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terça-feira, 21 de março de 2023

UNICEF e Água: 190 milhões de crianças em risco

Vista aérea da Escola Primária Mbunya em Lengabo, província 
de Ituri, República Democrática do Congo 

"A perda da vida de uma criança é devastadora para as famílias. Mas a dor aumenta quando a morte é evitável e causada pela falta de necessidades básicas que muitos consideram garantidas, como água potável, banheiros e sabão", disse Wijesekera.

De acordo com uma nova análise do UNICEF, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, de 20 de março de 2023, 190 milhões de crianças em 10 países africanos correm maior risco de uma convergência de três ameaças relacionadas à água: água e saneamento inadequados, doenças relacionadas e riscos climáticos.

Criança toma banho no sudoeste de Camarões (Vatican News)

Segundo a análise do UNICEF, a tripla ameaça é mais grave no Benin, Burkina Faso, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Guiné, Mali, Níger, Nigéria e Somália, tornando a África Ocidental e Central uma das regiões com maior insegurança hídrica e climática do mundo. Muitos dos países mais afetados, especialmente no Sahel, também enfrentam instabilidade e conflitos armados, que agravam ainda mais o acesso das crianças à água potável e ao saneamento.

"A África está enfrentando uma catástrofe hídrica. À medida que os choques climáticos e relacionados à água se intensificam globalmente, em nenhum outro lugar do mundo os riscos aumentam tão rapidamente para as crianças", disse o Diretor de Programas do UNICEF, Sanjay Wijesekera. “Tempestades devastadoras, inundações e secas históricas já estão destruindo estruturas e casas, contaminando os recursos hídricos, criando crises de fome e espalhando doenças. Mas por mais difíceis que sejam as condições atuais, sem ação urgente o futuro pode ser muito mais sombrio”.

Criança toma banho no sudoeste de Camarões (Vatican News)

A análise global - que examinou o acesso domiciliar à água e saneamento, o vínculos das mortes à água e ao saneamento entre crianças menores de cinco anos, e a exposição a riscos climáticos e ambientais - revela onde as crianças estão mais ameaçadas e onde o investimento em soluções para evitar mortes ​​é urgentemente necessário.

Nos 10 países mais afetados, quase um terço das crianças carece de acesso a pelo menos serviços básicos de água em casa e dois terços carecem de saneamento básico, como banheiros. Um quarto das crianças não tem escolha a não ser praticar a defecação ao ar livre. A higiene das mãos também é limitada: três quartos das crianças não podem lavar as mãos devido à falta de água e sabão em casa.

Como resultado, esses países também são aqueles com a maior carga de mortes infantis por doenças causadas por água e saneamento inadequados, como doenças diarreicas. Por exemplo, 6 em cada 10 países enfrentaram surtos de cólera no ano passado. Globalmente, mais de 1.000 crianças menores de cinco anos morrem todos os dias de doenças relacionadas à água e ao saneamento, e cerca de 2 em cada 5 vivem nesses 10 países de maior risco.

Uma estação de lavagem de mãos em frente à escola Hanti Goussou,  em Niamey, no 
Níger, usada no primeiro dia de aula após meses de fechamento da escola (Vatican News)

Esses países também estão entre os 25% dos 163 países do mundo com maior risco de exposição a ameaças climáticas e ambientais. Temperaturas mais altas – que aceleram a reprodução de patógenos – estão subindo 1,5 vezes mais rápido do que a média global em partes da África Ocidental e Central. Os níveis das águas subterrâneas também estão caindo, forçando algumas comunidades a cavar poços com o dobro da profundidade de apenas uma década atrás. Ao mesmo tempo, as chuvas tornaram-se mais erráticas e intensas, levando a inundações que contaminam os já escassos recursos hídricos.

Todos os 10 países identificados são classificados pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE) como frágeis ou extremamente frágeis, e as tensões do conflito armado em alguns países ameaçam desfazer o progresso em direção à segurança da água e do saneamento. Em Burkina Faso, por exemplo, os ataques a instalações de abastecimento de água se multiplicaram como tática para desalojar as comunidades. Em 2022, 58 pontos de abastecimento de água foram atacados, contra 21 em 2021 e 3 em 2020. Com isso, mais de 830 mil pessoas – mais da metade delas crianças – perderam o acesso à água potável no último ano.

A nova análise está sendo apresentada antes da Conferência da Água da ONU de 2023, a ser realizada em Nova York de 22 a 24 de março. Líderes mundiais, organizações de partes interessadas e outros participantes se reunirão pela primeira vez em 46 anos para revisar o progresso feito na garantia de acesso à água e saneamento para todos. Na conferência, o UNICEF pede:

Clarisse, 10, aluna de uma escola primária apoiada pelo UNICEF em Beni, mostra a seus
colegas como lavar as mãos corretamente (Vatican News)

- Um rápido aumento no investimento no setor, inclusive por meio do financiamento climático global.

- Fortalecer a resiliência climática do setor de água e saneamento e das comunidades.

- Priorizar as comunidades mais vulneráveis ​​nos programas e políticas de água e saneamento.

- Aumentar sistemas, coordenação e capacidades eficazes e verificáveis ​​para fornecer serviços de água e saneamento.

- Implementar o SDG6 Global Accelerator Framework da UN-Water e investir nos principais aceleradores.

Gentileza, silêncio, humildade: 3 pilares na espiritualidade das Mães do Deserto

Marvent / Shutterstock
Por Marzena Devoud

Ao contrário dos Padres do Deserto, suas contrapartes femininas são injustamente esquecidas. No entanto, sua sabedoria continua sendo um imenso tesouro a ser explorado. Descubra os três pilares de sua espiritualidade.

Livres, fascinados por Cristo, aspirando a um estilo de vida evangélico e conscientes de sua própria pequenez… Alguns deles tornaram-se famosos por sua grande sabedoria e santidade, tornando-se guias espirituais para alguns e professoras para outros. Embora tenha havido um renascimento de interesse pelas vidas e ensinamentos dos Padres do Deserto nas últimas décadas, suas contrapartes femininas permanecem nas sombras.

Entretanto, nas gravuras antigas que sobreviveram aos séculos, onde encontramos os ensinamentos de Antão, o Grande; Pacômio, o Grande ou Paulo de Tebas, os nomes de várias mulheres aparecem regularmente. Quem são elas?

Claramente, aqueles homens que, a partir do século III a.C., abandonaram a vida secular para embarcar na vida monástica nos desertos do Egito, Síria e Palestina, não estavam sozinhos. Como os eremitas masculinos designados pelo termo hebraico abba (pai), as mulheres chamadas amma (mãe), perseguiam uma vida monástica igualmente radical. Entre elas estavam três grandes figuras que, cativadas por Cristo, o seguiram, oferecendo-lhe suas vidas: Syncletica, Sarah e Theodora.

Segundo as Mães do Deserto, toda a vida delas é uma constante espera por Cristo e uma constante conversação com Ele

São mulheres que não têm medo de nada e que vivem uma relação mística “pessoa a pessoa” com Cristo. Segundo as Mães do Deserto, toda a vida é uma preparação para um encontro digno com Cristo. Para Amma Theodora é uma constante espera por Cristo e uma constante conversação com Ele. A contemplação da cruz de Cristo e seus sofrimentos se torna uma fonte de força.

A vida como uma vela no mar

Interiormente, em sua mente e em seu coração, o ser humano deve empreender e travar uma batalha espiritual. Se o lugar externo da luta é o deserto, a luta mais importante ocorre no coração. Esta convicção das Mães do Deserto é expressa por Amma Theodora, quando ela compara a vida à navegação no mar:

“Não pare no meio dos ataques do inimigo, ou sua paciência será arruinada. Além disso, para aqueles que vão para o mar, primeiro aproveitam um vento favorável e espalham suas velas, e depois são novamente confrontados com um vento contrário. Mas os marinheiros não abandonam o navio por causa de um vento acidental.Quando são atacados por uma tempestade, eles esperam um pouco e depois começam a navegar novamente. Da mesma forma, quando um vento de proa nos atinge, devemos desamarrar a cruz como uma vela e terminar a viagem sem medo. Aceitar as dificuldades e o sofrimento acaba se tornando a única maneira de encontrar Deus”.

(Gerontikon)

Segundo ela, a luta espiritual, na qual pode haver tanto fracassos quanto vitórias, não pode ser evitada. É a própria essência do ser humano. A maior tentação na vida espiritual seria, segundo as Mães do Deserto, fugir da tentação, evitar a dor. A guerra espiritual, embora ocorra com uma intensidade que varia nos diferentes momentos da vida, está ligada a uma vigilância que consiste em estar constantemente alerta, vigiando os pensamentos para lutar contra o diabo, que está sempre atento para arrastá-lo para o pecado.

“As pessoas que se consagraram a Deus nunca podem descansar sobre seus louros porque o inimigo, rangendo os dentes, está apenas esperando a oportunidade de atacá-las, ou seja, o momento em que tiram uma pequena soneca”, explica Amma Theodora (Meterikon 110).

Três pilares espirituais

Quais são então as três palavras-chave da espiritualidade das Mães do Deserto? Uma análise de textos antigos nos permite identificar os elementos-chave de sua espiritualidade: gentileza, silêncio e humildade. São a condição para a sobrevivência espiritual. Embora os caminhos para seu aprendizado possam ser muito diferentes, um mandamento de Deus conduz, segundo eles, à perfeição:

“O mandamento de Deus é: primeiro, gentileza; segundo, silêncio; terceiro, oração; quarto, leitura; quinto, lágrimas sinceras; sexto, lembrança de Deus e da morte; sétimo, humildade salutar” (Meterikon, 44).

Nesta cronologia de trabalho sobre si mesmo, gentileza e silêncio ocupam o primeiro lugar, pois são “a iluminação da alma”, “o companheiro que conduz à paz da alma”, “o resto dos pensamentos”, “o companheiro dos anjos”, “a alegria da alma e a alegria do coração”, “a sabedoria”. Finalmente, é onde “Cristo está”.

Quanto à humildade, “é impossível construir um navio sem um prego, então é impossível salvar-se sem humildade”, elas recomendam. Ou ainda: “Assim como não é possível ser uma planta e uma semente ao mesmo tempo, também é impossível, quando estamos rodeados pela glória do mundo, dar frutos celestiais”.

Esta prática ascética fundamental, com seus três pilares espirituais, é na verdade o único caminho que leva à interioridade. A única maneira de explorar as profundezas do próprio coração, e depois ir ao coração da própria vida. É simplesmente o único caminho que salva a alma porque leva à abertura a Deus e à contemplação de sua Palavra.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

Um filme para se apaixonar pela Amazônia

Um filme sobre a Amazônia (Vatican News)

A experiência 3D, assinada pelo cineasta Estevão Ciavatta, leva o usuário, graças à sábia orientação de um cacique indígena, a uma viagem extraordinária na maior floresta pluvial do mundo ameaçada pelo homem e pelas mudanças climáticas. O objetivo: divulgar a beleza, aproximar as pessoas, incentivá-las a cuidar desse pedaço da Criação.

Bianca Fraccalvieri – Vatican News

Um instrumento virtual para alertar sobre o real. E a realidade de que se fala é urgente: a preservação da floresta amazônica.

Esta é a finalidade do filme em 3D “Amazônia Viva”, uma experiência imersiva pela região do Rio Tapajós, no Estado do Pará, que utiliza filmagens em 360º para desvendar um dos lugares mais importantes do planeta e, assim, aproximar a Amazônia cada vez mais das pessoas.

O filme ainda leva o espectador a navegar pelos rios e torrentes da Amazônia
(Vatican News)

Um guia especial

Com nove minutos de duração, a “viagem” é conduzida pela cacica Raquel Tupinambá, da comunidade de Surucuá. A liderança indígena guia virtualmente o espectador por um dos biomas mais relevantes, fascinantes e, infelizmente, ameaçados pela ação do homem. Primeiramente, sobrevoa-se a imensidão verde da floresta para, depois, adentrar por igarapés, admirando árvores centenárias, encontrando pássaros, mergulhando com as crianças pelo rio, fazendo inclusive um passeio de canoa. Impossível ficar alheio a tamanha beleza, riqueza e exuberância.

Objetivo do filme

“Então esta é a missão, o objetivo do filme: trazer a floresta para perto das pessoas e levar as pessoas para dentro da floresta, ainda que seja em termos virtuais”, explica Carlos Vicente, facilitador nacional da Iniciativa Inter-religiosa Pelas Florestas Tropicais (IRI Brasil), idealizador do projeto. O filme, de fato, será é uma das principais ferramentas que a IRI utilizará em seus programas de sensibilização, formação e engajamento de lideranças e comunidades religiosas sobre a preservação da Amazônia e a defesa dos povos indígenas.

A Amazônia tem um papel fundamental

E sua divulgação começou precisamente na COP27, no Egito. E para Carlos, esta Conferência foi muito importante para o Brasil, já que todas as nações do mundo estão preocupadas com o aumento das emissões, que estão produzindo o aquecimento do planeta. Há o risco de que o aquecimento ultrapasse o que foi estabelecido no Acordo de Paris, que é 1 grau e meio. Neste contexto, a floresta Amazônia tem um papel fundamental, porque – explica Carlos – “se nós continuarmos destruindo, queimando, emitindo CO2, grande parte dos esforços do mundo inteiro pode ser perdido”.

“Porque não adianta reduzir as emissões num lugar e, por exemplo, a floresta tropical continuar queimando e emitindo. Mas por outro lado, ela é extremamente importante pela enorme reserva que ela tem de água, de biodiversidade e de diversidade cultural que precisa ser preservada para o bem do Brasil e para o bem da humanidade.”

Uma terra para proteger e amar (Vatican News)

O eco da Laudato si'

Do Egito, o filme chegou ao Vaticano e, quem sabe, ao Papa Francisco.

“O Papa Francisco e a Laudato Si’ e a Igreja Católica têm a liderança neste tema do cuidado da Casa Comum, como o Papa Francisco chama, o cuidado com a natureza, o respeito pelas populações indígenas, as comunidades locais. E a Iniciativa Inter-religiosa ela se inspira basicamente nesta missão, esta missão que o Papa traz de que nós devemos cuidar da Criação, cuidar da natureza, e assim estamos cuidando de todos, não só da geração atual, mas também das gerações futuras.”

“E nada melhor do que fazer isso pelo caminho da arte, da cultura, da espiritualidade e também da educação. Tudo isso vem dessa inspiração incrível, que está na Bíblia e que foi tão bem traduzida pelo Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si.”

Com efeito, o Pontífice cita a floresta tropical em sua encíclica Laudato Si’, definindo-a um dos “pulmões do planeta repletos de biodiversidade”.

Hora de agir

“A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos.”

Em outro documento, na Exortação Apostólica “Querida Amazónia”, Francisco declama sua poesia para a região em forma de quatro sonhos. Ali, escreve, “a água é a rainha; rios e córregos lembram veias, e toda a forma de vida brota dela”. É precisamente esta a experiência vivida no filme “Amazônia viva”.

Restaurar a aliança entre o homem e o ambiente é um dos objetivos do filme
(Vatican News)

*Com roteiro e direção do premiado cineasta Estevão Ciavatta, da Pindorama

Filmes, e financiamento do Instituto Clima e Sociedade (iCS), “Amazônia Viva” será disponibilizada gratuitamente para todos os interessados em promover a conscientização da proteção da floresta Amazônica dentro e fora do Brasil.

São Nicolau de Flue: pai, soldado, eremita

São Nicolau de Flue | Guadium Press
21 de março
No dia de hoje, 21 de março, a Liturgia Católica celebra a memória de São Nicolau de Flue, eremita, asceta e místico suíço.

São Nicolau de Flue: pai, soldado, eremita

Redação (21/03/2022 11:44, Gaudium Press) Mais uma vez a guerra assola a humanidade: é o conflito no Leste Europeu que faz as cabeças do mundo inteiro se voltarem para lá, preocupadas. E a grande pergunta é: como fazer para instaurar a paz? A vida de São Nicolau de Flue, santo comemorado hoje, traz algumas respostas.

São Nicolau de Flue | Guadium Press

Vida flexível e voltada para a santidade

São Nicolau é suíço, mais conhecido por lá como o “irmão Klaus’, porque este era seu nome de família. Sempre quis ser monge ou religioso, com uma vida desenvolvida unicamente para o Senhor; porém, Este tinha outros planos.

Como era de uma família pobre, Nicolau decidiu, logo em sua primeira adolescência, não abandonar o pai nos cuidados com o campo, o sustento de sua família. Ao alcançar a maioridade, pensando em satisfazer sua vontade de ser monge, percebe a necessidade de sua família mais uma vez e, para concretizar os anseios dela, casa-se.

Sua esposa é uma mulher virtuosa, e, com santidade, cria seus dez filhos com Nicolau. Muitos deles procuram a vida virtuosa instigada pelos pais, e alguns entram na vida religiosa, como que cumprindo o desejo do pai.

Porém, quando vê que já não é mais necessário em sua casa, com os filhos já bem encaminhados, pede permissão para a esposa para se retirar da sociedade e vai viver como eremita, na beira de um riacho. É quando o Klaus se torna Nicolau, assumindo o nome deste santo do século IV. Ali, na vida eremítica voltada ao Senhor que tanto sonhara, São Nicolau não tem sossego: são muitos que lhe pedem orações, conselhos e posicionamentos. São Nicolau não se despedia de ninguém com o coração vazio.

São Nicolau de Flue | Guadium Press

São Nicolau de Flue: um santo para todas as funções

Mesmo assumindo a vida eremítica, São Nicolau saía muitas vezes para resolver problemas em seu país. Era um excelente diplomata, em algumas ocasiões persuadiu os governantes a não ir pelo caminho da guerra. Mas quando foi necessário, saiu ele mesmo em campanha, como soldado, para defender sua pátria. Até hoje, muitos invocam São Nicolau como Patrono da Suíça.

Ele também foi conselheiro de príncipes e potentados temporais, que sempre se inclinavam ao conhecimento e experiência do homem de Deus. Foi professor de catecismo, com pregações individuais; confortou corações abatidos pela dor da morte, foi amigo, pai, irmão.

Não houve pedaço de terra para o qual São Nicolau de Flue não tenha sido chamado. Porém, como santo autêntico, não abandonava suas orações ou vida interior: sempre que podia, voltava ao seu recolhimento eremítico na beira do riacho. Sua festa foi fixada para o dia 21 de março, data em que entregou sua alma nas mãos do Senhor. Deixando toda a pátria chorosa por sua partida, São Nicolau entrou no Céu dos varões santos, tendo sido pai, monge, eremita, professor e homem público.

São Nicolau de Flue | Guadium Press

Paz: a tranquilidade da ordem

De onde veio a capacidade de São Nicolau de Flue de apaziguar guerras, ou de concluí-las, se fosse preciso? E por que os homens de hoje já não possuem esta mesma dádiva?

Porque, antes de tudo, só alcançam a paz aqueles que estão em paz consigo mesmo. E o santo é o único que consegue atingir este estado: nele, tudo está bem direcionado, tudo está ordenado. Santo Agostinho diz que “a paz é a tranquilidade da ordem”.

Não pode haver paz no mundo se não há paz no coração humano. Infelizmente, esse é o porquê de haver guerras e desavenças: a complexidade do sistema, as dificuldades entre as nações se originam desta falta de ordem. Rezemos hoje a São Nicolau para que nos alcance o que Cristo veio trazer à Terra: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz”: possuir uma alma ordenada, não escravizada pelo pecado. Assim, e só assim, viveremos em paz uns com os outros. (EPC)

Quaresma: a experiência transformadora do perdão

Quaresma: a experiência transformadora do perdão (Vatican News)

Aquele que realmente ama a Deus, ama também o seu próximo e a exemplo do próprio Deus perdoa sem medidas.

Dom Matias Moraes, OSB

O tempo da quaresma nos é propício para exercitarmos muitas práticas cristãs que nos aproximam cada vez mais do amor e misericórdia de Deus. Um dos convites que Nosso Senhor nos faz é que experimentemos o perdão. Numa sociedade marcada pelo ódio e violência, perdoar e ser perdoado parecem ser atitudes distantes de serem alcançadas. O Papa Francisco nos lembra que:  “Parece que a riqueza própria do diabo é esta: semear o amor não perdoando, viver apegado ao não-perdão. Mas o perdão é a condição para entrar no céu.” (Homilia na Casa Santa Marta, 17 de março de 2020)

Somos tentados a praticar o não-perdão todos os dias, quando caímos no egoísmo de pensarmos somente em nós mesmos, nas nossas próprias vontades e desejos, vivendo como se fôssemos o Senhor de nossas próprias vidas, e deixamos de lado o próprio amor Encarnado: Jesus Cristo.  Quando fazemos um verdadeiro encontro com Jesus, torna-se impossível não viver a dimensão do perdão. Nesse sentido a figura de São João Gualberto nos ilumina com seu testemunho e exemplo. Seu irmão fora assassinado, e como costume da época era sua missão vingar essa morte. Tomado pelo impulso de vingança João Gualberto ao encontrar-se com o assassino de seu irmão e já preparado para honrar a morte de um homem a quem ele tanto amara, se depara com um pedido de perdão daquele homem. Era uma Sexta-Feira Santa, dia em que Nosso Senhor e Salvador num supremo ato de amor doou sua vida por cada um de nós e nos abriu as portas do paraíso, derramando seu sangue na cruz, lavou e perdoou os pecados do mundo inteiro. O assassino disse a João Gualberto: Pelo mistério da Cruz que hoje celebramos eu rogo seu perdão! O jovem João não hesitou e o perdoou. Logo em seguida, abraçou a vida monástica e nunca mais abandonou a Jesus Cristo, a quem serviu fielmente por toda sua vida.

A experiência do perdão transforma as nossas vidas, mas o Papa recorda que: “não é fácil perdoar. Porque o nosso coração egoísta está sempre apegado ao ódio, às vinganças, aos rancores. Todos vemos famílias destruídas por ódios familiares que passam de geração em geração. Irmãos que, diante do caixão de um dos pais, não se saúdam porque levam adiante rancores antigos. Parece que o apegar-se ao ódio é mais forte do que o apegar-se ao amor; e este é propriamente o tesouro – digamos assim – do diabo. Ele esconde-se sempre entre os nossos rancores, entre os nossos ódios e fá-los crescer, mantendo-os ali para destruir. Destrói tudo. E muitas vezes destrói por coisas insignificantes.”

Não nos permitamos ser vencidos pelo ódio pois, como cristãos a nossa missão é iluminar o mundo com nosso testemunho de fé e amor a Deus e aos irmãos. Amemo-nos irmãs e irmãos, façamos a experiência do perdão e seremos autênticos discípulos de Jesus de Nazaré. Que São João Gualberto nos ajude a não hesitarmos, e ainda mais, a nos adiantarmos na prática da misericórdia!

segunda-feira, 20 de março de 2023

III Pregação da Quaresma 2023 “Deus é amor!” - texto integral

Terceira Pregação da Quaresma de 2023 (Vatican Media)

O pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 17 de março, a terceira pregação da Quaresma intitulada "Deus é amor". O Papa Francisco participou deste momento.

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap

“DEUS É AMOR!”

Terceira Pregação, Quaresma de 2023

Há necessidade da teologia!

Para a minha e a sua consolação, Santo Padre, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, esta meditação será centrada toda e apenas sobre Deus. A teologia, isto é, o discurso sobre Deus, não pode permanecer estranha à realidade do Sínodo, como não pode permanecer estranha a qualquer outro momento da vida da Igreja. Sem a teologia, a fé se tornaria facilmente morta repetição; careceria do instrumento principal para a sua inculturação.

Para desempenhar esta tarefa, a teologia necessita, ela própria, de uma renovação profunda. O que o povo de Deus necessita é uma teologia que não fale de Deus sempre e apenas “em terceira pessoa”, com categorias frequentemente tomadas do sistema filosófico do momento, incompreensíveis fora do círculo restrito dos “iniciados”. Está escrito que “o Verbo se fez carne”, mas, na teologia, frequentemente o Verbo se fez somente ideia! Karl Barth desejava o advento de uma teologia “capaz de ser pregada”, mas este desejo me parece ainda estar longe de ser realizado. São Paulo escreveu:

O Espírito sonda tudo, até mesmo as profundezas de Deus... Ninguém conhece o que é de Deus, a não ser o Espírito de Deus. Nós não recebemos o espírito do mundo, mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para conhecermos os dons que Deus nos concedeu (1Cor 2,10-12).

Mas, então, onde encontrar uma teologia que se apoie no Espírito Santo, mais do que em categorias de sabedoria humana, para conhecer “as profundezas de Deus”? É preciso, para isso, recorrer a matérias chamadas “opcionais”: à “Teologia espiritual”, ou então à “Teologia pastoral”. Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização de um ensinamento doutrinal em forma mais abstrata, que lhe fosse anterior e superior. É, ao contrário, o próprio ensinamento doutrinal, em sua forma mais alta. Isto era verdadeiro para a primeira pregação cristã, aquela dos apóstolos, e igualmente verdadeiro para a pregação daqueles que lhes sucederam na Igreja: os Padres, os Doutores e os nossos Pastores na presente hora”[1].

Estou convicto de que não há qualquer conteúdo da fé, por mais elevado, que não possa ser tornado compreensível a toda inteligência aberta à verdade. Se há uma coisa que podemos aprender dos Padres da Igreja é que podemos ser profundos sem ser obscuros. São Gregório Magno afirma que a Sagrada Escritura é “simples e profunda, come um rio em que, por assim dizer, um cordeiro pode caminhar e um elefante pode nadar”[2]. A teologia deveria se inspirar neste modelo. Cada um deveria poder aí encontrar pão para seus dentes: o simples, a sua alimentação, e o douto, alimento refinado para seu paladar. Sem contar que, frequentemente, é revelado aos “pequeninos” o que permanece oculto “aos sábios e entendidos”.

Mas peço desculpas se estiver traindo minha promessa inicial. Não é um discurso sobre a renovação da teologia que pretendo fazer nesta sede. Eu não teria nenhum título para fazê-lo. Gostaria mais de mostrar como a teologia, entendida no sentido acenado, pode contribuir para apresentar de modo significativo a mensagem evangélica ao homem de hoje e a dar nova seiva à nossa fé e à nossa oração.

A mais bela notícia que a Igreja tem o dever de fazer ressoar no mundo, aquela que todo coração humano espera ouvir, é: “Deus te ama!”. Esta certeza deve tirar do lugar e substituir aquela que trazemos dentro de nós desde sempre: “Deus te julga!”. A solene afirmação de João: “Deus é amor” (1Jo 4,8) deve acompanhar, como uma nota de fundo, todo anúncio cristão, mesmo quando deverá recordar, como faz o Evangelho, as exigências práticas desse amor.

Quando invocamos o Espírito Santo – também na presente ocasião do Sínodo –, pensamos primeiramente no Espírito Santo como luz que nos ilumina sobre as situações e nos sugere as soluções justas. Pensamos menos no Espírito Santo como amor; ao contrário, é esta a primeira e mais essencial operação do Espírito de que a Igreja necessita. Somente a caridade edifica; o conhecimento – também teológico, jurídico e eclesiástico – frequentemente não faz outra coisa senão inchar e dividir. Se nos perguntarmos por que estamos tão ansiosos em conhecer (e hoje, tão animados com a perspectiva da inteligência artificial!) e tão pouco, ao contrário, preocupados em amar, a resposta é simples: é que o conhecimento se traduz em poder, o amor, ao invés, em serviço!

O próprio Henri de Lubac escreveu: “É preciso que o mundo saiba: a revelação do Deus Amor inverte tudo o que ele concebera sobre a divindade”[3]. Até hoje não terminamos (nem terminaremos jamais) de tirar todas as consequências da revolução evangélica sobre Deus como amor. Nesta meditação, gostaria de mostrar como, partindo da revelação de Deus como amor, iluminam-se de nova luz os principais mistérios da nossa fé: a Trindade, a Encarnação e a Paixão de Cristo, e torna-se menos difícil fazê-los compreender pelas pessoas.

Por que a Trindade?

Iniciemos do mistério da Trindade: por que nós, cristãos, cremos que Deus é uno e trino? Tenho me encontrado, mais de uma vez, a pregar a palavra de Deus a cristãos que vivem em países de maioria islâmica, nos quais, contudo, há uma relativa tolerância e possibilidade de diálogo, como ocorre nos Emirados Árabes. São pessoas, na maioria imigrantes, empregadas como mão de obra. Às vezes, perguntaram-me sobre o que responder à questão que lhes é dirigida nos lugares de trabalho: “Por que vocês, cristãos, dizem que são monoteístas, se não creem em um Deus uno e único?”.

Digo o que tenho aconselhado a lhes responder, pois é a explicação que deveríamos dar a nós mesmos e a quem nos interroga sobre o mesmo problema. Nós cremos em um Deus uno e trino porque cremos que Deus é amor. Todo amor é amor a alguém, ou a algo; não se dá um amor ao acaso, sem objeto, como não há conhecimento que não seja conhecimento de alguém ou de algo.

Portanto, quem ama a Deus, para ser definido amor? O universo? A humanidade? Mas então é amor apenas há algumas décadas de milhares de anos, isto é, desde quando existe o universo físico e a humanidade. Antes de então, quem amava a Deus para que fosse amor, a partir do momento em que Deus não pode mudar e começar a ser o que, precedentemente, não era? Os pensadores gregos, concebendo Deus sobretudo como “pensamento”, podiam responder, como faz Aristóteles em sua Metafísica: Deus pensava a si mesmo; era “puro pensamento”, “pensamento de pensamento”[4]. Mas isto não é mais possível, do momento em que se diz que Deus é amor, pois o “puro amor de si mesmo” seria apenas egoísmo ou narcisismo.

E eis a resposta da revelação, definida no Concílio de Niceia de 325. Deus é amor desde sempre, ab aeterno, porque antes ainda que existisse um objeto fora de si para amar, tinha em si próprio o Verbo, “o Filho unigênito”, que amava com um amor infinito, que é o Espírito Santo. Se “no princípio era o Verbo” (Jo 1,1), quer dizer que no princípio era o amor!

Tudo isso não explica como a unidade possa ser contemporaneamente trindade, mistério incognoscível por nós porque ocorre somente em Deus. Ajuda-nos, porém, a intuir porque em Deus a unidade deve ser também comunhão e pluralidade. Deus é amor: por isso é Trindade! Um Deus que fosse puro conhecimento ou pura lei, ou poder absoluto, não teria certamente necessidade de ser trino. Isto, ao invés, complicaria as coisas. Nenhum triunvirato e nenhuma diarquia jamais duraram longamente na história!

Também os cristãos creem, portanto, na unidade de Deus e são, por isso, monoteístas; uma unidade, porém, não matemática e numérica, mas de amor e comunhão. Se há algo que a experiência do anúncio demonstra ser ainda capaz de ajudar os homens de hoje, se não para explicar, ao menos para se fazer uma ideia da Trindade, isso, repito, é justamente o que gira em torno do amor. Deus é “ato puro”, e este ato é um ato de amor, do qual emergem, simultaneamente e ab aeterno, um amante, um amado e o amor que os une.

O mistério dos mistérios não é, pensando bem, a Trindade, mas entender o que é, na realidade, o amor! Sendo ele a essência de Deus, não nos será dado entender plenamente o que é o amor nem mesmo na vida eterna. Ser-nos-á dado, contudo, algo de melhor do que conhecê-lo, isto é, possuí-lo e nos saciar dele eternamente. Não se pode abraçar o oceano, mas nele se pode adentrar!

Por que a encarnação?

Passemos ao outro grande mistério para crer e anunciar ao mundo: a Encarnação do Verbo. À luz da revelação de Deus como amor, também isso, veremos, adquire uma nova dimensão. Peço perdão se, nesta parte, talvez eu peça um esforço de atenção superior ao que é lícito pedir aos ouvintes em uma pregação, mas creio que o esforço valha a pena ser feito uma vez na vida.

Retomemos a partir da famosa pergunta de Santo Anselmo (1033-1109): “Por que Deus se fez homem?”. Cur Deus homo? É conhecida a sua resposta. É porque somente alguém que fosse ao mesmo tempo homem e Deus podia nos resgatar do pecado. Como homem, de fato, ele podia representar toda a humanidade e, como Deus, o que fazia tinha um valor infinito, proporcional à dívida que o homem contraíra com Deus ao pecar.

A resposta de Santo Anselmo é perenemente válida, mas não é a única possível, e nem mesmo totalmente satisfatória. No credo, professamos que o Filho de Deus se fez carne “por nós, homens, e para nossa salvação”, mas a nossa salvação não se limita apenas à remissão dos pecados, muito menos de um pecado particular, o original. Sobra espaço, portanto, para o aprofundamento da fé.

É o que buscar fazer o Bem-aventurado João Duns Scotus (1265 - 1308). Deus – afirma ele – se fez homem porque este era o projeto divino originário, anterior à própria queda: isto é, que o mundo – criado “per meio de Cristo e em vista dele” (Cl 1,16) – encontrasse nele, “na plenitude dos tempos”, a sua coroação e a sua recapitulação (Ef 1,10).

Deus, escreve Scotus, “antes de tudo ama a si mesmo; depois, quer ser amado por alguém que o ame em sumo grau fora de si mesmo”; por isso, “prevê a união com a natureza, que devia amá-lo em sumo grau”. Este amante perfeito não podia ser nenhuma criatura, sendo finita, mas somente o Verbo eterno. Este, por isso, teria se encarnado “mesmo que ninguém tivesse pecado”[5]. O pecado de Adão não determinou o próprio fato da encarnação, mas somente a sua modalidade de expiação mediante a paixão e a morte.

No início de tudo, ainda há, infelizmente, como se vê em Scotus, um Deus para amar mais do que um Deus que ama. É um resíduo da visão filosófica do Deus “motor imóvel”, que pode ser amado, mas não pode amar. “Deus – escrevera Aristóteles – move o mundo à medida que é amado”, isto é, enquanto objeto de amor, não quando ama[6]. Em linha com a visão ocidental da Trindade, Scotus põe a natureza divina, não a pessoa do Pai, no início do discurso sobre Deus. E a natureza não é um sujeito que ama! Isso, os nossos irmãos ortodoxos, herdeiros dos Padres gregos, viram mais justamente do que nós, latinos.

Sobre este ponto, a Escritura nos chama a todos, creio, a dar hoje um passo à frente, também em relação a Scotus, sempre conscientes, contudo, de que as nossas afirmações sobre Deus não são outra coisa senão instáveis sinais traçados com o dedo na superfície do oceano. Deus Pai decide a encarnação do Verbo não porque quer, fora de si, alguém que o ame de modo digno de si, mas porque quer ter fora de si alguém para amar de modo digno de si! Não para receber amor, mas para derramá-lo. Ao apresentar Jesus ao mundo, no Batismo e na Transfiguração, o Pai celeste diz: “Este é o meu Filho, o amado” (Mc 1,11; 9,7); não diz: “o amante”.

Somente o Pai, na Trindade (e em todo o universo!), não necessita ser amado para existir; necessita apenas amar. Isto é o que garante o papel do Pai como fonte e origem única da Trindade, mantendo, ao mesmo tempo, a perfeita igualdade de natureza entre as três divinas Pessoas. Há, na origem de tudo, a fulgurante intuição de Agostinho e da escola nascida a partir dele. Ela define o Pai como o amante, o Filho como o amado e o Espírito Santo como o amor que os une[7]. Nisso, também nós, latinos, temos algo de precioso e essencial a oferecer para uma síntese ecumênica. Graças a Deus, uma plena reconciliação entre duas teologias não parece tão difícil e distante. Este seria um passo decisivo em direção à unidade da Igreja.

Por que a paixão?

Vamos agora ao terceiro grande mistério: a paixão de Cristo, que estamos prestes a celebrar na Páscoa. Vejamos como, partindo da revelação de Deus como amor, também isso se ilumina de nova luz. “Por seus ferimentos fomos curados”: com estas palavras, ditas sobre o Servo de Javé (Is 53,5-6), a fé da Igreja expressou o significado salvífico da morte de Cristo (1Pd 2,24). Mas será que chagas, cruz e dor – fatos negativos e, como tais, somente privação de bem – podem produzir uma realidade positiva, como é a salvação de todo o gênero humano? A verdade é que não fomos salvos pela dor de Cristo, mas pelo seu amor! Mais precisamente, do amor que se expressa no sacrifício de si mesmo. Pelo amor crucificado!

A Abelardo, que, já a seu tempo, achava repugnante a ideia de um Deus que se “agrada” com a morte do Filho, São Bernardo respondia: “Não foi a sua morte que lhe agradou, mas a sua vontade de morrer espontaneamente por nós”: “Non mors, sed voluntas placuit sponte morientis”[8].

A dor de Cristo conserva todo o seu valor, e a Igreja jamais deixará de meditar sobre ela: não, porém, como causa, por si mesma, de salvação, mas como sinal e demonstração do amor: “Deus, contudo, prova o seu amor para conosco, pelo fato de que Cristo morreu por nós, quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8). A morte é o sinal; o amor, o significado. O evangelista São João põe como uma chave de leitura no início da sua narração da Paixão: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).

Isso tira da paixão de Cristo uma conotação que sempre suscitou perplexos e insatisfeitos: a ideia, isto é, de um preço e um resgate a ser pago a Deus (ou, pior, ao demônio!), de um sacrifício com o qual aplacar a ira divina. Na realidade, foi mais Deus quem fez o grande sacrifício de nos dar o seu Filho, de não “poupá-lo”, como Abraão fez sacrifício de não poupar o seu filho Isaac (Gn 22,16; Rm 8,32). Deus é mais o sujeito do que o destinatário do sacrifício da cruz!

Um amor digno de Deus

Agora devemos ver o que muda em nossa vida a verdade que contemplamos nos mistérios de Trindade, Encarnação e Paixão de Cristo. E, aqui, aguarda-nos a surpresa que jamais falta quando se busca aprofundar os tesouros da fé cristã. A surpresa é descobrir que, graças à nossa incorporação a Cristo, também nós podemos amar a Deus com um amor infinito, digno d’Ele!

São Paulo escreve que: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5). O amor que foi derramado em nós é aquele mesmo com que o Pai, desde sempre, ama o Filho, não um amor diferente! “Eu neles e tu em mim – diz Jesus ao Pai –, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles” (Jo 17, 23.26). Note-se: “o amor com que me amaste”, não um diferente. É um transbordar do amor divino da Trindade sobre nós. Deus comunica à alma – escreve São João da Cruz – “o mesmo amor que comunica ao Filho, ainda que isto não aconteça por natureza, como no caso do Filho, mas por união[9].

A consequência é que nós podemos amar o Pai com o amor com que o ama o Filho e podemos amar Jesus com o amor com que o ama o Pai. Tudo graças ao Espírito Santo, que é esse mesmo amor. O que damos, então, a Deus de nosso, quando lhe dizemos: “Eu te amo!”? Nada mais do que o amor que recebemos d’Ele! Nada, portanto, absolutamente, da nossa parte? Seria, talvez, o nosso amor a Deus nada mais do que “reverberar” o seu próprio amor para Ele, como o eco retorna o som à sua origem?

Não neste caso! O eco do seu amor retorna a Deus da cavidade do nosso coração, mas com uma novidade que, para Deus, é tudo: o perfume da nossa liberdade e da nossa gratidão de filhos! Tudo isso se realiza, de modo exemplar, na Eucaristia. O que fazemos nela, senão oferecer ao Pai, como “nosso sacrifício”, aquilo que, na realidade, o próprio Pai nos deu, isto é, o seu Filho Jesus?

Podemos dizer a Deus Pai: “Pai, eu te amo com o amor com que te ama o teu Filho Jesus!” E dizer a Jesus: “Jesus, eu te amo com o amor com que te ama o teu Pai celeste”. E saber, com certeza, que não é uma piedosa ilusão! Toda vez que, rezando, procuro fazê-lo eu mesmo, volta-me à mente o episódio de Jacó que se apresenta ao pai Isaac par receber a bênção, passando-se pelo irmão mais velho (Gn 27,1-23). E tento imaginar o que Deus Pai poderia dizer a si mesmo naquele momento: “Realmente, a voz não é mesmo aquela do meu Filho primogênito; mas as mãos, os pés e todo o corpo são os mesmos que meu Filho tomou na terra e trouxe aqui em cima, no céu”.

E estou certo de que Ele me abençoa, como Isaac abençoou Jacó! E os abençoa todos, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs. É o esplendor da nossa fé de cristãos. Espero ter sido capaz de transmitir algum fragmento aos homens e mulheres do nosso tempo, que estão sedentos de amor, mas desconhecem a sua fonte.

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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. H. de Lubac, Exégèse médièvale, I, 2, Parigi 1959, p. 670.

[2] Cf. Gregório Magno, Moralia in Job, Epist. Missoria, 4 (PL 75, 515).

 [3] Cf. Henri de Lubac, Histoire et Esprit, Aubier, Paris 1950.

[4] Cf. Aristóteles, Metafísica, XII,7, 1072b.

[5] Cf. Duns Scotus, Opus Parisiense, III, d. 7, q. 4 (Opera omnia, XXIII, Paris 1894, p. 303).

[6] Cf. Aristóteles, Metafísica, XII,7, 1072b.

[7] Cf. Agostinho, De Trinitate,VIII, 9,14; IX, 2,2; XV,17,31; Ricardo de São Vítor, De Trin. III,2.18; Boaventura, I Sent. d. 13, q.1.

[8] Cf. Bernardo de Claraval, Contro gli errori di Abelardo, VIII, 21-22: “Non mors, sed voluntas placuit sponte morientis”.

[9] Cf. João da Cruz, Cântico espiritual A, estrofe 38,4.

Trabalho escravo

Trabalho escravo | Revista PUB

TRABALHO ESCRAVO

Cardeal Sergio da Rocha 
Arcebispo de Salvador (BA)

Numa época de grandes avanços científicos e tecnológicos, marcada pelo risco de alguém se tornar “escravo do trabalho”, perdura tristemente o trabalho escravo. Notícias a respeito têm sido veiculadas pela mídia, nem sempre recebendo a devida atenção, indignação e resposta efetiva. As vítimas têm o seu clamor sufocado, o que leva as novas formas de escravidão a se perpetuarem e a se agravarem. Dentre elas, estão migrantes provenientes das áreas mais pobres do país e pessoas que sofrem com a miséria e a fome. Notícias recentes sobre a exploração de trabalhadores provenientes do Nordeste, principalmente da Bahia, têm favorecido algum conhecimento e reflexão sobre esta dura realidade. O caso veio a público com particular intensidade, gerando reações de indignação, mas certamente muitas outras situações ocorrem sem conhecimento público, nem a necessária resposta, 

 A capacidade humana de indignar-se perante esta forma de violação da vida e da dignidade das pessoas ainda se manifesta, trazendo esperança. Contudo, a comoção provocada pelo noticiário e pelas redes sociais não é suficiente. É preciso a ação decidida e permanente de autoridades e órgãos públicos, a mobilização da sociedade civil organizada, a participação de igrejas, universidades, meios de comunicação social e organizações de defesa dos direitos humanos. Iniciativas em andamento, como a Rede Um Grito pela Vida, de combate ao tráfico de pessoas, necessitam ser valorizadas e difundidas. 

Além das ações de combate ao trabalho escravo, é preciso investir na sua prevenção. Para tanto, é preciso aprofundar a questão das suas causas para prevenir o surgimento de novos casos.  Há fatores, como a migração forçada em busca de sobrevivência ou melhores condições de vida, que tornam os trabalhadores presas fáceis de trabalho escravo. A miséria e a fome criam um terreno fértil para submeter a condições de escravidão, trabalhadores, migrantes, mulheres e crianças. É preciso combater as causas e não apenas os casos particulares. Além disso, são sempre muito necessárias campanhas veiculando informações e alertas para a população a fim de evitar que as pessoas se tornem vítimas de pessoas ou grupos inescrupulosos que se aproveitam da sua vulnerabilidade social. Sinais de esperança se descortinam no horizonte, como iniciativas de solidariedade e de justiça, ações de superação da miséria e da fome e projetos socioeducativos. Mas, é árduo e longo o caminho a percorrer para eliminar o trabalho escravo.  A complexidade e a gravidade da realidade social não devem ser motivo para a paralisia e o desânimo. É preciso dizer “não” ao trabalho escravo e à escravidão de qualquer natureza, que não condiz com a dignidade da pessoa, “imagem e semelhança” de Deus.

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF