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domingo, 6 de outubro de 2019

O Sínodo da Amazônia: Observações ao Instrumentum Laboris (Parte 1/3)



  • Autor: Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas
    • Fonte: https://www.infocatolica.com/?t=ic&cod=35877
    • Tradução: Carlos Martins Nabeto
    INTRODUÇÃO
    Dentro de alguns dias, iniciará o Sínodo Especial sobre a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco para abordar a “Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”.
    Este é um Sínodo especialmente dedicado ao estudo dos problemas da Igreja numa região específica – a Amazônia -, que abrange grande parte da América do Sul. No entanto, é especialmente importante para toda a Igreja, pois tanto o Papa quanto os que trabalharam na sua preparação dão a este Sínodo uma projeção universal. Portanto, esta assembleia sinodal influenciará toda a Igreja e não apenas os países amazônicos. Entre eles, é claro, nosso país, a Venezuela.
    O Instrumentum Laboris circula desde junho passado. Dada a metodologia dos Sínodos, que utilizam esses textos como base para a discussão sinodal, este documento é de grande importância. Ainda mais porque, sem dúvida, é muito complexo e inovador também em sua estruturação, e inclusive desconfortável e bastante polêmico, motivo pelo qual tem sido muito controverso. Por essa razão, dediquei-me à tarefa de estudá-lo para, destacando seus pontos fortes, possa ajudar os pais sinodais a superarem as falhas e fragilidades do texto.
    CONTEÚDO DO INSTRUMENTUM
    Ele é dividido em três partes: a primeira, intitulada “A Voz da Amazônia”, dedicada aos aspectos fundamentais da realidade social e cultural da Amazônia; a segunda, dedicada principalmente aos problemas de ecologia e ordem sócio-econômica, é chamada de “Ecologia Integral: clamor da terra e dos pobres”; e a terceira, que apresenta propostas de ação pastoral: “Igreja Profética na Amazônia: desafios e esperanças”. No entanto, os vários temas se entrelaçam nas três partes, o que implica repetições, prolonga desnecessariamente o texto e reduz a clareza das abordagens. As mais abundantes no texto são questões culturais, ecológicas e socioeconômicas. Menos abundantes, mas extremamente e mais importantes para nós, pastores da Igreja, a evangelização e as propostas de ação pastoral.
    DEFESA CORRETA DA AMAZÔNIA E DOS POVOS DA AMAZÔNIA
    Sem dúvida, é muito louvável o interesse em abordar a dramática situação da Amazônia, atualmente ameaçada por uma agressão economicista voraz e irracional. Um dos méritos do documento é que ele reúne as experiências, problemas e aspirações de muitas pessoas, ouvidas pelos membros da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica), precisamente em preparação para o Sínodo. Por isso, o Instrumentum Laboris levanta a grave situação ecológica, social e econômica sofrida pelo território e pelos povos da Amazônia.
    Como bispo venezuelano, apoio a denúncia e a rejeição feitas pelo Instrumentum Laboris (IL) de toda violência contra os povos e o território amazônico. Essa séria exploração ocorre hoje também na Venezuela. Especificamente, em nossa região amazônica, o atual governo [de Nicolás Maduro] promoveu uma operação de mineração agressiva e desordenada no “arco de mineração”, ao sul do Orinoco, que não leva em consideração a proteção do meio ambiente e os direitos dos povos indígenas.
    Graças a Deus, o Instrumentum enfatiza e denuncia de maneira justa e correta a seriedade dos abusos que estão sendo cometidos contra os povos da Amazônia, em particular contra os povos indígenas, chamados no texto “povos originários”. A agressão da ambição humana transformou a Amazônia num espaço de “desacordos e extermínio de povos, culturas e gerações” (IL 23). Essa agressão suscita e exige precisamente a defesa da vida, território e recursos naturais, bem como a cultura e organização dos povos (cf. IL 17). E neste trabalho a Igreja na Amazônia agiu energicamente e – com razão levanta o documento -, sem dúvida deve continuar a fazê-lo.
    Apoiamos totalmente essa denúncia e rejeição a toda injustiça. Isso é bom. Devemos concordar com a defesa que o documento faz dos povos amazônicos e do ambiente natural, a ecologia dessa zona privilegiada. Concordo também em afirmar a obrigação da Igreja de acompanhar e proteger os povos oprimidos.
    BELEZA DA AMAZÔNIA E UMA ANTROPOLOGIA IDEALISTA
    Uma observação importante: o Instrumentum Laboris parece pensar que toda a população da Amazônia é indígena, originária. Não é verdade — pelo menos na Venezuela. Em nossa região amazônica, nas dioceses estabelecidas – não nos vicariatos -, há uma maioria de crioulos, venezuelanos brancos ou mulatos e afrovenezuelanos que não possuem esta cultura indígena. Nem toda a população da Amazônia é originária ou indígena.
    Outro aspecto que chama a atenção no texto é a visão otimista e laudatória, quase utópica, com a qual a população indígena da Amazônia é apresentada na Primeira Parte do texto. Esse território é apresentado quase que como uma espécie de paraíso terrestre, de beleza sem limites (IL 22) “cheio de vida e sabedoria” (IL 5), onde os povos da Amazônia, especialmente os indígenas, buscam “o bom viver”, que é viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o Ser Supremo (cf. IL 11). A natureza também é mencionada em uma expressão estranha à visão cristã como um todo, na qual os seres humanos são assumidos e referindo-se à “Mãe Terra” (com as iniciais em maiúsculo) quase que como uma pessoa (cf. IL 44).
    Por outro lado, o texto elogia a sabedoria ancestral dos povos amazônicos manifestada no cuidado da terra, da água e das florestas… E propõe que os novos caminhos da evangelização sejam construídos em diálogo com ela, na qual se manifestam as sementes do Verbo (IL 29). “A diversidade original oferecida pela região amazônica – biológica, religiosa e cultural – evoca um novo Pentecostes” (IL 30). Por que essa diversidade original evocaria um novo Pentecostes? Seria necessário estudar em profundidade o que significa essa frase, à primeira vista confusa e exagerada.
    Algo romântico também é a descrição do povo original da Amazônia – os indígenas – como seres excepcionais, que vivem em harmonia com a natureza e o ser supremo, e que personificariam um utópico “bom selvagem”, virtuoso, gentil, ingênuo e confiável. Isso possuiria uma sabedoria na qual as sementes do Verbo seriam encontradas. É uma visão antropológica muito otimista, que ignora as deficiências das culturas indígenas, que omite suas limitações e falhas, e que é diversa e distante da bem realista antropologia católica, da visão bíblica e cristã do homem, sem dúvida imagem de Deus, mas golpeado pelo pecado e necessitado da redenção. Será por isso que pouco se fala da necessidade de salvação e redenção, bem como em fortalecer intensamente a ação pastoral e abertamente evangelizadora da Igreja no Amazonas, como se Cristo não fosse necessário e a harmonia natural utópica fosse o suficiente?
    NOVA REVELAÇÃO?
    Fala-se também do clamor da justiça no território da Amazônia e esta região é apresentada quase que personalizada…, como um “locus theologicus”, um lugar teológico onde se vive a fé e que seria uma nova fonte da revelação de Deus (cf. IL 18 e 19). Aqui encontramos um ponto problemático, de séria discussão, porque é atribuído a um território particular e à luta pela justiça a categoria de nova fonte de revelação! Ou fonte de uma nova revelação?
    Consideremos que a palavra “revelação” no Magistério eclesiástico e na teologia em geral é bastante concreta e específica, significando a comunicação, a revelação, a manifestação que Deus fez de si mesmo à humanidade por meio de Jesus Cristo. Isso está muito claro no documento “Dei Verbum”, sobre a revelação divina, do Concílio Vaticano II (DV 2). Sabemos que a revelação total já ocorreu em Jesus Cristo e uma linguagem ambígua, que obscurece que a realidade teológica e doutrinária, não pode ser usada num documento oficial. O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma linguagem inadequada e imprecisa, que deve ser sempre evitada num texto oficial; alguém poderia simplesmente falar de “manifestação de Deus”. Uma das fraquezas do texto é exatamente fazer uso de uma linguagem difusa, equívoca, imprecisa. Será necessário empregar no Sínodo maior rigor conceitual, teológico e doutrinário.
    DIÁLOGO E EVANGELIZAÇÃO
    Nos parágrafos finais da Primeira Parte, o Instrumentum Laboris aborda a questão do diálogo e da evangelização. Sem dúvida, a afirmação da necessidade do diálogo para evangelizar é muito correta. Nosso Senhor Jesus Cristo falou com a mulher samaritana e assim devemos fazer hoje (cf. IL 37). Mas o documento faz declarações românticas ou excessivas à primeira vista. A Amazônia é apresentada como um paradigma para o pacto social do diálogo (IL 37); afirma-se que são os povos da Amazônia, especialmente os pobres, os originários e culturalmente diferentes, os principais interlocutores e protagonistas do diálogo. Isso pode ser aceito caso não seja considerado excludente.
    Porém, um diálogo sem proposta de conversão, sem convite para acolher Jesus como o único Salvador, como o redentor do ser humano ferido pelo pecado? Por que não dizê-lo expressamente? Parece estar ausente do texto o entusiasmo ou uma maior consciência da necessidade de que a Igreja realize ali uma ação evangelizadora mais intensa, precisamente, algo vital para a Igreja em todos os lugares. Isto deve estar no centro, no coração do texto e, depois, no Sínodo: a revitalização da Igreja na Amazônia. A urgência de cumprir a missão evangelizadora da Igreja parece estar ausente ou é expressa muito fracamente. Ao contrário, é necessário acolher o que diz o Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nº 14:
    – “A evangelização está essencialmente ligada à proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou sempre o rejeitaram… Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de anunciar isso sem excluir ninguém; não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem compartilha uma alegria”.
    É verdade que se fala em novos caminhos, mas esses caminhos parecem consistir, acima de tudo, segundo o IL, num diálogo com sabedorias ancestrais e numa firme defesa da ecologia e das populações originárias. Isso não basta! Não se insiste no anúncio mais explícito do “kerygma” e numa ação mais abertamente evangelizadora, santificadora e pastoral de implantação e expansão da Igreja em toda a Amazônia e não apenas para as populações originárias. Esse desequilíbrio é uma grande fraqueza do texto, que esperamos que os padres sinodais venham a superar nas suas deliberações.
    Abordaremos sobre isso em um próximo artigo.

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    Pe. Manuel Pérez Candela

    Pe. Manuel Pérez Candela
    Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF