03 de novembro
São Martinho de Porres
Religioso (1579-1639)
São Martinho de Porres: “Martinho da Caridade”
Misto de fidalgo e homem do povo, ele nos mostra uma
singular via para alcançar a santidade, amando a Deus com todo o coração, com
toda a alma e com toda a mente, e ao próximo como a nós mesmos.
As vastidões do Novo Mundo deslumbravam o homem
europeu no longínquo despontar do século XVI. Terras férteis, abundantes
riquezas naturais e a esperança de um futuro promissor tornaram-se em
pouco tempo uma atração irresistível para os fidalgos ibéricos, que viam
nas Américas uma oportunidade de expandir a Igreja de Deus, os domínios do Rei
e abrilhantar a honra da sua estirpe.
O entusiasmo que os animava não carecia de fundamento, pois
Deus parecia sorrir aos bravos expedicionários, soprando vento
favorável nas velas de suas frágeis naus e coroando com o êxito temerárias
empresas, movidas muitas vezes pelo desejo de conquistar almas
para Cristo, mas muitas outras também por motivos bem menos elevados.
O que reservava a Providência para essas terras infindas,
habitadas por povos das mais diversas índoles? O que desejava Ela para aqueles
nativos, ora pacíficos, ora belicosos, ora de temperamento selvagem,
ora dotados de cultura e técnicas muito desenvolvidas? Algo mais
elevado que qualquer consideração política ou sociológica: dar-lhes o
tesouro da Fé, a Celebração Eucarística, a graça santificante infundida
através dos Sacramentos.
Fruto da heroica ação dos missionários, logo começaram a
surgir no Novo Continente Santos dos mais ilustres, que perfumavam
com o bom odor de Jesus Cristo os novos domínios e faziam expandir
neles, pela oração ou pelo apostolado, as sementes do Reino. Pensemos, por
exemplo, na Lima quinhentista. Nela conviviam Santa Rosa, terciária dominicana,
hoje padroeira da América Latina, São João Macías, evangelizador
infatigável, ou esse modelo de Pastor que foi São Turíbio de Mongrovejo.
Contemporâneo de todos eles, superando-os no dom dos
milagres e em manifestações sobrenaturais, brilhou no convento dominicano
do Santo Rosário um humilde irmão leigo chamado Martinho de
Porres. “Misto de fidalgo e homem do povo, suas virtudes esplendentes
contribuíram para conferir à civilização peruana do seu tempo uma beleza e uma
ordenação católicas até hoje insuperáveis”.
Desejo de servir, à imitação do próprio Cristo
Nasceu ele a 9 de dezembro de 1579 na florescente Lima do
tempo colonial, capital do vice-reinado do Peru, filho natural de João de
Porres, cavaleiro espanhol, e Ana Velázquez, panamenha livre, de origem
africana.
Em sua infância, experimentou ora as larguezas e as
exigências da vida nobre ao lado do pai, em Guayaquil – atual Equador -, ora a
simplicidade e o trabalho junto à mãe, em Lima, sem apegar-se a um modo de
vida nem reclamar do outro. Mas tanto em uma quanto em outra circunstância
ele se sentia atraído pela vida de piedade, servindo como coroinha nas Missas
paroquiais ou passando noites em claro, de joelhos, rezando diante de Jesus
Crucificado.
Contando apenas 14 anos dirigiu-se ao Convento do Rosário e
fez um pedido ao provincial dos Pregadores, Frei João de Lorenzana. Que deseja
ele ao bater à porta daquela casa de Deus? Tornar-se um servidor dos frades, na
qualidade de “doado”, como então eram designados aqueles que se dedicavam às
tarefas domésticas e se hospedavam nas dependências dos dominicanos. O
superior, discernindo nele um chamado autêntico, recebeu-o de bom grado.
Doravante suas funções seriam varrer salões e claustros, a
enfermaria, o coro e a igreja da grande propriedade, que abrigava por
volta de 200 religiosos, entre noviços, irmãos leigos e doutos sacerdotes.
De maneira alguma Frei Martinho se envergonhava dessa condição. Sua visão
sobrenatural das coisas fazia-o compreender bem a glória que há em servir,
à imitação do próprio Cristo Jesus, que Se encarnou para nos dar exemplo
de completa submissão.
Após dois anos no exercício dessas árduas tarefas, vinculado
à comunidade apenas como terciário, um irmão o chama à portaria. Ali estão à
sua espera o superior e seu pai que, regressando de um longo período a serviço
do vice-rei, no Panamá, quer reencontrar o filho.
Indignado por vê-lo ocupando posição tão humilde, o fidalgo
exige do provincial que promova seu filho pelo menos a irmão leigo. O
prior acede, mas os olhos de Frei Martinho, em lugar de se iluminarem
de contentamento, ficam umedecidos por lágrimas. Era a sua humildade que
falava mais alto, levando-o a implorar ao superior que não o privasse
da alegria de poder dedicar-se à comunidade como vinha fazendo até então.
Vocação de remediar os males alheios
No dia 2 de junho de 1603 ele faz a profissão solene dos
votos religiosos, recebendo, além das funções de sineiro, barbeiro e
encarregado da rouparia, o cuidado da enfermaria. Ali exerce também, à
falta de médico, o ofício de cirurgião, cujos rudimentos aprendera antes
de ingressar no convento.
Seus diagnósticos certeiros sobre o verdadeiro estado dos
doentes logo começam a se comprovar pelos fatos, muitas vezes contra
as aparências. Por exemplo, a um enfermo que todos consideram já às portas
da morte anuncia que dessa vez não morrerá; e de fato, em poucos dias
encontrava-se curado. Em outra ocasião, vendo Frei Lourenço de Pareja
caminhando pelo claustro, comunica-lhe que em breve deixará seu corpo mortal e
chama um sacerdote para administrar-lhe os Sacramentos. Instantes depois de
recebê-los, o frade expira em seu leito.
Incontáveis curas milagrosas por ele realizadas fazem sua
fama ultrapassar os muros do Convento do Rosário. Pequenos e
grandes, espanhóis e índios, ricos e pobres vêm pedir auxílio ao santo
enfermeiro.
Começa assim a manifestar-se a vocação de Martinho, que
“parece ter sido a de remediar os males alheios”,2 não poupando
esforços para dar-lhes bom exemplo, conforto físico e espiritual no
exercício de suas funções.
“Desculpava as faltas dos outros; perdoava duras injúrias,
convencido de que era digno de penas maiores por seus pecados; procurava
com todas as suas forças trazer para o bom caminho os pecadores;
assistia comprazido os enfermos; proporcionava alimento, vestuário e
remédios aos fracos; favorecia com todas as suas forças os camponeses, os
negros, os mestiços que naquele tempo desempenhavam os mais humildes ofícios,
de tal maneira que foi chamado pela voz popular Martinho da Caridade”.
Frequentes manifestações sobrenaturais
De onde vinham estas qualidades incomuns? Sem dúvida, de uma
intensa espiritualidade, pois “uma vida como a de Martinho, consagrada por
inteiro ao serviço do próximo, com perfeito esquecimento de si, não se explica
sem uma intensa vida interior, sem o estímulo da caridade que, […] mesmo sob o
peso da fadiga, não chega a sentir cansaço”.
Uma noite, quando a hora já ia avançada, o cirurgião Marcelo
Rivera, hóspede do convento, o procura sem conseguir encontrar. Pergunta
a este, pergunta àquele, mas ninguém o vira. Acha-o, por fim, na sala
capitular, “suspenso no ar, com os braços em cruz, com suas mãos coladas às de
um Santo Cristo crucificado, que está num altar. E mantinha todo o corpo junto
ao do Santo Crucifixo, como que O abraçando. Estava elevado a cerca de três
metros do solo”.
Incontáveis testemunhas presenciaram fatos semelhantes.
Assim, por exemplo, numa noite em que poucos conseguiam conciliar o
sono no prédio do noviciado, devido a uma epidemia que prostrava com
altas febres a maioria dos frades, ouve-se de uma das celas:
– Ó, Frei Martinho! Gostaria de ter uma túnica para
trocar-me!
É Frei Vicente que, revolvendo-se no leito, entre os suores
da febre, clama pelo enfermeiro, sem esperança de ser atendido, pois as
portas daquele prédio já estavam trancadas e Frei Martinho vivia fora do
mesmo. Mas, mal termina de falar, vê o irmão enfermeiro junto a ele, trazendo
nas mãos uma camisa limpa e bem passada. Assustado, pergunta-lhe como fizera
para entrar.
– Não cabe a vós saber isso – responde com bondade Frei
Martinho, fazendo com o dedo sinal de silêncio.
Não longe dali o mestre de noviços, Frei André de Lisón,
ouve a voz de Frei Martinho e coloca-se no corredor para verificar por
onde entrara. Passa-se o tempo, e nada! Resolve então abrir a porta da
cela do doente: estava sozinho e dormia um sono profundo… A admiração
estende-se por todo o convento.
Frei Francisco Velasco, Frei João de Requena e Frei João de
Guia também recebem visitas semelhantes. Em outra ocasião, um frade, caminhando
pelo claustro, vê passar pelos ares um facho luminoso, fixa as vistas e
discerne Frei Martinho voando envolto em luz.
Certa madrugada, ao toque do sino, toda a comunidade se
reúne na igreja, como de costume, para cantar Matinas. De súbito, um
clarão vindo do fundo ilumina todo o recinto sagrado. Voltam-se para
trás os religiosos e descobrem o foco de tão intensa luminosidade: o
rosto de Frei Martinho que, tendo descido para ajudar o sacristão, ali
estava ouvindo o cântico sacro.
“Deus seja louvado por utilizar tão vil instrumento”
Fatos como estes ocorrem em quantidade e tornam-se
públicos e notórios. Aos poucos a fama do Santo se espalha por toda Lima,
chegando inclusive até o vice-rei e o Arcebispo. Nada disso, contudo,
perturba sua humildade. De maneira alguma consente em perder o convívio
com o sobrenatural, voltando-se para si mesmo a fim de desfrutar uma
glória humana que passa “como um sonho da manhã” (Sl 89, 5).
Em certa ocasião ele vai visitar a esposa de seu antigo
mestre de barbearia, a qual padecia de grave enfermidade. Convidando-o a
sentar-se aos pés de seu leito, ela estica discretamente o braço até
tocar com a mão na ponta do hábito do Santo. No mesmo instante, sente-se
curada e exclama, pervadida de admiração:
– Tão grande servo de Deus sois, Frei Martinho, que até
vossas vestes têm poder de curar! Com a esperteza própria à
humildade, responde o Santo:
– Aqui está a mão de Deus, senhora. Ele a curou, através do
hábito de nosso pai, São Domingos. Deus seja louvado por utilizar tão vil
instrumento para operar tamanha maravilha, e porque o hábito de nosso pai não
perde seu valor e devoção, mesmo vestido por tão grande pecador como eu.
“Não sou digno de estar na casa de Deus”
Outro episódio, desta vez ocorrido dentro dos muros do
convento, atesta a mansidão de Frei Martinho em suportar as fraquezas
que por vezes seus irmãos de hábito manifestavam. Ele as sofria com
excepcional cordura, tomando-as sempre como merecidas e úteis para a expiação
de seus pecados.
Túmulo de São Martinho de Porres, na capela erigida no local da antiga enfermaria – Convento de São Domingos, Lima
Aconteceu que um antigo religioso acamado mandou chamá-lo na
enfermaria, mas como Frei Martinho estivesse ocupado num assunto urgente,
demorou um pouco a chegar. Enquanto escoavam-se os minutos o doente tomou-se de
impaciência e começou a deblaterar contra o Santo, dizendo toda espécie de
injúrias, externando queixas descabidas, fruto do egoísmo.
Logo acudiu ele e pediu desculpas, mas teve de ouvir uma
nova catilinária, desta vez pronunciada em alta voz, de modo que os
outros frades também escutaram. Preocupados, alguns irmãos se aproximaram
e um deles, ao ver Frei Martinho ajoelhado junto ao doente, perguntou-lhe
o que estava acontecendo.
– Padre – respondeu o humilde Irmão -, estou
recebendo cinzas sem ser a quarta-feira delas. Este padre me ofereceu o
pó de minha baixeza e me pôs a cinza de minhas culpas diante de mim,
e eu, agradecido por tão importante lembrança, não lhe beijo as
mãos porque não sou digno de colocar nelas os meus lábios, mas fico
aos seus pés de sacerdote. E, creia-me, este dia foi proveitoso para
mim porque dei-me conta de que não sou digno de estar na casa de Deus e
entre os seus servos.
Numa fase de privação pela qual passava a comunidade, o
padre prior encontrava-se muito aflito por não dispor da quantia
necessária para sanar as dívidas da casa, que eram numerosas. Frei
Martinho então perguntou-lhe se não queria vendê-lo como escravo, pois
devia valer um preço considerável e se sentiria muito honrado por ser útil
ao convento.
O sacerdote, comovido com esta atitude heroica de amor à
Ordem, respondeu-lhe:
– Que Deus te pague, Frei Martinho, mas o Senhor, que te
trouxe até aqui, Se encarregará de resolver o problema.
O caminho que Cristo nos ensina
A vida do despretensioso irmão transcorria serena,
consumindo-se em longas vigílias de oração junto ao crucifixo e serviços
na aparência muito comuns, mas sempre feitos com a intenção de glorificar
a Deus, sendo amiúde coroados por milagres. Faltando um mês
para completar 60 anos, uma febre violenta e frequentes desmaios
o obrigaram a guardar repouso. Tudo indicava aproximar-se o fim
de seu estado de prova.
A notícia se espalhou pela cidade e sua cela logo se tornou
objeto de contínua peregrinação. Nessa mesma noite ele entrou em
agonia. Os circunstantes o viam debater-se com gestos violentos e,
estreitando em seu peito o crucifixo, increpar o maligno:
– Vai embora, maldito! Não me hão de vencer tuas ameaças!
Três dias depois, a 3 de novembro de 1639, diante dos seus
irmãos de vocação que junto dele recitavam o Credo, nasceu São Martinho de
Porres para a verdadeira vida, deixando atrás de si um rastro luminoso que
ainda hoje suscita a veneração de incontáveis fiéis.
“Este santo varão que, com seu exemplo de virtude, atraiu
tantos à Religião, agora também, três séculos após sua morte, faz
elevarem-se aos Céus nossos pensamentos”, lembrou o Beato João XXIII ao
canonizá-lo.9 Pois, com o exemplo de sua vida ele nos demonstra ser
possível alcançar a santidade pelo caminho que Cristo nos ensina: amando a
Deus, em primeiro lugar, com todo o coração, com toda a alma e com toda a
mente; e, em segundo, ao próximo como a nós mesmos. (Revista
Arautos do Evangelho, Novembro/2013, n. 143, p. 33 à 37)





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