RECORDANDO PADRE GIACOMO...
Arquivo 30Dias nº 05 - 2012
O cristianismo: uma história simples
Encontro com padre Giacomo Tantardini no Centro Cultural
Fabio Locatelli, de Bérgamo 15 de dezembro de 2000.
pelo Padre Giacomo Tantardini
2. O que resta, nessa condição? O Mistério inacessível, que
não tem rosto, e o homem, ao qual a luz (a luz significa a surpresa da criação,
que é boa), essa luz, já não é familiar. A criação já não é cara beleza,
mas algo estranho, inimizade, a ponto de Caim matar Abel. O que resta? Resta o
coração. O coração é ferido, mas continua a ser coração. Essa é a outra grande
coisa que o catolicismo nos diz. Ferido, obnubilado no
reconhecimento da verdade e debilitado na possibilidade de ser
coerente com a verdade, e mesmo assim o coração permanece. O coração do homem
permanece. O coração que nossa mãe, nosso pai nos deram, que Deus por meio
deles nos deu, continua a ser coração. Ou seja, o coração continua a ser
espera, espera de encontrar alguma coisa. O coração continua a ser pedido de
estar contente, o coração continua a ser pedido de felicidade. O coração ferido
continua a ser coração.
Leio a vocês dois trechos da poesia mais bela de
Leopardi, À sua dama, quando ele diz que o que buscava na beleza da
mulher era uma beleza maior, uma beleza que finalmente pudesse satisfazer a
espera do coração. Mas acrescenta que isso era um sonho de quando era
adolescente. Ao se tornar adulto, percebe que esse sonho já é impossível. “De
viva contemplar-te eu já não tenho / Esperança nenhuma”. Já não tenho
esperança nenhuma de ver-te viva, ó beleza. Já não tenho esperança nenhuma de
encontrar, aqui nesta vida, essa coisa imprevista, essa coisa imprevisível, que
o meu coração espera. “No despontar da minha nova vida / Incerta e escura”.
A genialidade humana é profecia de Cristo. Não no sentido de que antecipa
Cristo, não no sentido de que faz discursos cristãos. Mas no sentido de que O
espera, pedindo ou blasfemando, mas O espera. “No despontar da minha nova
vida / Incerta e escura.” “Incerta.” Se o Santo, se o Mistério é
inacessível, que pode fazer o homem, a não ser estar incerto? Que pode fazer o
homem? Não podemos condenar o homem, não podemos condená-lo por seu niilismo,
por sua “falta de fé”. O que o homem pode fazer, se o Mistério não tem rosto? O
que pode fazer? Até porque o niilismo (Santo Agostinho nisso antecipa e
responde a Nietzsche) nasce do fato de a pessoa se dar conta de que esse Deus
que diz afirmar é uma projeção de si, ou seja, perceber que Deus não existe. Se
Deus é uma projeção, uma imagem de si, a pessoa se
dá conta de que esse Deus não existe, não é nada. Nihil est, não
é nada. “... Incerta e escura, um dia imaginei-te / Por este árido
solo viandante”. Eu pensei encontrar-te neste solo árido, encontrar o que o
coração espera. “Mas na terra não há quem se te iguale”. Mas não
encontrei nada na terra, nada que merecesse até o fundo o meu coração. Muitas
coisas (o próprio Leopardi teve muitas mulheres), mas nada, nenhuma realmente
que merecesse até o fundo o meu coração. “Mas na terra não há quem se te
iguale, / E mesmo que no rosto, voz e gestos, / Alguma te evocasse, embora
assim,/ Bem menos bela se apresentaria”. Aqui está a intuição, que pode ser
apenas graça: mesmo se houvesse uma coisa que se assemelhasse a ti no rosto,
nas palavras e nos gestos, “embora assim, / Bem menos bela se apresentaria”
do que aquilo que o meu coração espera.
Essa poesia acaba com uma oração, a mais fantástica oração
de um ateu, pois Giacomo Leopardi era ateu e materialista. Nenhum devoto escreveu
uma oração assim ao Mistério que se revelou: “Se és uma das ideias imortais
/ A quem sensível forma recusou/ A eterna sapiência”. Se tu, ó beleza, se
tu, ó coisa que o coração espera, se tu, ó coisa que
o coração pede, se tu, felicidade, és uma das ideias imortais que se recusam a
revestir-se de forma sensível. “E por entre / Caducas vestimentas, desta
vida / Trevosa isentou de sofrimento”, e se recusa a experimentar aqui na
terra os afãs desta vida que corre para a morte, “daqui de onde / Tão
efêmeros são os infaustos dias,/ Recebe deste ignoto amante o hino”.
“Daqui de onde / Tão efêmeros são os infaustos dias.” Isso é realismo cristão. De um ateu, mas é realismo cristão. É realismo humano e portanto profecia de Quem criou o coração assim. Daqui de onde as coisas passam logo. Passam logo também as coisas boas, também o sorriso da criança, do filho, também o afeto pela mulher que amamos. “Daqui de onde / Tão efêmeros são os infaustos dias,/ Recebe deste ignoto amante o hino”. Permanece o coração, o coração que espera uma coisa assim. Mas o homem (e usamos agora uma expressão de Agostinho, que foi na Igreja o testemunho talvez humanamente mais fascinante desse coração), o homem está longe desse coração, fugitivus cordis sui. O homem está longe dessa pergunta e o homem se contenta. Contenta-se. E com que se contenta? Com a usura, a luxúria e o poder. E não há religião que dê jeito. Contenta-se com essas três coisas, o dinheiro, a luxúria e o poder. Quem crê em Deus e quem não crê. E essa é uma das coisas mais impressionantes do De civitate Dei de Agostinho. A crença em Deus por si só não muda a vida, por si só não muda a vida. Todos os livros do De civitate Dei de Agostinho são atuais. Nos livros oitavo, nono e décimo, Agostinho fala dos filósofos que conheceram a Deus, que reconheceram a existência de Deus. No entanto, no fim, “pensaram ter de oferecer honras divinas de ritos e sacrifícios ao diabo”. O satanismo pode ser a consequência também de alguém proclamar-se crente em Deus, pois a crença em Deus não muda realmente a vida. É uma outra coisa que muda a vida. Se a crença em Deus mudasse a vida não teria sido necessário que Maria desse à luz.
3. Por isso festejamos o Natal. Entendem? Porque, se a
crença em Deus mudasse a vida, não teria sido necessário o que aconteceu há
dois mil anos. Não só isso: não poderíamos ser gratos como somos gratos. Quando
há dois mil anos o anjo Gabriel foi enviado àquela cidade, no limite da
Palestina, à Galileia dos gentios, a uma jovem judia chamada
Maria... Tudo começou ali. O Santo inacessível, Aquele que criou o coração
bom... (mas o pecado original levou a essa condição pela qual o homem de fato
se contenta, não pode não se contentar com a luxúria, o dinheiro e o poder), o
Santo inacessível tornou-se carne no ventre de uma mulher. Um fato. Aquela
história simples começou ali. E começou justamente como história, como história
simples. Começou com “Eu te saúdo, ó cheia de graça, o Senhor está contigo”. E
essa pequena menina judia, que não compreendeu imediatamente, ficou perturbada
e se perguntou o que aquela saudação poderia significar. E o anjo lhe disse:
“Não temas, Maria, encontraste graça junto de Deus”. E então aquela pequena
menina exprime aquele “Sim”, aquele “Eis-me aqui”, graças ao qual o homem tem
esperança de ser salvo. Sem aquele “Eis-me aqui”, toda a crença em Deus não dá
esperança ao homem. Aquele “Eis-me aqui” começa uma história, uma história simples.
Uma história significa que Aquele que começou assim com Maria (“Encontraste
graça junto de Deus”) é Ele, é Ele que leva adiante esse início. De fato,
pensem em Nossa Senhora. Pensem: ficou nesse “Eis-me aqui” mesmo quando o anjo
a deixou. Pensem no conforto... (essa é uma das coisas que mais me
impressionam, que mais me comovem diante de Nossa Senhora), pensem no primeiro
conforto que teve, na primeira confirmação de que o que ouvira era real,
quando, como qualquer mulher, se deu conta de que estava grávida. Deve ter sido
uma coisa do outro mundo. Porque significava que aquela promessa era real,
aquela promessa a que logo havia dito “Sim”, a que logo havia dito “Eis-me
aqui”, aquela promessa era real, pois aquilo que um Outro havia iniciado estava
para ser levado a cumprir-se. E assim o outro conforto que me impressiona e me
comove é quando a São José, em sonho, o anjo diz: “José, filho de Davi, não
hesites em tomar contigo Maria, tua esposa, pois o que nasceu nela vem do
Espírito Santo”. E pensem, porque podemos imaginar... (é outra coisa, se
comparada a todas as religiões deste mundo, é outra coisa. É uma história de
homens, de jovens, eram dois jovens), pensem o que foi para Maria quando José a
tomou consigo. Foi uma outra confirmação, uma outra confirmação de que aquele
encontro, aquele “Eu te saúdo, ó cheia de graça” era real. E depois foram
juntos visitar Isabel, pois o anjo lhe havia dito que Isabel também esperava um
filho e também esse fato confirmou aquele “Eu te saúdo, ó cheia de graça; não
temas, Maria”.
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