Uma revolução na
intimidade
Jesus perdoa uma mulher pecadora que ungiu os seus pés e a lança rumo à
liberdade que surge de um coração limpo.
26/11/2020
Jesus foi convidado outra vez a almoçar. O seu anfitrião havia insistido
muito em que fosse, já que estava entusiasmado em recebê-lo com um banquete
especial. Algo inesperado está, porém, a ponto de interromper a cerimônia: uma
mulher que não havia sido convidada aparece na sala. A expressão do rosto do
fariseu dono da casa, que se chama Simão, transforma-se. O momento é
desconcertante. Jesus, pelo contrário, parece como se a estivesse esperando
porque seus olhos se iluminam ao vê-la. Conhece a sua alma, sem dúvida, melhor
que ela mesma e, por isso, conhece a dor que preenche o seu coração; sabe que
para amar e tentar ser amada percorreu caminhos errados. Sabe que ela cruzou
barrancos e precipícios.
Os detalhes de delicadeza da mulher – unge os seus pés com perfume, com
lágrimas e com beijos – emocionam Jesus. Por isso, imediatamente, procura
explicá-lo com um exemplo a Simão, que tinha visto a cena de longe, com ar de
censura: “Um credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários e o
outro, cinquenta. Como não tinham com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois
o amará mais?” (Lc. 7, 41-42). Aquela mulher aprendeu a amar deixando-se
perdoar. Nisso reside a sua verdadeira grandeza e, por isso, Jesus decide
louvá-la publicamente (cfr. Lc 7, 44-46).
Nunca tinha sido tão fácil
Essa mulher sente, talvez pela primeira vez, a alegria de ser
respeitada. O olhar de Jesus é diferente do das outras pessoas. Percebe que
diante dele não precisa estar na defensiva. Nunca viu um olhar que penetre
tanto em seu coração e nunca foi tão fácil conseguir ser amada. Realiza-se nela
a bem-aventurança que Jesus prometeu aos que deixam o seu coração ser
purificado (cfr. Mt 5, 8); está aprendendo rapidamente do mestre e já nota os
efeitos: “Todas as criaturas se tornam límpidas quando são olhadas através da
Face do mais belo e mais branco dos lírios”[1]. Ela
consegue, de alguma forma, experimentar essa liberdade com que Jesus a ama,
consegue experimentar esse carinho que não precisou ser forçado nem conseguido
com ardis.
Durante anos, esta mulher tinha desperdiçado os talentos que Deus lhe
havia dado. Agora, no entanto, percebe que está diante de um novo início. Pode
agora ser a mulher sensível que no fundo sempre fora, forte e vulnerável ao
mesmo tempo, serena e apaixonada. Agora pode ser ela mesma. Porque um dos
grandes dramas da impureza é pensar que não conseguiremos ser amados por quem
verdadeiramente somos e, em consequência, vender uma aparência
para ser queridos. Esta é, porém, uma tarefa impossível, simplesmente porque o
amor não tem preço. Ou é livre ou não é amor. Por isso, quando se admite
esta chantagem, mais cedo ou mais tarde tal aparência se esfuma e
deixa o sabor de termos sido enganados.
Sentir assombro diante de cada coração
Para que o amor cresça, para que arraigue, é preciso dar-lhe espaço, às
vezes com esforço, porque a santa pureza, “é uma rosa que só floresce entre
espinhos”[2].
Talvez por isso, às vezes temos medo de arriscar-nos ao amor e procuramos obter
uma garantia. De fato, o coração que se torna impuro renuncia a
cultivar o amor no espaço onde podemos encontrar-nos. Não quer arriscar-se a
sofrer e prefere, de modo tirânico e desrespeitoso, criar zonas próprias de
conforto. Às vezes tal motivação tem um componente de compensação, um pouco de
birra, talvez uma raiva oculta. Pode parecer, às vezes, que o que conseguimos é
amor, quando na realidade estamos usando a outra pessoa, ainda que seja de modo
virtual: obrigo-a a que me “ame”, forço-a a que me faça sentir ”valioso” ou
“valiosa”. Diante da promessa do amor incondicional que Deus nos oferece, o
pecado é uma farsa que nos empurra para a solidão.
Perante isto, a solução não é fechar-se, desanimar ou pensar que esse
tipo de amor é impossível. Trata-se antes de procurar o amor que Deus semeou
onde estamos, especialmente nas pessoas e em nossas relações. Nesse sentido,
São Josemaria nos animava a amar os outros pondo “generosamente o nosso coração
no chão, de modo que os outros pisem macio e se torne mais amável a sua luta”[3].
Esse pode ser um dos frutos – entre tantos outros – da santa pureza: tornar
mais amável a vida dos outros. Não se trata apenas de evitar o pecado pessoal,
mas sim de alcançar uma forma de olhar e de relacionar-nos que ajude a que
todos nos sintamos amados à imagem do amor de Deus. A alma limpa cuida da
vulnerabilidade própria e alheia, mostra-se com elegância, procura ser amada
livremente. É verdade que o nosso coração, colocado no chão, corre o risco de
ser desprezado, mas essa é a única forma divina de amar e de receber amor. A
mulher e o homem de coração limpo sabem olhar os outros sem tolerar que se faça
tráfico com a imagem de Deus que há neles.
Pelo que ficou dito, podemos deduzir que Jesus revolucionou a liberdade
e o amor. Convida-nos a guardar a intimidade dos filhos e filhas de Deus
inclusive com o nosso olhar e com os nossos pensamentos. Quer que participemos
do assombro que ele mesmo experimenta diante da dignidade de cada coração. A
intimidade é terra sagrada onde o cristão se descalça.
Parte de nossa missão
Uma das tarefas da santa pureza é guardar – em nós e nos outros – algo
precioso aos olhos de Deus e a melhor defesa desse tesouro é estar apaixonado.
Também é verdade que o desejo de viver um amor limpo fará necessário voltar a
começar muitas vezes. Deixar-se perdoar e deixar-se amar são manifestações de
uma humildade que entende que a santa pureza e o amor dos outros são um dom.
“Deus, para se doar a nós, escolhe muitas vezes caminhos impensáveis, talvez os
dos nossos limites, das nossas lágrimas, das nossas derrotas”[4]. Na
confissão deixamo-nos amar como em nenhum outro lugar. Quem se deixa perdoar
abre a porta ao amor mais livre e é capaz de responder – já começou a fazê-lo –
com um amor à medida do que recebe.
Será necessário ter em conta, além disso, outra possível dificuldade:
que algumas vezes, inclusive sem pensar nisso, receber algo gratuitamente pode
envergonhar-nos. Não estamos habituados a que algo tão grande seja um presente.
Muitas vezes, preferimos saber que o conseguimos com nossas próprias forças
porque isso nos torna autônomos, permite-nos experimentar certo poder; não
queremos depender de outro em algo tão decisivo. Pelo contrário, quem aprendeu
a deixar-se amar está convencido de que “não pode dar unicamente e sempre,
também deve receber. Quem quer dar amor, deve por sua vez recebê-lo como dom”[5].
Tudo o que podemos chegar a ser é sempre fruto de um dom prévio: “Ele nos amou
primeiro” (1 Jo 4, 19).
De qualquer forma, a santa pureza é sempre necessária para realizar
qualquer missão apostólica. A evangelização se realiza gratuitamente. Se nosso
coração não for limpo, não poderemos entender essa doação, em que muitas vezes
os frutos não chegam quando nós planejamos, mas quando Deus dispõe. O carinho
verdadeiro e puro, núcleo de qualquer missão evangelizadora, não impõe razões,
não exige resposta, não emite fatura pelo que oferece; não distingue pessoas,
não descarta os hostis, não se cansa dos lentos. Tampouco chantageia ou
repreende. Em uma palavra, o carinho verdadeiro é fiel.
***
Como sempre, basta contemplar Jesus para aprender a ser amados. E não há
lição tão magistral como a que nos oferece na Eucaristia. Lá Jesus não se
impõe. Ninguém é tão paciente, ninguém deseja tanto que o amemos, mas, ao mesmo
tempo, ninguém o diz tão baixinho, como num sussurro quase
imperceptível. Sabe que a nossa liberdade é um grande presente seu, de modo que
não quer comprometê-la por nada no mundo. Ninguém valoriza tanto a nossa
fragilidade – e a dignidade que encerra – como Jesus. Por isso, em nosso desejo
de crescer nesta virtude, é gratíssimo a Deus que ofereçamos cada um de nossos
passos, os tropeços e as derrotas também. A dor de Deus só
pode ser causada pelo nosso sofrimento e pela solidão na qual nos isola.
Podemos imitar São Josemaria em seus desejos de oferecer a Nossa Senhora o
melhor que tinha: “Eu coroo a Mãe de Deus e minha Mãe com as minhas misérias
purificadas, porque não tenho pedras preciosas nem virtudes. Ânimo!”[6].
Diego Zalbidea
Foto: Cathopic
_____________________
[1] Santa
Teresa do Menino Jesus, Carta 105 a Celina.
[2] Santo
Cura d’Ars, Sermão sobre a penitência.
[3] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 228.
[4] Francisco, Audiência, 29/01/2020.
[5] Bento
XVI, encíclica Deus Caritas est, n.7.
[6] São
Josemaria, Forja, n. 285.
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