Um coração com mais ritmo e força do que nunca
A santidade de Guadalupe, como recorda o Papa Francisco, faz
parte do “rosto mais belo da Igreja”, a sua imagem mais autêntica.
07/06/2019
Betânia está a três quilômetros de Jerusalém. Jesus e os
seus discípulos estão sentados à mesa na casa de uma família amiga. E ali, uma
mulher brinca com um pequeno frasco de alabastro, enquanto espera
impacientemente o momento oportuno. Esses recipientes eram pequenas vasilhas de
pedra, muitas vezes decoradas, com um gargalo muito estreito, para que apenas
algumas gotas do líquido passassem. Este formato tornava-os especialmente úteis
para fragrâncias ou pomadas. A mulher encheu o pequeno jarro com “perfume de
puro nardo de grande preço” (Mc 14,3).
Então pensa que chegou a hora. Levanta-se e, aproximando-se
de Jesus, quebra o frasco, provavelmente pela parte mais estreita. A bela
vasilha, que poderia ter sido usada como objeto decorativo, não era para ficar
guardada em algum lugar da sua casa. O perfume, que seria a inveja de suas
conhecidas, também não era para ela mesma. Poderia ter decidido derramar sobre
Cristo apenas uma parte, algumas gotas, sem ter que quebrar o recipiente: uma
medida suficiente para mostrar publicamente a sua adesão ao Mestre. Mas o seu
coração pede-lhe que derrame o perfume totalmente, tudo o que ela tinha em suas
mãos. Por trás desse gesto haveria muito trabalho, horas, pensamentos,
sacrifícios, afetos, sonhos: tudo era para o seu Mestre.
No ar da sala ficam unidos o cheiro do nardo e o amor dessa
mulher. É por isso que Jesus diz: “Em verdade vos digo: onde for proclamado
este Evangelho, no mundo inteiro, será contado também, em sua memória, o que
ela fez” (Mt 26,13).
Com todas as minhas forças
Estas mesmas palavras de Cristo podem ser aplicadas à
bem-aventurada Guadalupe Ortiz de Landázuri e a todos os santos da Igreja
Católica: o mundo inteiro conta o que fizeram.
Bento XVI, em uma ocasião, recordou as mulheres que Jesus
encontrou no caminho e que colocaram as suas vidas a serviço do Evangelho: a
profetisa Ana, a samaritana, a mulher siro-fenícia, a hemorroísa, a pecadora
perdoada, Maria Madalena, Joana, Susana, as que não abandonaram Jesus durante
sua Paixão e “muitas outras” (Lc 8,3), além de todas as cristãs
daqueles primeiros anos que são mencionadas no Novo Testamento[1].
Esta é uma constante na história: a Igreja sempre foi adornada por mulheres
santas, entre as quais há também quatro Doutoras da Igreja. Agora, Guadalupe
faz parte deste longo catálogo porque, movida pelo Espírito Santo, viveu de
maneira heroica e discreta as virtudes, seguindo o espírito do Opus Dei. A
santidade de todas estas mulheres, em palavras do Papa Francisco “é o mais belo
rosto da Igreja”[2],
a sua imagem mais autêntica, porque é o desenvolvimento da própria vida de
Cristo na intimidade de cada pessoa.
No 19 de março
de 1944, Guadalupe, como a mulher de Betânia, quis quebrar o frasco que
continha o seu bem mais valioso: a sua própria vida. desde aquele dia Guadalupe
quis ungir Jesus com o perfume da sua liberdade
Muitas dessas mulheres seriam capazes de lembrar o momento
em que Deus quis entrar em suas vidas de um modo novo, com uma intensidade
especial, talvez porque já estavam preparadas para embarcar em uma aventura
divina. Neste sentido, o Decreto sobre as virtudes de Guadalupe, depois de analisar
brevemente os seus anos de infância e juventude, conta o seu encontro com são Josemaria, em 25 de janeiro de 1944.
Era uma tarde de terça-feira de inverno. Seguindo a recomendação de um amigo,
com quem havia encontrado no bonde depois da missa, foi conhecer este
sacerdote. Guadalupe lembra o que sentiu, depois de uma breve troca de palavras
com o fundador do Opus Dei: “tive a sensação clara de que Deus me falava
através daquele sacerdote (...). Senti uma fé grande, forte reflexo da sua... e
pus-me interiormente nas suas mãos para toda a vida”[3].
Nos dias seguintes àquele encontro – diz o Decreto – Guadalupe “Entendeu com
clareza que Deus a chamava para servir a Igreja através do trabalho feito por
amor e do apostolado nas circunstâncias da vida cotidiana”[4].
A partir desse dia, começou a frequentar o primeiro centro
de mulheres do Opus Dei, localizado na rua Jorge Manrique, em Madri, onde
pouco a pouco ia incorporando à sua vida alguns hábitos de piedade simples.
Menos de dois meses depois, em 19 de março de 1944, depois de fazer um retiro,
Guadalupe pediu a admissão na Obra. “Deus, na sua grande bondade, quer que eu
trabalhe nela com todas as minhas forças”[5],
escreveu numa carta dirigida a são Josemaria. Naquele dia, Guadalupe, como a
mulher de Betânia, quis quebrar o frasco que continha o seu bem mais valioso: a
sua própria vida. Naquele dia – e em todos os que vieram depois – Guadalupe
quis ungir Jesus com o perfume da sua liberdade.
O que está dentro de mim
O Decreto sobre as Virtudes menciona as múltiplas facetas de
sua personalidade: “alegria contagiosa, a fortaleza para enfrentar as
adversidades, o otimismo cristão em circunstâncias difíceis e a sua entrega aos
outros”. Recorda detalhes da sua generosidade para com os que convivem com ela,
especialmente quando se tratava de entregar o seu tempo. Percebe-se a sua
bondade, sua obediência, sobriedade e tenacidade. O documento não deixa de
ressaltar a sua fé, manifestada na “aceitação alegre da vontade de Deus”, a sua
esperança e a sua caridade.
Esta lista pode nos fazer pensar que Guadalupe era uma
mulher fora do comum. Pode parecer que estamos muito longe de uma pessoa tão
virtuosa, pois em nossa própria vida muitas vezes não sabemos nem por onde
começar a lutar. Diante disso, podemos lembrar que a santidade é, acima de
tudo, uma obra que Deus realiza em nós. E, por outro lado, é bom saber que
Guadalupe também não a alcançou de um dia para outro. O Senhor conta com a
nossa história, com as nossas tarefas, com a nossa relação com as pessoas que
estão perto de nós, para moldar pouco a pouco essa singular santidade em cada
pessoa. São Josemaria, com a sua experiência sacerdotal, dizia que “as almas,
como o bom vinho, melhoram com o tempo”[6].
Neste sentido, as cartas de Guadalupe ao fundador do
Opus Dei ao longo dos anos, em que ela delicadamente abria a sua alma, são
testemunhas dos defeitos que ela detectava dia a dia em seu caráter[7].
Embora muitas vezes essas debilidades se repetissem diariamente, isso não era
motivo para resignar-se. O seu amor a Deus soube superá-las. A força que o
Senhor oferece por meio dos sacramentos e da vida de piedade resplandece por
trás daquela descrição das virtudes de Guadalupe. Faltando poucos dias para
embarcar no avião que a levaria ao México, a fim de colocar ali as primeiras
sementes do apostolado do Opus Dei, contava: “Na oração e na Missa, eu me
esforço muito (...). Cada vez percebo mais que faço tudo por causa do que está
dentro de mim, e isso me dá muita paz”[8].
Será que estou caminhando para o Céu?
As atividades às quais, segundo o documento da Congregação
para as Causas dos Santos, a bem-aventurada Guadalupe se dedicou foram muito
variadas. Todas estas tarefas constituem o ambiente no qual a santidade pode
ser forjada: uma residência universitária, um dispensário médico, trabalhos
manuais ou escrever, ir de uma cidade a outra, nos escritórios de onde se
orienta o apostolado do Opus Dei, salas de aula de química ou ciências
domésticas, ou um quarto de hospital[9].
No meio da agitação diária, é normal não sermos totalmente conscientes do
trabalho que o Espírito Santo realiza em nossa alma. De fato, normalmente a
alma se aquece pouco a pouco. Na vida espiritual acontece como as crianças que
aprendem a falar: lentamente, imersas na conversa diária, pela força do uso, a
sua linguagem vai se enriquecendo imperceptivelmente. Foi assim que Deus entrou
na vida de Guadalupe.
A santidade é
uma obra que o Espírito Santo faz em nós. E Ele conta com a nossa história, com
as nossas tarefas, com a nossa relação com as pessoas que estão perto de nós,
para moldar pouco a pouco essa singular santidade em cada pessoa
Em março de 1950, as três primeiras mulheres do
Opus Dei partiram para o México. Foram anos dedicados a estender o
apostolado a várias cidades, através de diversas iniciativas educativas e
sociais. Por exemplo, desde 1951, se encarregaram de reabilitar uma antiga casa
de campo – Montefalco – que usariam para promover socialmente a área, além de
organizar atividades para dar formação cristã [10].
Guadalupe esteve lá, entre muitos outros momentos, em abril de 1955 para fazer
um retiro espiritual. Dias depois, confiou a sua experiência a São Josemaria,
que estava em Roma. Dizia-lhe que não havia tido “nem altos nem baixos”, mas
que estava encontrando a Deus naturalmente nas coisas que fazia. Finalmente
também lhe transmitiu uma preocupação: “Essa segurança de Deus no meu caminho,
do meu lado, me dá entusiasmo para tudo, me faz ficarem fáceis as coisas que
antes não gostava de fazer, de tal maneira que, sem pensar, as faço. Padre,
tenho uma preocupação: será que estou de verdade caminhando para o Céu? Está
tudo muito confortável, pois não tenho problemas pessoais, quase nunca”[11].
Embora a impressão de Guadalupe pudesse ser diferente, não
faltavam problemas. Pouco tempo tinha passado desde que Montefalco era descrito
como um local com dois quartos com camas dobráveis, dois banheiros para quase
quarenta pessoas, além das instruções constantes para não gastar sequer uma
gota de água a mais, porque acabava rapidamente. Insiste-se em que não se lave
“nem um lenço” na casa[12].
Além disso, Guadalupe tinha a responsabilidade de preparar as mulheres que
poderiam se encarregar dos apostolados do Opus Dei em várias cidades do
México e em vários países onde pensavam começar a trabalhar. Também não tinha
dinheiro: tinha escrito para algumas da Obra dos Estados Unidos para pedir-lhe
algumas roupas já que todos os empréstimos que as mexicanas tinham feito
terminaram quando compraram as passagens para uma delas, que deveria viajar a
Roma. Nada disso era muito confortável nem era uma ausência real de problemas.
Mas, desde que tinha 27 anos, o espírito do Opus Dei ajudou-a a encontrar
em várias pequenas dificuldades uma oportunidade de se identificar com a Cruz
de Jesus. São Josemaria gostava de pensar que a santidade na vida cotidiana é
como um plano inclinado no qual, imperceptivelmente, se pode ascender à mais
elevada união com Deus.
Também neste sentido, o fundador do Opus Dei, muitos
anos depois, com a consciência de ter empregado a vida para transmitir o
espírito que Deus lhe havia confiado, dizia aos seus filhos durante uma reunião
familiar em 2 de janeiro de 1971: “Com a graça do Senhor, vos ensinei um
caminho, um modo de chegar ao Céu. Dei-vos um meio para chegar ao fim, de uma
maneira contemplativa. O Senhor concede-nos essa contemplação, que, normalmente
mal chegais a sentir”[13].
Para onde fores, eu irei
O Padre, em sua carta de 9 de janeiro de 2018, lembrou-nos
da história de Rute, uma das grandes mulheres que atuaram na história da
Salvação. Em particular, comentava como em sua vida “a liberdade e a entrega
criam raízes em um profundo sentimento de pertença à família”[14].
Rute era moabita, mas se casou com um jovem judeu que tinha chegado a terras
estrangeiras em busca de um futuro melhor. Em sua nova família, Rute encontrou
o significado da sua existência: ela encontrou o único Deus, suas palavras, seu
culto, seu povo. Logo depois, no entanto, os três homens da família morreram.
Então Noemi, a sogra de Rute, entre lágrimas de tristeza, a encoraja a voltar
para a sua terra, para os seus deuses e ali reconstruir a sua vida. Noemi, uma
mulher mais velha, sabia que não poderia oferecer um futuro seguro ou conforto
para as suas noras. Mas Rute respondeu: “Não insistas comigo para eu te
abandonar e deixar a tua companhia. Para onde fores, eu irei, e onde quer que
passes a noite, pernoitarei contigo. O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o
meu Deus” (Rt 1,16).
O coração de
Guadalupe, embora sofresse de graves problemas médicos, não conhecia
fronteiras: foi um coração apaixonado, por isso a nova bem-aventurada foi tão
feliz
Muitas gerações falam da fidelidade de Rute, assim como da
mulher que derramou aquele perfume em Jesus. Muitos artistas viram em sua
história de fidelidade um motivo de inspiração. As palavras citadas podem muito
bem ser aplicadas ao momento em que Guadalupe descobriu o seu chamado à
santidade no Opus Dei: “Seu povo é o meu povo”. Em suas cartas, manifestou
claramente esta convicção que logo se gravou em sua alma: a de estar disposta a
fazer qualquer coisa por sua família e sempre buscar a felicidade de quem a
rodeava. Escrevia em dezembro de 1950: “Hoje escrevi para cumprimentar pelo
Natal a todas as nossas da Espanha, Roma, Chicago e Irlanda”[15].
Em outra ocasião, escrevia à diretora de um centro do Opus Dei:
“Procuremos amar-nos de verdade, mesmo que às vezes custe um pouquinho, de
acordo? Ocupe-se muito das nossas (de todas)”[16].
O seu coração, embora sofresse de graves problemas médicos, não conhecia
fronteiras. O mesmo acontecia com as pessoas que se aproximavam dos meios de
formação do Opus Dei. Essa aparente falta de dificuldades em sua vida
também foi o resultado de pensar continuamente nos outros.
Em junho de 1975, Guadalupe é internada na Clínica da
Universidade de Navarra para uma longa sucessão de exames médicos. Isso não a
faz perder seu bom humor e, em suas cartas, compara suas rotinas tranquilas no
hospital às de um balneário[17].
Finalmente foi operada em 1º de julho, poucos dias após a morte de São
Josemaria. Em plena fase de recuperação, escreve a Roma, para agradecer a todas
as orações por sua saúde: “Aqui estou. Todos nós temos uma pequena parte nesse
assunto. O Padre, em primeiro lugar, e através de sua intercessão, a oração
constante de vocês foi ouvida, e aqui eu apareço com um coração que faz 'pom,
pom' ritmicamente e com força”[18].
Estas foram provavelmente as últimas palavras escritas por Guadalupe. Quando o
bem-aventurado Álvaro del Portillo segurou a carta, escreveu ao lado:
“Guadalupe Ortiz de Landázuri está com o Padre no Céu”. E agora o seu coração
tem mais ritmo e força do que nunca.
Andrés Cárdenas
Tradução: Mônica Diez
[1] Cfr.
Bento XVI, Audiência 14-II-2007.
[2] Francisco,
Ex. ap. Gaudete et exsultate (19-III-2018), n. 9.
[4] Decreto
sobre as virtudes de Guadalupe Ortiz de Landázuri, 4-V-2017.
[5] Carta
a são Josemaria, 19/03/1944.
[6] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 78.
[7] Cfr. CartasCartas para um santo, www.opusdei.org.br,
2019.
[8] Carta
a são Josemaria, 28/02/1950.
[9] Cfr.
Decreto sobre as virtudes de Guadalupe Ortiz de Landázuri, 4-V-2017.
[10] “Montefalco,
1950: una iniciativa pionera para la promoción de la mujer en el ámbito rural
mexicano”, em Studia et documenta, n.2, EDUSC, Roma, 2008, p. 214.
[11] Carta
a são Josemaria, 24-IV-1955.
[12] Cfr.
Mercedes Montero, En Vanguardia, Rialp, Madri, 2019, pp. 183-184.
[13] São
Josemaria, En diálogo con el Señor, edição crítico-histórica,
Rialp, Madrid 2017, p. 286.
[14] Do
Padre, Carta, 9-I-2018, n. 9.
[15] Carta a são Josemaria, 18-XII-1950.
[16] Carta
a Cristina Ponce, II-1954.
[17] Cfr.
Carta a Mercedes Peláez, 22-VI-1975.
[18] Carta
a Carmen Ramos, 13-VII-1975.
Nenhum comentário:
Postar um comentário