A solidão
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RS)
Geralmente, enfatizamos o aspecto negativo da solidão, como
canta Alceu Valença: “a solidão é fera, a solidão devora”, personificando-a
como uma força avassaladora e feroz que permeia e está presente em tudo, no
cosmos, no silêncio e na escuridão da noite, e até nas ruas, onde a vida
aparentemente vibrante pode ser substituída pela sensação de vazio. Na solidão,
o tempo se alonga e se arrasta, causando um “descompasso no coração”,
refletindo a dor emocional e o vazio que acompanham quem a experimenta.
A solidão pode se manifestar em qualquer lugar. Ela se
revela no anonimato das grandes cidades e no distanciamento emocional dos
conglomerados urbanos, onde, apesar da proximidade física entre as pessoas,
elas amargam o isolamento e a indiferença. Nem mesmo as interações superficiais
das redes sociais e as conexões digitais conseguem preencher o vazio
existencial.
Apesar dessa visão sombria, a solidão possui um lado
positivo, que pode ser cultivado na introspecção e para o autoconhecimento. Os
místicos veem na solidão um caminho para a reconexão com o divino e com o
próprio eu. No âmbito filosófico, Nietzsche, em particular, reconhece os
desafios da solidão, mas a exalta como uma virtude moral e um antídoto contra o
conformismo. Para ele, a solidão torna-se fecunda, funcionando como uma
ferramenta de transformação pessoal, autossuficiência e criação. Portanto, a solidão
não é um estado de isolamento a ser temido, mas uma condição essencial para a
liberdade interior e o florescimento espiritual.
Segundo Nietzsche, a solidão é fundamental para a
autenticidade e a criação de novos valores. Ele critica o modo como a vida em
sociedade distrai os indivíduos com suas exigências diárias, impedindo o
silêncio necessário para o amadurecimento. Em Aurora (aforisma
177), ele critica os que habitam as grandes cidades e se perdem nos ruídos e
nas distrações da vida pública, impedindo a verdadeira produtividade. Somente
na solidão, longe das influências externas, os indivíduos podem cultivar suas
próprias ideias e alcançar uma profundidade autêntica.
A solidão, segundo Nietzsche, é uma forma de resistência à
massificação. “O homem receoso não sabe o que é estar só; há sempre um inimigo
atrás de sua cadeira” (Aurora, aforisma 249). A metáfora do “inimigo”
sugere que aqueles que projetam seus medos internos no ambiente ao redor
impossibilitam uma verdadeira experiência de solitude. Esse medo impede o
indivíduo de enfrentar a si mesmo e de experimentar uma introspecção genuína. A
solidão, em vez de ser uma experiência negativa, é uma oportunidade para o
crescimento pessoal e a liberdade interior.
Para os que temem a solidão, ela parece insuportável, pois a
ausência de distrações os força a confrontar seus medos. No entanto, é
justamente na solidão que o indivíduo se distancia das pressões sociais e pode
reconquistar seu eu e produzir novos valores. Segundo Nietzsche, embora traga
tédio e desalento, a solidão oferece a oportunidade de acessar a profundidade
interior, proporcionando momentos de recolhimento comparáveis a uma “poção
tonificante” retirada do próprio íntimo. “Quem se entrincheira totalmente
contra o tédio, entrincheira-se também contra si mesmo: nunca lhe será dado
beber a mais tonificante poção do seu próprio manancial íntimo” (Humano,
Demasiado Humano, aforisma 200).
A solidão também é uma resposta à alienação que a vida em
sociedade pode causar. O homem, quando imerso na multidão, acaba vivendo como
os outros, perdendo sua autenticidade. Ao se isolar no “deserto”, ele recupera
sua bondade e reencontra sua verdadeira essência, longe das influências
superficiais que permeiam a sociedade. “E é por isso que vou para a solidão —
para não beber das cisternas que estão dispostas para todos. […]. Tenho então
necessidade do deserto para voltar a ser bom” (Aurora, aforisma
491).
Enfim, a solidão é um meio necessário para a reconexão com o
próprio eu, com Deus, e é uma fonte de força criativa. Apenas ao se afastar do
barulho da vida cotidiana, o indivíduo pode criar algo novo e significativo,
transcendendo as limitações impostas pela massificação social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário