RECORDANDO PADRE GIACOMO...
Arquivo 30Dias nº 05 - 2012
O cristianismo: uma história simples
Encontro com padre Giacomo Tantardini no Centro Cultural
Fabio Locatelli, de Bérgamo 15 de dezembro de 2000.
pelo Padre Giacomo Tantardini
Gostaria de começar citando uma frase de uma poesia de
Charles Péguy que resume um pouco o que acabamos de ouvir. Diz Péguy numa de
suas poesias a Nossa Senhora de Chartres: “Disseram-nos tanta coisa, ó
Rainha dos Apóstolos / Perdemos o gosto pelos discursos / Já não temos altares,
a não ser os Vossos / Nada mais sabemos senão uma oração simples”.
Creio que quando Péguy, no início do século, ia em
peregrinação a Chartres para pedir a graça da cura para seus filhos... os
filhos não eram batizados: Péguy convivia, digamos assim, com uma mulher judia
que não tinha aceitado batizar seus filhos. Péguy nunca pôde casar-se de modo
cristão e não podia receber os sacramentos da Igreja, mas creio que Péguy tenha
sido o maior testemunho poético destes últimos séculos, o maior depois de
Dante. A graça do Senhor é dada segundo a medida do dom de Cristo, como Ele quer.
“Disseram-nos tanta coisa, ó Rainha dos Apóstolos / Perdemos o gosto pelos discursos / Já não temos altares, a não ser os Vossos / Nada mais sabemos senão uma oração simples”. Contudo, esta noite sou obrigado falar. Então gostaria de dizer simplesmente três coisas que me parecem as que a Tradição da Igreja, a simplicidade da Tradição (oração simples leva a pensar na simplicidade da Tradição), a simplicidade da Tradição cristã, por ocasião do Natal, volta a dizer, repete.
1. Há uma expressão dogmática que o mundo moderno, sobretudo
nas últimas décadas, o mundo, este mundo que está dentro da Igreja, sobretudo
este mundo que está dentro da Igreja, tentou como que censurar. No entanto, não
há como entender nada da vida dos homens e não há como entender o cristianismo
se não partirmos daqui: o pecado original. O pecado original. Pois todos os
homens, exceto Maria, nascem com o pecado original. Não há como compreender
nada da vida, não há como compreender nada – diz, usando uma expressão
belíssima, o último Concílio Ecumênico da Igreja – da sociedade humana, se não
partirmos daqui: que os homens nascem maus. Como diz Jesus: “Vós, que sois
maus”. “Por que me chamas bom? Só Deus é bom”. “Si homo non
periisset, Filius hominis non venisset”, é como Santo Agostinho resume a
consciência da Igreja: se o homem não tivesse pecado, o Filho do homem
não teria vindo.
Gostaria de me valer do início do hino O Natal,
de Alexandre Manzoni...
Alexandre Manzoni, de muitos pontos de vista, não é, por
assim dizer, um autor atual, pois descreve em seu fantástico romance, Os
noivos, uma condição cristã como já dada e, portanto, não fala de nós, uma
vez que hoje essa condição já não existe. Talvez a página mais atual dos Noivos seja
aquela em que é descrita a conversão do Inominado, quando este, depois daquela
noite em que vê o povo contente que vai receber o cardeal Federico se pergunta:
“Mas o que tem toda essa gente para estar contente?” Essa, portanto, é a
página mais atual. “O que tem toda essa gente para estar contente?” E
nasce em seu coração a curiosidade de ver por que aquela gente
está contente. É a página que descreve de que modo, hoje, uma pessoa pode se
tornar cristã... Os antepassados de Alexandre Manzoni são da minha cidade,
Barzio, um vilarejo perto de Lecco, e o avô de Alexandre Manzoni se chama
Alexandre porque o padroeiro de Barzio, como de Bérgamo, é Santo Alexandre.
Portanto, creio que também o autor dos Noivos se chame
Alexandre por isso... Outros motivos o fazem próximo de mim, embora, repito,
Manzoni, de muitos pontos de vista, não seja atual, não certamente como Péguy.
O hino O Natal começa com a imagem de uma
rocha que caiu do alto da montanha e está no fundo do vale: “Lá onde caiu,
imóvel / Jaz em sua lenta grandiosidade; / Nem que passem séculos / É possível
que reveja o sol / De seu cume antigo, / Se uma virtude amiga / Para o alto não
a levar”. A pedra que cai do alto da montanha no vale não pode rever o sol
do cume, se uma força amiga não a tomar e a levar para cima. “Assim jazia o
mísero / Filho da queda primeira”. Assim jazia o homem, filho do primeiro
pecado. Assim. “Onde o soberbo cume / mais não se podia elevar”. Creio
que essa seja a definição mais realista do pecado original.
O que é o pecado original? Dom Giussani, no último livro da
coleção que reúne os diálogos numa casa dos Memores Domine, diz: “O que é o
pecado original? O que é o orgulho do pecado original? É a afirmação de
si antes da realidade”. O homem não vê nada além de si mesmo. Caído daquela
altura, não vê nada além de si mesmo. A afirmação de si mesmo antes da
realidade. Leio mais adiante uma estrofe inteira desse hino, porque é
extremamente realista: “Quem entre os nascidos para o ódio”. Nascidos
para o ódio. Assim. É essa a condição humana. Há algumas semanas, fiquei
impressionado quando um escritor não cristão, não católico, Bobbio, ao receber
um prêmio na Universidade de Stuttgart, citou Hegel (Hegel, mestre de todos,
infelizmente, nestas décadas), citou Hegel, repetindo uma de suas poucas
expressões realistas, quando diz que a história humana nada mais é que
um grande matadouro. É verdade. A história humana nada mais é que um grande
matadouro. A história humana, diz Santo Agostinho, tomando Roma como exemplo, a
história de Roma, que nasce de um fratricídio, caminha de homicídio em
homicídio. “Quem entre os nascidos para o ódio”. Nascidos para o
ódio. Não pelo gesto criador. A criação é boa. Mas, de fato, pelo pecado
original, nascemos para o ódio. E mesmo as coisas boas, mesmo as coisas
bonitas, imediatamente caem na estranheza. E todos podemos fazer experiência
dessa condição do pecado original; o homem faz experiência dela. A grande
poesia nada mais faz senão falar disso. Para reconhecer os efeitos do pecado
original, não é preciso ter fé, basta a inteligência humana. Não reconhecer os
efeitos do pecado original é questão de falta de inteligência, é questão de
ilusão, é questão de idealismo.
“Quem entre os nascidos para o ódio, / Que pessoa havia /
Que ao Santo inacessível...”. Como Manzoni é cristão nesse momento!
“Inacessível”: ao Santo a quem não podemos alcançar, ao Santo desconhecido, ao
Santo cujo rosto não conhecemos. Se uma pessoa diz Deus existe mas
não O vê (diz São Bernardo numa carta que lemos no Breviário no tempo de
Natal), como pode, depois de algum tempo, reconhecer que Ele existe, se não
pode chegar até Ele, se é lançado no fundo do precipício, e não pode chegar à
luz do início, à luz da aurora do primeiro início da criação? Como pode dizer
que existe? “Que pessoa havia / Que ao Santo inacessível/ Pudesse dizer:
perdoa?” Perdão! “A quem agradecer, contra quem blasfemar?”, perguntava
Cesare Pavese numa das últimas frases de seu diário. A quem agradecer, contra
quem blasfemar, se o Mistério existe mas é inacessível, existe mas não tem
rosto, existe mas é incompreensível, existe mas não pode ser conhecido? “Fazer
novo pacto eterno? / Ao vencedor inferno / Sua presa arrancar?”. Quem poderia
arrancar ao diabo a sua presa?
Esta é a primeira sugestão: nascemos com o pecado original.
E o dogma da Igreja diz que o pecado original fere o homem in
naturalibus, nas suas dimensões naturais. Não só torna impossível a
coerência. Por exemplo, a pessoa sabe que o aborto é pecado, mas depois é
incoerente. Não é só isso. O pecado original impede com o tempo também
que nos demos conta de que o aborto é pecado, porque o pecado original fere os
homens na inteligência natural: pelo pecado original é ofuscada a
inteligência enquanto tal, não apenas é enfraquecida a
vontade. Por isso, o homem é obnubilado ao reconhecer também o que é natural, o
que é criatural, o que é contra o coração, contra o gesto criatural. Não é que
não o possa reconhecer, mas é obnubilado por dentro. Não entendemos a
realidade, não entendemos o mundo, sem partir daqui. Não entendemos o mundo em
que vivemos, não entendemos as circunstâncias em que estamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário