, quando dará glória a Deus através de sua morte na cruz, como o Mestre, só que de cabeça para baixo.

Simão nasceu de novo, recebeu outro nome, outra função na sociedade, aumentou enormemente seu compromisso na fé. Ao entregar-se na condução de seus irmãos, Pedro viveu momentos de alegria e de tristeza, de certezas e de abandono total na fé. O que passou a guiar sua vida, a ser fiel na missão recebida e abraçada foi a certeza da fidelidade do Senhor. Agora Pedro vai deixando Deus ser o oleiro, fazer dele um homem à imagem de Jesus. Por isso ele é pedra, não por causa de sua dureza, mas por causa de sua solidez e confiabilidade. Da dureza da pedra Pedro apenas guardou a resistência às investidas do inimigo. Nada pode vencê-lo.

Como chefe da Igreja, Pedro recebeu o poder de ligar e desligar, isto é, declarar o que está de acordo ou em desacordo com o projeto de Jesus. Por isso ele foi sempre esse homem renascido para a missão. Não será por este motivo que os papas mudam de nome?

Mas hoje também é o dia de São Paulo, a outra coluna da Igreja. Pedro é a coluna que nos confirma na fé e Paulo é a que evangeliza.

A liturgia nos propõe como reflexão a carta a Timóteo, onde o Apóstolo faz seu testamento e a revisão de sua vida cristã. De qualquer modo, Paulo, antes da conversão Saulo, também será assemelhado a Jesus, vítima sacrificada em favor de muitos. Ele deduz que o momento de seu martírio, de dar testemunho de Deus, está próximo.

Nessa ocasião foi feita a revisão de vida. Paulo teve consciência de que foi fiel à missão, que cumpriu o encargo de anunciar ao mundo o Evangelho. Teve consciência do quanto sofreu e padeceu por esse motivo e agradeceu a Deus por ter guardado a fé.

Em seguida Paulo expressou sua certeza no encontro com o Senhor, quando então será recompensado por tudo, através da convivência eterna com Ele.

Festejar os santos é praticar seus ensinamentos e seguir seus testemunhos de fé.

Que o Senhor nos ajude a louvar São Pedro e São Paulo, fazendo com que cada dia, cada despertar nós seja par nós um novo dia, o reinício da vida nova iniciada com o nosso batismo. Para isso é necessário abandonarmo-nos nas mãos de Deus, permitindo a Ele nos refazer, nos moldar segundo seu coração e confiando no resultado final que, como Paulo, só veremos no final da vida.

Que as alegrias e os êxitos, as dificuldades e os sofrimentos do dia-a-dia não impeçam nosso crescimento na fé, mas amadureçam e solidifiquem a ação do Espírito.

Finalmente, sirva-nos de referencial para a fidelidade a Cristo e sua Igreja, a conformidade de nossa vida aos ensinamentos de Pedro.

Que a celebração dessas duas colunas da Igreja seja uma ocasião de graças para o crescimento do Reino de Deus de nossa vida cristã!

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Com os braços abertos a todos. A visita de São Josemaria Escrivá ao Brasil (4)

A visita de São Josemaria Escrivá ao Brasil | Flickr-Photos/Opus Dei

Com os braços abertos a todos. A visita de São Josemaria Escrivá ao Brasil

1974. São Josemaria Escrivá esteve 15 dias no Brasil. Que mensagem deixou aos brasileiros? Qual foi a sua impressão sobre o país? Este artigo inédito descreve como foram organizados os encontros com o fundador do Opus Dei em São Paulo, e resume a sua mensagem.

29/08/2017

Temas das tertúlias gerais

a) O amor a Deus, vida de oração e santidade

São Josemaria Escrivá não abordava os assuntos de um modo teórico, mas vital, e assim transmitia seu profundo amor a Deus. Declarava, muitas vezes de forma explícita, sua identificação com Cristo como sacerdote, e animava a todos a buscar esta identificação. «E como sirvo ao Senhor? Falando às almas de Deus e somente de Deus. [...] Só quero recordar que sou Cristo, e Cristo fala de paz e de guerra, e Cristo fala de dar e dar-se, e Cristo fala sempre... de amor!»[88]. Em alguma ocasião, o próprio São Josemaria reconhecia que a única coisa que lhe interessava era transmitir este amor. «Comentamos que essa tertúlia, como sempre, fora uma autêntica catequese, e o Padre disse que se tratava de uma catequese de amor, e que não se falava senão de Deus. Disse também que, seguindo a doutrina de São Paulo, tinha rezado pelas autoridades, e falou do contraste dessa doutrina com a dos que pregam violência e luta de classes»[89].

Como é conhecido, São Josemaria não separa a vida ordinária, com os seus trabalhos e tantos pormenores, da relação com Deus. Por isso, nos seus ensinamentos, a ascética e a mística estão implicadas. Por exemplo, respondendo a uma empregada doméstica sobre o modo de cumprir sempre os propósitos, dá-lhe conselhos mais ligados à vida de oração. «Olha, todas estas coisas que fazes no serviço doméstico, todo o teu trabalho profissional, com o desejo, com o pensamento, fá-las no lar de Nazaré, onde estão Jesus, Maria e José»[90]. Nas suas catequeses sempre deixava claro – esta é a missão própria do Opus Dei – que a santidade está ao alcance da mão, na vida oculta de todos os dias. «Escuta, meu filho, os santos não fazem barulho. Provavelmente perto de ti haverá tantas pessoas que são muito agradáveis aos olhos de Deus e verdadeiramente santas. [...] E, além disso, o Senhor nos pede a todos nós, a ti e a mim também, que sejamos santos»[91].

Para chegar a Deus, reforçava a necessidade de buscá-lo com humildade e manter-se na sua presença, santificando a própria tarefa. «Procure-o no seu coração! [...] aproxime-se ao Pai do Céu, diga-lhe que o quer, diga-o carinhosamente muitas vezes ao dia, [...] e deste modo não se afaste do caminho de cristã, santifica a sua profissão e fará muito bem seu trabalho profissional»[92]. E, explicava São Josemaria, a oração vai conduzindo cada pessoa a se identificar com Cristo, com os seus sentimentos, a unir-se a Deus no trabalho e procurar aproximar muitas pessoas da graça de Deus.

b) A fé, amor à Igreja e os sacramentos

Outro tema muito frequente nos encontros gerais foi a fé. Relembrou, em pelo menos duas ocasiões, o depósito imutável da Revelação, que a Igreja deve conservar, e que, ao contrário de uma mentalidade difundida na época, nada tinha sido alterado deste núcleo essencial. Deste conteúdo da fé, São Josemaria destacava especialmente os sacramentos.

A religião está formada por uma série de preceitos, de coisas de fé dogmáticas, de outras de conduta que são morais, e que estão reveladas por Deus ao homem. Primeiro através dos profetas, depois através de Cristo Senhor Nosso, que para isso veio à terra. E a Igreja, nossa mãe, tem essa revelação em depósito. E é inalterável. [...] Não toca nada!, nenhuma coisa essencial, absolutamente!, os sacramentos são os mesmos! os mandamentos são os mesmos!, o Sacrifício do altar é o mesmo![93].

O fundador do Opus Dei advertiu em pelos menos duas ocasiões nessas tertúlias – e muitas outras vezes durante sua catequese no Brasil – da necessidade de cuidar da própria fé e da fé dos demais. No caso de uma mãe, que percebe que os professores não ensinam aos filhos a doutrina conforme a fé católica, o santo recordou que ela está obrigada a falar com a escola, a zelar pela educação dos filhos na verdadeira fé[94]. A uma pessoa que lhe perguntava, demonstrando preocupação, como ajudar os que se afastam de Deus, São Josemaria lembrou a Parábola do Filho Pródigo, infundindo-lhe tranquilidade e animando-o a interceder por estas pessoas. Logo após, também falou: «E tem cuidado pela tua alma e pela minha, que podemos também, com muita facilidade, nestes tempos revoltos, ir atrás dos porcos e da alfarroba»[95].

Era patente seu amor à Igreja, e falava forte quando abordava temas em que havia confusão doutrinal. Mas enchia os católicos de esperança, lembrando que Jesus ia na barca de Pedro, que parecia afundar, mas a barca de Pedro não afunda, dizia[96]. Para fazer crescer a fé, insistia em conhecê-la melhor, de fontes genuínas. Em uma ocasião mais íntima fez referência a isso, como relata o diário da sede da Comissão. Recordando outra pergunta sobre confusões doutrinais, falou da Revelação e do depósito da fé, que é intocável, sem esconder seu sofrimento[97]. Embora não tenha havido nenhuma pergunta diretamente sobre o tema, não deixou de animar o público a frequentar o Sacramento da Penitência, como o fez muitas vezes ao longo da sua estadia no Brasil. «Eu os aconselho a ir confessar com frequência: que receberão o perdão de Deus»[98].

c) Santificação do trabalho e luta ascética

Outro tema abordado por São Josemaria Escrivá foi o cumprimento do dever, como naturalmente era de se esperar. Insistiu nas virtudes da constância, da equanimidade, da responsabilidade. A uma pessoa que perguntou sobre a necessidade de cumprir os deveres mesmo sem vontade, afirmava: «Deve-se fazer as coisas mesmo quando não se tem vontade; então, como estão fundamentadas no sacrifício, na contradição... são muito mais fecundas, valem muito mais diante de Deus, brilham como luzeiros à noite». E aplicava este principio ao relacionamento com Deus: «Iremos sem vontade, mas sabendo que nos escuta, dizer-Lhe que não temos vontade, e já estamos fazendo oração. E verá como Ele lhe fala, verá como lhe remove, verá como acabará se acostumando a conversar com o Senhor, e como, no dia em que não se dirija a Deus, com vontade ou sem vontade, terá fome de fazê-lo, necessidade de fazê-lo!»[99].

Explicou também sobre santificação do trabalho, o fazer com perfeição as coisas humanas.

Um cristão, pelo fato de ser cristão, deveria ser profissionalmente pelo menos tão bom como o melhor dos não cristãos. [...] Não estejamos contentes com o nosso trabalho, se desprezamos os detalhes, se os fazemos com falta de amor, com pouco desejo de serviço. [...] Procure servir, que é o mais difícil. Fazer as coisas não por si, mas pelos outros, por Deus; para agradar o Senhor e fazer o bem aos outros. [...] E com isso terá uma grande paz na alma, e terá feito um grande bem ao Brasil, e o Senhor estará contente[100].

Através da visão sobrenatural, o cristão obtém a força para superar as pequenas e grandes dificuldades. «Vendo por trás de cada coisa a Vontade de Deus, e dando às coisas da terra a importância que têm, que é pouca. [...] Se nos colocamos diante de Deus e pensamos na eternidade, veremos que as dificuldades muitas vezes são inventadas por nós. Não existem. São muito pequenas... E de uma coisa pequena fazemos uma montanha»[101].

d) Caridade e apostolado em geral

A caridade em sentido amplo – incluindo a família, os colegas no trabalho e o apostolado com todos – foi o tema da maioria das perguntas nas duas tertúlias: 23 de 33 perguntas. Talvez a característica que mais chamou a atenção de São Josemaria tenha sido a cordialidade própria do brasileiro, fermentada sem dúvida pelo espírito cristão, muito voltado à convivência com os demais[102]. E percebeu, nestas características, um grande potencial de apostolado para toda a Igreja. Aproveitou a festa de Pentecostes, no dia 2 de junho, para referir-se a isso. Depois de citar os apóstolos, que começaram a falar em línguas e a proclamar as grandezas de Deus, disse: «Esta manhã me lembrei especialmente do Brasil e de São Paulo, porque aqui vejo pessoas de todos os países e de todas as línguas, que também entendem a voz de Cristo»[103].

Manifestou, naquele momento, seu sonho de que o Brasil fosse um povo missionário, que se multiplicasse, para contribuir na expansão da Igreja em todo mundo. Animava a rezar por isso. «Eu os abençoei para que vocês se multipliquem... Permitem que eu repita? [...] Como as areias de vossas praias, como as árvores dos vossos bosques – imensos! –, como as flores dos vossos jardins, como os aromas que se percebem no ar, no ambiente deste Brasil maravilhoso, como os luzeiros que brilham na noite...»[104].

Diante do que via, empurrava a todos a ter uma vida mais inserida em Cristo, para ser capazes deste trabalho missionário: «temos de acender-nos no desejo e na realidade de levar a luz de Cristo, o afã de Cristo, as dores e a salvação de Cristo a tantas almas de colegas, de amigos, de parentes, de conhecidos, de desconhecidos... – sejam quais forem suas opiniões pessoais nas coisas da terra –, para dar-lhes um bom abraço, fraterno! [...] Todos os cristãos temos obrigação de propagar a doutrina de Jesus Cristo»[105].

Incentivou todos a sentirem-se responsáveis pelo apostolado. Por exemplo, a uma pessoa que perguntava a respeito da educação escolar dos filhos, não teve dúvida em sugerir para os pais que promovam colégios onde se inclua também o ensino da fé cristã[106]. Era tal a sua delicadeza e amor à liberdade que, no regresso para casa, ao fazer referências a vários diálogos que tinha havido lá, comentou que teria sido um pouco invasivo ao falar dos colégios[107]. Depois de uma intervenção do pe. Xavier, ele mesmo sugeriu: «Os cooperadores. Sabem ganhar dinheiro em uma empresa... Devem saber dirigir isto...»[108]. São Josemaria, fiel à mensagem recebida por Deus da responsabilidade apostólica de todos os batizados, incentivava as pessoas próximas dos apostolados do Opus Dei, como é o caso da maioria os cooperadores, que tomassem parte ativa na promoção dos colégios, entre outras iniciativas.

Uma das perguntas deu oportunidade a São Josemaria de compendiar os seus anseios sobre o Brasil: o que espera deste país?[109]. De fato, sua resposta foi um resumo destes desejos:

Neste país, vocês naturalmente abrem os braços a todo mundo e recebem-no com carinho. Eu gostaria que isso se convertesse em um movimento sobrenatural, em um empenho grande para dar a conhecer a Deus a todas as almas; de unirem-se, de fazerem o bem não só neste grande país, mas a partir deste grande país a todo o mundo. Vocês têm que fazer sobrenaturalmente o que fazem naturalmente; e depois, levar esse empenho de caridade, de fraternidade, de compreensão, de amor, de espírito cristão a todos os povos da terra. Entendo que o povo brasileiro é e será um grande povo missionário, um grande povo de Deus, [...] e que vocês saberão cantar as grandezas do Senhor por toda a terra[110].

A amizade e a caridade é algo que deve brotar espontaneamente no cristão, fruto da graça e do empenho por ser santo, através da santificação pessoal nas tarefas ordinárias. «A melhor maneira de manifestar a amizade nobre e boa que tem pelos seus amigos é mostrar-se como é, como um homem cristão, como um professor que sabe cumprir sua obrigação na cátedra, como um profissional que está bem atualizado da ciência na que trabalha, como um cidadão que cumpre todos seus deveres»[111].

O segurança de uma loja perguntou-lhe sobre como tratar bem as pessoas, sorrindo e, ao mesmo tempo, cumprir bem o seu dever. «Meu filho, não disseste pouco: tu fizeste um programa inteiro de santidade no exercício da profissão», respondeu. Após falar da necessidade da mortificação e, com ela, do alento de Cristo que morreu na Cruz por nós, deu uma resposta que é uma demonstração clara do primado da caridade e que os sacrifícios estão direcionados sobretudo ao amor a Deus e ao próximo. Seu espírito tornava capaz de levar isso à prática:

Você é um grande cristão se sorri sempre: que Deus o abençoe! Mas não sorria só para tornar-se amável, nem para vender mais, mas por amor a Jesus Cristo... Porque você sabe que tem a obrigação de contribuir para a felicidade de todos. Nós não podemos ser egoístas. Se é mau cortar as asas do amor por hedonismo, por amor ao prazer, é pior ainda fechar-se cada um em si mesmo... e ser egoísta. Você me demonstrou que não é egoísta, que se preocupa com a apresentação das coisas, com ser amável, com ser afetuoso, com compreender, com desculpar aos exigentes[112].

__________

Alexandre Antosz Filho, sacerdote. Licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Paraná, mestre em História pela Universidade de São Paulo e doutor em Teologia (especialidade em História da Igreja) pela Pontificia Università della Santa Croce (Roma). e-mail: alexantosz@gmail.com

Notas:

[88] «¿Y cómo sirvo al Señor? Hablando a las almas de Dios y sólo de Dios. [...] Sólo quiero recordar que soy Cristo y Cristo habla de paz y de guerra, y Cristo habla de dar y de darse, y Cristo habla siempre... ¡de amor!». Anhembi, 2,6 [tradução nossa].

[89] Diário da primeira estadia, p. 90.

[90] «Todas estas cosas que haces en el servicio doméstico, toda tu labor profesional, con el deseo, con el pensamiento... hazlas en el hogar de Nazaret, donde están Jesús, María y José» Anhembi, 16,13 [tradução nossa].

[91] «Los santos no hacen ruido. ¿Oyes? Probablemente, cerca de ti habrá tantas personas que a lo ojos de Dios son muy agradables y verdaderamente santas. [...] Y además el Señor nos pide a todos nosotros –y a ti y a mí también, ¿eh?–, que seamos santos» Anhembi, 17,7-18, 3 [tradução nossa].

[92] «¡Búscalo en tu corazón! [...] Acércate al Padre del Cielo, dile que lo quieres, díselo cariño- samente muchas veces al día, [...] y de esa manera no te apartas del camino de cristiana, santificas tu profesión y harás muy bien tu labor profesional» Anhembi, 20,5 [tradução nossa].

[93] «La religión está formada por una serie de preceptos..., de cosas de fe dogmáticas, de otras de conducta que son morales, y que están reveladas por Dios al hombre: primero a través de los profetas, después a través de Cristo Señor Nuestro, que a eso vino a la tierra. Y la Iglesia, nuestra Madre, tiene esa revelación en depósito. Y es inalterable. [...] ¡No toca nada! ¡Ninguna cosa esencial! ¡En absoluto! ¡Los Sacramentos son los mismos...!, ¡los mandamientos son los mismos...!, ¡el Sacrifício del Altar es lo mismo...!». Anhembi, 15, 1 [tradução nossa].

[94] Anhembi, 6,6.

[95] Y ten cuidado por tu alma y por la mía, que podemos también, con mucha facilidad en estos tiempos revueltos, irnos detrás de los puercos y de la bellota, ¿eh?». Anhembi, 19,8 [tradução nossa].

[96] Anhembi, 6,6.

[97] Diário da primeira estadia, p. 90. «La están destruyendo [...]. Les he hablado del depósito de la fe. ¡Si no pueden tocarlo!... ¡Cuidado que a mí me hace sufrir esto!».

[98] «Yo os aconsejo que vayáis a confesar con frecuencia, que recibiréis el perdón de Dios». Anhembi, 5,2 [tradução nossa].

[99] «Hay que hacer las cosas cuando no se tienen ganas. Entonces, como están fundamentadas en el sacrificio, en la contradicción, son mucho más fecundas, valen mucho más delante de Dios, brillan como los luceros de la noche. [...] Iremos sin gana, pero sabiendo que nos escucha, a decirle que no tenemos gana, y ya estamos haciendo oración: y verás cómo Él te habla, verás cómo te mueve, verás cómo acabarás acomodándote a ese charlar con el Señor, y cómo el día que no te dirijas a Dios, con gana o sin gana, tendrás hambre de hacerlo, ¡necesidad de hacerlo!» Anhembi, 3,2 [tradução nossa].

[100] «Un cristiano, por el hecho de ser cristiano, debería ser profesionalmente, por lo menos, tan bueno como el mejor de los no cristianos. [...] No estemos contentos de nuestro tra- bajo, si desdeñamos los detalles, si los hacemos con falta de amor, con poco deseo de servicio. [...] Procura servir, que es lo más difícil. Hacer las cosas no por ti, sino por los demás, por Dios; por dar gusto al Señor y hacer el bien a los demás. [...] Y con esto tendrás una gran paz en el alma, y habrás hecho un gran bien al Brasil, y el Señor estará contento» Mauá, 5,5 [tradução nossa].

[101] «Viendo detrás de cada cosa la Voluntad de Dios,y dando a las cosas dela tierra el relieve que tienen, que es poco. [...] Si nos ponemos delante de Dios y pensamos en la eternidad, veremos que las dificultades, casi siempre, nos las inventamos nosotros. No existen. Son muy pequeñas... Y de una cosa pequeña hacemos una montaña». Mauá, 18,9 [tradução nossa].

[102] Anhembi, 1,4.

[103] «Esta mañana [...] tuve un recuerdo especial para el Brasil y para San Pablo, porque aquí veo gentes de todos los países y de todas las lenguas, que también entienden la voz de Cristo» Mauá, 1,3 [tradução nossa].

[104] «Yo os bendije para que os multiplicarais...¿Me permitís repetirlo?[...]«Como las arenas de vuestras playas, como los árboles de vuestros bosques –¡inmensos!–, como las flores de vuestros jardines, como los aromas que se perciben en el aire, en el ambiente de este Brasil ¡maravilloso!, como los luceros que brillan en la noche...». Mauá, 6,7-7,3 [tradução nossa].

[105] «Hemos de encendernos del deseo y de la realidad de llevar la luz de Cristo, el afán de Cristo, los dolores y la salvación de Cristo a tantas almas de colegas, de amigos, de parientes, de conocidos, de desconocidos... –sean cualesquiera sus opiniones personales en cosas de la tierra–, para darles a todos ¡un buen abrazo...! ¡fraterno! [...] Todos los cristianos tenemos obligación de propagar la doctrina de Jesucristo». Mauá, 13,4-14,2 [tradução nossa].

[106] Anhembi, 14,1.

[107] O original transcreve as palavras de São Josemaria em castelhano, que disse: «Yo les he echado en cara lo del colegio». Diário da primeira estadia, p. 90.

[108] «Los cooperadores. Saben ganar dinero en una empresa... Tienen que saber llevar esto... » [tradução nossa]. Diário da primeira estadia, p. 90. Os cooperadores são os amigos do Opus Dei que colaboram com suas esmolas e orações. O original transcreve as palavras de São Josemaria em castelhano

[109] Mauá, 2,6

[110] «En este país na-tu-ral-men-te, naturalmente, abrís los brazos a todo el mundo y lo recibís con cariño. Yo querría que eso se convirtiera en un movimiento sobrenatural, en un empeño grande de dar a conocer a Dios a todas las almas: de uniros, de hacer el bien no sólo en este gran país, sino desde este gran país a todo el mundo. [...] Que tenéis que hacer sobrenatural- mente lo que hacéis naturalmente; y después llevar este afán... de caridad, de fraternidad, de comprensión, de amor, de espíritu cristiano a todos los pueblos de la tierra. Yo entiendo que el pueblo brasileño es, y será, un gran pueblo misionero, un gran pueblo de Dios [...], y las grandezas de Dios las sabréis vosotros cantar en toda la tierra». Mauá, 2,7-3,2 [tradução nossa].

[111] «La mejor manera de manifestar la amistad noble y buena que tienes a tus amigos es mostrarte como eres, como un hombre cristiano, como un profesor que sabe cumplir su obligación en la cátedra, como un profesional que está bien enterado de la ciencia en la que trabaja, como un ciudadano que cumple todos sus deberes» Mauá, 8,7 [tradução nossa].

[112] «Hijo mío, no has dicho poco: tú has dicho todo un programa de santidad en el ejercicio de la profesión. [...] Tú eres un gran cristiano si sonríes siempre: ¡Dios te bendiga! Pero no sonrías sólo por hacerte amable, ni por vender más, sino por amor a Jesucristo... Porque sabes que tienes la obligación de contribuir a la felicidad de todos. Que no podemos ser egoístas. Si es malo cortar las alas del amor, por hedonismo, por amor al placer, es peor aún encerrarse cada uno en sí mismo... y ser egoísta. Tú me has demostrado que no eres egoísta, que te preocupas de la presentación de las cosas, de ser amable, de ser afectuoso, de comprender, de disculpar a los exigentes». Anhembi, 12,12 - 13, 1 [tradução nossa].

 Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF