Para iluminar, ter o fogo aceso: Matrimônio e celibato
apostólico (2)
Viver como Cristo, tanto no matrimônio como no celibato,
leva a acolher um estilo de vida novo que o Espírito Santo nos oferece: um amor
fecundo, um coração limpo e uma opção pelas riquezas de Deus e pelo cuidado dos
mais necessitados, no estilo do Evangelho.
30/06/2025
Em meados dos anos cinquenta depois de Cristo, Suetônio
escreve que o imperador Cláudio “expulsou [de Roma] os judeus que,
impulsionados por Cresto, provocavam altercações com frequência”[1].
Aos olhos da autoridade romana, afirmavam que Cristo estava vivo, embora os de
Jerusalém insistissem em que havia morrido crucificado: tratava-se dos cristãos
procedentes da Judeia que possivelmente tinham ido à capital do império para
anunciar Jesus ressuscitado. Eles compreenderam que não eram só os dozes
apóstolos que estavam chamados a realizar aquela missão, mas todos os
discípulos de Cristo de todos os tempos. Isso São Paulo recorda a uma das
primeiras comunidades: “Sois uma carta de Cristo” – diz-lhes – que foi redigida
em vossos corações ‘com o Espírito de Deus vivo’” (2 Cor 3,3). Todos eram
chamados a ser, com sua vida, uma mensagem para os outros, escrita pelo próprio
Cristo.
Naquele grupo muitos eram casados, como “o centurião
Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus e em cuja casa consumou-se a abertura
da Igreja aos gentios (At 10, 24-48); Áquila e Priscila que difundiram o
cristianismo em Corinto e em Éfeso e que colaboraram no apostolado de São Paulo
(At 18, 1-26); Tábita, que com sua caridade assistiu os necessitados de Jope
(At 9, 36)”[2].
Muitos outros, pelo contrário, não abraçavam o matrimônio por diferentes
razões, entre elas, ter recebido o dom do celibato, com uma chamada a unir-se
também a esse aspecto da vida de Jesus. É o que relata Galeno – um famoso
médico pagão – por volta do ano 200 que também “há entre eles mulheres e homens
que se abstiveram da união sexual por toda sua vida”[3].
O que também, na mesma época, São Justino testemunha: “Muitos homens e
mulheres, já septuagenários, cristãos desde a juventude, conservam-se virgens”[4].
O que havia de novidade na mensagem ou no estilo de vida daqueles cristãos,
casados e solteiros, viúvos e celibatários, que fizeram temer o próprio
imperador?
Viviam sob uma nova lei
“Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19): com esta frase o Senhor
envia os apóstolos – e continua enviando-nos – a todo o mundo. Jesus
acrescentou, além disso, que aonde fossem, ensinassem “a observar tudo o que
vos prescrevi” (Mt 28,20). Se estas palavras chegaram aos ouvidos do imperador
Cláudio, seria compreensível que ele se enchesse de nervosismo, pois Jesus
Cristo estava estabelecendo uma nova lei, que, ao que parece, afetava qualquer
território, inclusive o dele. O mandamento de Cristo, no entanto, era muito
diferente do que talvez o imperador imaginasse: a lei dos discípulos – que os
distinguiriam se a vivessem – não era outra, senão amar como Ele mesmo amou.
Jesus definiu essa lei peculiar como o “mandamento novo”
(cfr Jo 13, 34) e, em boa medida, é sempre novo, pois não é simples aprender a
amar assim. Se observarmos à nossa volta, há muitos cantos de sereia que nos
convidam a viver de outra forma, a amar ídolos, interiores ou exteriores. E se
olharmos dentro de nós, também existem motivos de sobra para tornar evidente,
inclusive, que pode ser delicado amar-nos assim a nós mesmos: com a passagem do
tempo acumulamos tensões, fracassos, medos, que vão golpeando a nossa própria
autoestima. Quem pode amar a Deus, a si mesmo e ao próximo como Jesus fez?
Acolher a realidade como amada por Deus, sem devolver o mal
por mal, sem procurar a justiça por nossa conta , tentando ver como nós também
podemos amá-la é parte de “guardar o que Ele ensinou”. No casamento, os esposos
declaram um ao outro: “eu te recebo e me entrego a ti e prometo ser fiel na
prosperidade e na adversidade, na saúde e na doença, e amar-te e respeitar-te
todos os dias da minha vida”. De certa forma, Deus realiza isso mesmo conosco;
promete-nos que, junto dele, toda realidade pode ser aceita. Inclusive no que é
mais obscuro – desgraças, doenças, injustiças, infidelidades, fracassos –
podemos descobrir o significado misterioso, uma luz tênue e, com sua ajuda,
podemos compreender como “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam
a Deus” (Rom 8, 28).
A bem-aventurada Guadalupe[5] dizia
que, para realizar o apostolado do Opus Dei, estaria “contente onde me
necessitem”[6],
pois sabia que qualquer circunstância era propícia para viver esse novo
mandamento de Jesus, essa nova lei do amor que convida todos a viverem em uma
lógica diferente. Por isso, “seu projeto de vida ficou engrandecido ao ser
colocado dentro do plano divino: Guadalupe deixou-se levar por Deus, com
alegria e espontaneidade de um lugar a outro, de um trabalho a outro. O Senhor
potencializou sua capacidade e talentos, desenvolveu sua personalidade e
multiplicou os frutos de sua vida”[7].
A vida dos santos recorda-nos o que é viver sob este novo império que vence o
egoísmo com o amor de Cristo que se encarna nos cristãos.
A chamada à paternidade e maternidade espirituais
É lógico, por isso, que os discípulos tenham começado a ver
as pessoas com outros olhos; já não viam distinções de nação nem de qualquer
outro tipo, mas procuravam amar com o coração misericordioso de Deus, judeus,
samaritanos, galileus, romanos, gregos ou persas. Imitando Jesus, adquiriam
pouco a pouco um coração de pai e de mãe, pois eram chamados a comunicar uma
vida nova ao dar à luz na fé a tantas pessoas. São Gregório de Nisa indica que
o motivo pelo qual Jesus era celibatário era precisamente porque Ele vinha ao
mundo não para gerar filhos nascidos do sangue ou da carne (cfr Jo 1, 13), e
sim para dar-nos a vida sobrenatural, engendrando-nos como filhos de Deus[8].
Todos os cristãos – seguidores de Jesus Cristo –, solteiros e casados, somos
chamados a essa paternidade ou maternidade espirituais.
Viver esse novo tipo de paternidade ou maternidade é a
missão mais alta de toda pessoa. Assim como o Gênesis sublinha a vocação à
paternidade e à maternidade físicas (cfr Gn 1,28), poderíamos dizer que os
primeiros discípulos, herdeiros de um novo gênero humano a
partir da Ressurreição do Senhor, foram chamados a uma nova paternidade
e maternidade em Cristo. A própria bem-aventurada Guadalupe várias vezes, ao
escrever a São Josemaria, não pode ocultar sua alegria vendo crescer essa vida
nova nas pessoas à sua volta, especialmente nas estudantes da residência em que
morava: “Às vezes, vendo-as todas contentes e trabalhando bem, nos parece que
já conseguimos tudo, e esquecemos que o nosso trabalho é nada menos que
ensiná-las a ser santas, sendo nós também”[9].
Os cônjuges recebem essa fecundidade especialmente através
da graça do matrimônio, mas não somente aí. Com o Espírito Santo e os outros
sacramentos, dispõem sempre de luz e forças novas para cuidar um do outro e
para educar os filhos – quando chegam – nutrindo-os com a vida de Deus. Aqueles
que não têm filhos podem também descobrir essa fecundidade inflamar o amor de
Deus em pessoas e lugares que talvez nunca tivessem imaginado.
É também o próprio Espírito Santo que concede uma graça
especial às pessoas solteiras ou àquelas que receberam o dom do celibato: com
isso imitam a vida de Cristo no modo particular de cuidar e de dar a vida
espiritual a tanta gente.
Na vida de Marcelo Câmara[10], supernumerário do Opus Dei que faleceu muito jovem, observa-se claramente essa paternidade espiritual. Uma amiga recorda uma conversa com o Marcelo, num dia em que se sentia triste: “Lá estava eu – diz ao recordar um desses momentos – ganhando de presente mais uma vez aquela sensação, como se eu estivesse por poucos segundos sentindo Cristo muito próximo, cuidando de mim, me incentivando na fé. Uma sensação de paz indescritível”[11]. Algo similar recordam os alunos de Arturo Álvarez[12], adscrito do Opus Dei, engenheiro e professor mexicano. Numa carta dirigida a ele, diziam: “Um mestre é aquele que além de dar sua matéria, dá a seus alunos parte do seu próprio ser, de sua filosofia de vida e de seu credo. Ao dar sua aula cada manhã, vemos como em cada atividade procura a oportunidade de realizar-se, de santificar-se (...). É um mestre que deixará uma marca profunda em nossa vida”[13].
[1] Suetonio, Vitae
XII Caesarum. Vita Claudii, XXVV, 3. Na versão original se lê: “Iudeos
impulsore Chresto assidue tumultuantes Roma expulit”.
[2] São
Josemaria, É Cristo que passa, n. 30
[3] Galeno,
Libro de sententiis Politiae Platonicae, exposto por Abu Al-Fida
Ismail Ibn-Ali, Abulfedae Historia Anteislamica Arabice, F.C.G.
Vogel, Lipsia 1831, 109. Na versão original lê-se: “Sunt enim inter eos, et
foeminae et viri, qui por totam vitam a concubitu abstinuerint”. Galeno nasceu
em Pérgamo (Turquia) por volta do ano 130 e faleceu em 201. Foi médico da corte
imperial no tempo de Marco Aurélio, bem como de seu filho Cómodo e dos
imperadores seguintes.
[4] São
Justino, Apologia I, 15, 6-7
[5] Guadalupe
Ortiz de Landázuri (1916-1975) era química e professora espanhola e foi uma das
primeiras mulheres do Opus Dei, como numerária. Destacou-se por sua
entrega ao ensino e por seu trabalho evangelizador na Espanha e na América
Latina. Foi beatificada em 2019.
[6] María
del Rincón, Maria Teresa Escobar, Cartas
para um santo.
[7] Mons.
Fernando Ocáriz, mensagem de 9 de abril de 2019.
[8] Cfr.
São Gregório de Nisa, De Virginitate 2, 1, 1-11.
[9] María
del Rincón, María Teresa Escobar, Cartas
para um Santo.
[10] Marcelo
Henrique Câmara (1979 – 2008) era um leigo brasileiro, advogado e professor,
conhecido por sua profunda vida de fé e de apostolado no Opus Dei.
Destacou-se por sua alegria, espírito de serviço e testemunho cristão na vida
cotidiana. Está em processo de beatificação.
[11] Maria
Zoê Bellani Lyra Espindola. No caminho da santidade; A vida de Marcelo
Câmara, um promotor de justiça (Portuguese Edition) (p. 55). Cia do
eBook. Edição do Kindle.
[12] Arturo
Álvares Ramírez (1935 – 1992) era um engenheiro químico e professor mexicano,
reconhecido por sua dedicação à docência na Universidade de Guadalajara durante
mais de trinta anos. Destacou-se por sua amabilidade e disponibilidade para com
todos. Seu processo de beatificação teve início em 2021 em Guadalajara.
[13] Javier
Galindo Michel, La vida plena de Arturo Álvarez Ramírez, Minos,
Cidade do México 2018, 71.
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