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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Padre Aquino Júnior: Fraternidade e fome

Pão - fome | Vatican News

Pela terceira vez a Companha da Fraternidade trata do problema da fome, chamando atenção para um dos pecados mais graves de nossa sociedade e convidando os cristãos e o conjunto da sociedade a se empenharem na superação dessa injustiça e desse crime que é um verdadeiro pecado que clama ao Céu.

Padre Francisco de Aquino Júnior - Diocese de Limoeiro do Norte – CE

Desde 1964 a Igreja do Brasil promove durante a quaresma uma Campanha da Fraternidade. A quaresma é um tempo marcado pelo chamado à conversão: mudança de vida (mentalidade, sentimento, atitude), volta ao Senhor, adesão ao seu Evangelho. Essa conversão é tanto pessoal (conversão do coração), quanto social (transformação da sociedade). Para ajudar na vivência do espírito quaresmal, a Igreja convida a intensificar a prática da oração, do jejum e da caridade. E para que a caridade não se reduza a uma ação meramente assistencial, a Igreja do Brasil, retomando a doutrina social da Igreja, promove uma Campanha da Fraternidade que trata de algum problema grave da sociedade que exige mudança e que compromete todas pessoas e instituições.

Pela terceira vez a Companha da Fraternidade trata do problema da fome, chamando atenção para um dos pecados mais graves de nossa sociedade e convidando os cristãos e o conjunto da sociedade a se empenharem na superação dessa injustiça e desse crime que é um verdadeiro pecado que clama ao Céu: “Repartir o pão” (1975); “Pão para quem tem fome” (1985); “Dai-lhes vós mesmos de comer” (2023).

A fome não é um dado natural. Não é fruto do acaso ou do destino. Não é mera consequência de preguiça ou comodismo pessoal. Nem muito menos é vontade ou castigo de Deus. Ela é um produto social. É resultado das tremendas injustiças e desigualdades que caracterizam nossa sociedade e fazem com que uns tenham tanto e outros tenham tão pouco ou quase nada. A situação atual do Povo Yanomami em Roraima é o exemplo mais vivo e dramático da injustiça e desigualdade de nossa sociedade: Fruto do egoísmo e da cobiça de garimpeiros, madeireiros e empresários; fruto de um modelo econômico que sacrifica vidas humanas e toda natureza no altar do deus-mercado/lucro; fruto da indiferença social, da cultura do consumismo e da busca de enriquecimento a qualquer preço; fruto da cumplicidade de políticos e governos genocidas que fecham os olhos diante desses crimes ou até mesmo estimulam essas práticas criminosas.

Mas a situação do povo Yanomami não é um fato isolado. O drama da fome está presente ao longo da história do Brasil. E é a expressão mais cruel e perversa do modelo capitalista de sociedade que se implantou aqui ao logo de mais de 500 anos. Uma série de políticas públicas desenvolvidas na primeira década do século reduziu bastante o drama da fome no Brasil, fazendo com que o país saísse do mapa da fome em 2014. Mas o desmonte progressivo dessas políticas a partir de 2016, agravado com a pandemia da Covid-19, fez com que o Brasil voltasse ao mapa da fome.

Os dados são alarmantes: 33 milhões de pessoas passando fome (15,5% de toda população ou o equivalente à população das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus); mais de 125 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar (58,1% de toda população). Isso é bem mais grave nas regiões Nordeste (21%) e Norte (27%) e na zona rural (18,6%). E atinge sobretudo pessoas pretas ou pardas e famílias chefiadas por mulheres. Em março de 2020 estimava-se cerca de 222 mil pessoas em situação de rua e esse número cresceu assustadoramente na pandemia, como se pode ver em qualquer grande cidade.

Essa situação é muito mais escandalosa e criminosa se considerarmos que não falta alimento no Brasil. Aliás, o país bate recordes anuais na produção para exportação de milho, soja, trigo, carne etc. A fome no Brasil, vale repetir, é fruto da injustiça e da desigualdade social. É um pecado mortal que clama ao céu! E pode ser eliminada com a solidariedade de todos e com vontade e decisão políticas. Como tantas vezes repetiu o presidente Lula “é preciso colocar o rico no imposto de renda e o pobre no orçamento”. Precisamos lutar para que isso se torne realidade.

A ordem de Jesus aos discípulos diante da multidão “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16) ecoa com muita força entre nós, sobretudo nesse tempo quaresmal em que somos chamados à conversão. Certamente, nenhuma pessoa ou comunidade pode resolver o problema. Mas cada um pode compartilhar um pouco do que tem e cada comunidade, grupo, pastoral ou movimento pode contribuir superar essa situação: doando cesta básica; ajudando pessoas a desenvolverem alguma atividade produtiva; promovendo feiras da agricultura familiar e economia solidária; exigindo dos governos a compra dos produtos da agricultura familiar; defendendo os programas de transferência de renda como “bolsa família” e “bolsa catador”, a reforma agrária e políticas públicas de saúde (SUS), educação, moradia...

Isso é questão de humanidade e justiça social!

Isso é questão de fé e critério de salvação ou de condenação!

Padre Francisco de Aquino Júnior  é presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Santa Catarina de Ricci

Santa Catarina de Ricci | A12
13 de fevereiro
Santa Catarina de Ricci

Alexandra, da nobre família Ricci residente em Florença, Itália, nasceu em 1522, época em que se iniciava o transtorno herético de Lutero na Europa. Menina de sete anos, foi entregue à educação das irmãs beneditinas da cidade próxima de Prato, que nela despertaram o gosto pela vida monástica.

De fato, voltando para casa, manteve os costumes do mosteiro, mesmo no luxo, e, mais tarde, apesar do plano dos pais de casá-la com um distinto jovem de Florença, os convenceu a deixá-la abraçar a vida religiosa.

Entrou com muita alegria para o mosteiro dominicano de Pratos, onde, desejando imitar Santa Catarina de Sena, adotou-lhe o primeiro nome. Procurou logo crescer nas virtudes religiosas, cultivando a humildade nos trabalhos mais simples.

Com 25 anos, foi escolhida para mestra das noviças, e, posteriormente, superiora, cargo que ocupou quase ininterruptamente durante os demais 42 anos da sua vida. Nesta função, dirigia as irmãs pelo exemplo, sendo generosa, firme nas atitudes mas doce no trato, com equilíbrio e engenho.

Tomando como exemplo de vida espiritual Jesus Crucificado, desejava ardentemente partilhar os sofrimentos de Jesus no madeiro, sentindo-Lhe as dores da agonia. Recebeu assim dons místicos, de modo que, das quintas-feiras à tarde, quando começava a meditação da Paixão e Morte do Senhor, até as tardes do dia seguinte, entrava em êxtase e coparticipava das Suas dores.

A graça mística não a alienou dos compromissos da vida diária, nem a tornou vaidosa. Tornou-se conselheira espiritual de muitas pessoas, de todo o mundo, sendo consultada em assuntos teológicos e questões espirituais por sacerdotes, bispos e cardeais. Correspondeu-se também com vários Papas – Marcelo II, Clemente VIII, Leão XI, São Pio V –, São Carlos Borromeu e São Filipe Néri.

Escreveu muito sobre temas espirituais, e recomendava o domínio de si, a luta e mortificação dos sentidos para obter a paz e a alegria de espírito. Outras recomendações suas eram a devoção à sagrada Paixão e Morte de Cristo e a docilidade às inspirações de Deus, para que se pudesse então elevar a alma gradativamente, pelas provações, até o pleno abandono à vontade divina.

 Faleceu em 2 de fevereiro de 1590, e sua data litúrgica é o dia 13 deste mês.

Colaboração: José Duarte de Barros Filho

Reflexão:

Enquanto Lutero pregava o afastamento prático da Cruz, Deus nos dava o exemplo da felicidade em Santa Catarina de Ricci, abraçando-a. O Mistério de Cristo e da nossa salvação sempre inclui situações que parecem contraditórias: profunda alegria e grandes sofrimentos, sejam físicos e/ou morais e emocionais. A chave do paradoxo é que a Verdade, isto é, o amor a Deus e ao próximo, leva ao afastamento do que é realmente mau, o pecado, muitas vezes disfarçado nos prazeres mundanos; e une ao que é Bom – “só Deus é Bom” (cf. Mc 10,18) – ou seja, à pureza da alma e da consciência, o que nos dá a paz em Cristo. Santa Catarina de Ricci não morreu martirizada, mas ao longo da vida provou das dores de Jesus na Cruz… muito trabalhou, assumiu grandes responsabilidades, e permaneceu humilde, alegre e doce. Assumir os sofrimentos de Cristo, voluntariamente, implica em afastar os sofrimentos sem sentido e vazios deste mundo: os primeiros têm a recompensa da paz, e a garantia divina de que jamais serão superiores às nossas forças e limitações assistidas pelas graças de Deus, enquanto os segundos só trazem desespero e frustração e não têm limite quanto à desfiguração do próprio ser. O que Deus quer para nós jamais pode nos fazer mal.

Oração:

Ó Deus, que sois o único Bom e o nosso verdadeiro Bem, e que distribuis as vocações e as graças somente por amor e sabedoria infinitas, concedei-nos pela intercessão de Santa Catarina de Ricci a inteligência e a vivência de buscar apenas a Vossa vontade nesta vida, para que com ela e Convosco possamos ser infinitamente felizes na próxima, participando aqui da Cruz para podermos ter a glória da Ressurreição. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, que Convosco vive e reina para sempre, e Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Amém.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Como educar para uma cultura da vida e da acolhida?

Natalia Kirichenko | Shutterstock
Por Francisco Borba Ribeiro Neto

A cultura da morte já está entre nós – e não é só uma questão de aborto ou de eutanásia! Entenda:

Quando comecei a pensar neste artigo, confesso que a primeira ideia de título que me veio foi “A cultura da morte já está entre nós – e não é só uma questão de aborto ou de eutanásia!”. Contudo, pareceu-me alarmista e deprimente demais – ainda que verdadeira. Assim, optei por uma alternativa oposta, pois não há denúncia eficiente sem a possibilidade de uma ação restaurativa ou, ao menos, uma possibilidade de reduzir os danos da realidade denunciada.

O tema surgiu em decorrência do artigo anterior, que se referia tanto à questão do aborto quanto à dos ianomâmis. As comunidades cristãs algumas vezes caem numa perigosa armadilha. Ao longo da Evangelium Vitae, São João Paulo II denunciou o aborto e a eutanásia como os gestos mais emblemáticos da “cultura da morte”, mas isso não quer dizer que sejam as únicas manifestações desse modo de ver o mundo.

Se restringimos a defesa da vida ao combate ao aborto e à eutanásia, frequentemente deixamos de ver outras ameaças (como nesse caso dos ianomâmis), além de não nos darmos conta da raiz desse fenômeno. Talvez até pior, podemos nos deixar instrumentalizar por pessoas que, no fundo, vivem segundo uma cultura da morte e que simplesmente se declaram contra o aborto e a eutanásia para que não vejamos seus outros malfeitos.

A raiz do problema

Francisco denominou essa cultura como aquela “do descarte”. O termo pode parecer menos impactante do que “cultura da morte”, mas permite perceber como o fenômeno é mais amplo (cf. Fratelli tutti, FT 18-21). Poucas pessoas estão dispostas a cometer um assassinato, mas muitas “descartam” a outras, direta ou indiretamente. E descartar uma pessoa pode significar condená-la à morte.

O que está por traz desse fenômeno? Como pessoas boas, bem-intencionadas, podem mergulhar nessa mentalidade? Como nós mesmos podemos mergulhar nessa mentalidade, pois muitas vezes a compartilhamos sem nem sequer nos darmos conta…

Paradoxalmente, a cultura da morte e do descarte nasce de uma idolatria à vida. Vivemos numa sociedade que valoriza o prazer de viver e o poder de quem está vivo acima de tudo. Todos temos como que uma obrigação de sermos felizes, de termos uma vida cheia de prazeres e de êxitos. As redes sociais são o registro mais evidente desta “ditadura do sucesso”: uma coletânea interminável de pessoas sorridentes, bem vestidas, em lugares paradisíacos, comendo pratos deliciosos e assim por diante. É até de “mau gosto” ou “politicamente incorreto” mostrar-se desamparado, num momento de dificuldade ou sofrimento.

Num reflexo evidente dessa postura, quaisquer ameaças ao prazer, quaisquer fontes de sofrimento, quaisquer relações que não são mais agradáveis devem ser eliminadas – mesmo que isso signifique descartar uma pessoa, matar uma criança por nascer, eliminar um doente ou um idoso. Vidas sem prazer, pessoas sem poder não têm a mesma dignidade e os mesmos direitos das demais.

Dito dessa forma, a declaração pode parecer chocante e poucos se identificariam imediatamente com ela. Mas é assim que vivemos frequentemente e nos valemos de mecanismos de invisibilização e justificação para não nos apercebemos da realidade em que estamos imersos.

Uma resposta positiva

O escândalo moral e a culpabilização das ideologias e dos ideólogos podem fazer com que nos sintamos melhor, mas não resolvem o problema. Como nos educarmos para uma cultura da vida e do respeito aos direitos do outro?

Bento XVI, numa entrevista na sua ida ao Brasil, falando sobre o aborto, deu uma primeira resposta essencial: é necessário educar para a beleza da vida e para a esperança. A vida é bela também em seus momentos de dor e de sofrimento. a esperança pode vencer as dificuldades, não ser uma ilusão enganosa, mas sim a força que nos permite construir uma vida melhor – para nós e para os demais.

Assim como a vida é o oposto da morte, a acolhida é o oposto do descarte. Todos sentimos necessidade de ser amados e acolhidos – é essa experiência que nos faz ter consciência da própria dignidade e até de termos esperança no futuro. Uma pessoa se coloca a favor da vida quando descobre a força do amor e da acolhida, quando percebe que os fracassos, o sofrimento e a dor não precisam dar a última palavra sobre a vida.

É uma coisa incrivelmente simples, mas nem sempre é fácil… Tanto é que a cultura da morte e do descarte entrou em nossa sociedade e, de certa forma, se trona cada vez mais hegemônica. Muitas vezes, diante das dificuldades, nós mesmos parecemos perder as esperanças, assumimos atitudes individualistas, nos escandalizamos e nos deixamos determinar por normas formais, até justas, mas desprovidas de Espírito.

A acolhida não elimina a correção, mas a precede. Primeiro acolhemos e depois corrigimos. A esperança e a solidariedade devem sempre complementar a denúncia. A verdade não será adequadamente comunicada sem a experiência da beleza.

Muitas vezes nós mesmos estamos carentes de amor, solidariedade, verdade e beleza, mas Deus nunca se fecha àqueles que O buscam. Viver e comunicar essa positividade cristã ainda é o melhor caminho para enfrentar a cultura da morte e construir a cultura da vida e da acolhida.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

A família ante a ideologia do gênero

A família | Presbíteros

A família ante a ideologia do gênero

CARDEAL ROBERT SARAH

Resumo

O Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, denunciou a ideologia do género e as suas repercussões sobretudo na família, numa conferência proferida na Universidade Católica de Ávila (Espanha), em 24 de Maio de 2016.

 Na impossibilidade de darmos o texto íntegro, apresentamos para os nossos leitores um resumo elaborado pelo Pe. Miguel Falcão.        

O Papa Francisco, durante a sua Viagem apostólica a Manila (Filipinas), não duvidou em denunciar uma “colonização ideológica contra a família” [1], que tenta destrui-la difundindo-se nas sociedades dos países em vias de desenvolvimento. Na sua Exortação apostólica Amoris laetitia, critica fortemente a ideologia do género, que “nega a diferença e a reciprocidade natural entre um homem e uma mulher. Ela antevê uma sociedade sem diferença de sexo e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher” [2].

O próprio Autor, no livro Deus ou nada [3], denunciou com vigor a teoria do género como um ataque frontal à família e a sua vontade de a destruir.

Génese da ideologia do género [4]

A teoria do gender (género) nasceu no ambiente das ciências humanas de inspiração freudiana.

Nos anos 1990, Judith Butler – que continua a ser a líder da revolução do «género» – declarou que os termos «sexo» e «género» já não são substantivos. Isso significa que o indivíduo, homem ou mulher, será o que queira ser.

Aqui pode ver-se “a mão do diabo”. Satanás é homicida desde o princípio [5]. Satanás quer matar a vida divina em nós, quer fazer de nós «zumbis», indivíduos sem alma e dotados de um corpo submetido a manipulações genéticas. Quer submeter-nos a ele, cortando o «cordão umbilical» que nos une a Deus e dando-nos a ilusão de que somos os nossos próprios deuses [6].

A pseudolibertação do homem inscreve-se na história dos três últimos séculos, sendo a ideologia do género o seu último avatar. A emancipação de Deus Pai produziu-se há muito tempo, quando as democracias ocidentais se formaram num contexto deísta. Os mestres do pensamento racionalista provocaram a Revolução Francesa, apresentada como a génese da libertação do homem em relação ao Deus dos cristãos e, em consequência, em relação à Igreja e ao seu Magistério. Para os racionalistas, Deus é o Arquiteto Supremo do Universo que se desinteressa totalmente das suas criaturas. O deísmo dos enciclopedistas matou a paternidade de Deus, cortou o «cordão umbilical».

Se Deus deixa de ser Pai, o homem deixa de ser filho, pessoa que recebe tudo do Pai. Passa a ser simplesmente indivíduo, entregue a si próprio, à sua liberdade e à sua razão.

Entregue à sua razão, o indivíduo perde pouco a pouco contacto com a Fonte, a paternidade de Deus. É certo que vários documentos internacionais – Cartas da Sociedade das Nações e das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, preâmbulos das Constituições – ainda refletem normas de direito natural, isto é, conformes à natureza humana criada por Deus; mas cada vez mais o direito que rege os Estados ocidentais se torna positivista, baseado exclusivamente na vontade da maioria dos cidadãos, sem nenhum limite natural. Assim, por exemplo, para poder legalizar o aborto, nega-se que o embrião humano seja uma pessoa desde a sua concepção ou diz-se que é apenas uma pessoa potencial.

Devido a este divórcio entre indivíduo e pessoa, o Ocidente – e com ele o mundo inteiro pelas conhecidas vias da colonização e depois da dominação econômico-financeira dos países em vias de desenvolvimento – caiu no individualismo e nas ideologias. Portanto, com a morte de Deus, o deísmo levou a civilização ocidental à morte do homem como pessoa, ao assassinato do pai, ao individualismo sem fraternidade, que culminou no movimento libertário de Maio de 1968 em França: a humanidade livre de normas.

Entretanto, foi-se preparando o assassinato da mãe, com o feminismo radical que opõe os direitos das mulheres, a sua liberdade e a sua igualdade, à identidade feminina no marco da complementaridade dos sexos e à maternidade. Margaret Sanger (1879-1966), figura emblemática do feminismo ocidental, queria o acesso livre e gratuito à contracepção para “libertar a mulher da escravidão da reprodução”. Assim, a partir de 1970, se sufocou o sentido da feminilidade e da maternidade na cultura ocidental.

No final do séc. XX, o pai, a mãe, os esposos, o filho e a filha, todos perderam o estatuto próprio na família. Atualmente, tornou-se um conceito abstrato e instável, sujeito a interpretações diversas e contraditórias, de modo a falar-se de “famílias”.

Este longo processo revolucionário, que vai da morte de Deus Pai no séc. XVIII à morte do homem convertido em simples indivíduo no final do séc. XX, conduz diretamente à ideologia do género. Com efeito, este indivíduo desenraizado torna-se apenas um consumidor com quem a Internet faz negócio a partir de estimativas estatísticas dos seus desejos. Este vazio permitiu a aceitação da revolução do género. 

A ideologia do género     

Para a ideologia do género não existem a masculinidade e a feminilidade com a complementaridade dos sexos, nem a paternidade e maternidade, nem o matrimónio entre um homem e uma mulher, nem portanto a família com a vocação educativa do pai e da mãe. Tudo isto seriam construções sociais elaboradas ao longo dos séculos, em particular sob a pressão das religiões, para impedir o acesso individual à liberdade e igualdade dos cidadãos. São estereótipos discriminatórios de que seria necessário libertar-se (daí o processo revolucionário) e para isso «desconstruir» e demolir por todos os meios (financeiros, políticos, culturais, educativos e legislativos) [7].

Isto significa que, se o indivíduo não recebe o seu género, mas ele está em permanente construção, a consequência é a indiferenciação dos sexos.

Um exemplo de «desconstrução» da linguagem devida à ideologia do género:

– em lugar de esposos ou de marido e mulher, fala-se de parceiros;

– em lugar de maternidadedireito da mulher de dispor livremente do seu corpo;

– em lugar de matrimónio estável entre um homem e uma mulher, amor livre hétero ou homossexual sem compromissos;

– em lugar de família, variedade de famílias;

– em lugar de procriaçãoreprodução.

A teoria do género entrou já no modo de viver atual e continua o seu caminho de «desconstrução», isto é, de destruição da família e da sociedade, perante uma indiferença quase geral. Era preciso tomar consciência urgentemente para poder resistir, qualquer que seja o preço a pagar: da troça à marginalização, do cárcere ao martírio. O veneno já está inoculado, quer ao nível das nações, quer ao nível das instância internacionais, das quais a mais influente são as Nações Unidas (ONU).

A difusão da ideologia do género

Ao nível dos Estados, a ideologia do género é promovida pela Organização Mundial da Saúde (ONU) e por numerosas organizações não-governamentais (ONG), em particular instituições educativas e sanitárias com sede em Estados ocidentais.

Qualquer país que rejeita unir-se à ideologia do género é geralmente sancionado, por exemplo em relação a ajudas para o desenvolvimento. Esta autêntica colonização afeta a todo o continente africano, em particular a África subsaariana, e também a Ásia e a América Latina. Os países africanos que tentam resistir à vaga homossexual, tendem a abrir as portas à perspectiva do género na sua acepção feminista, sem repararem que isso levará imediatamente à homossexualidade legalizada.

Nas instâncias internacionais que inspiram a legislação e o comportamento dos diversos Estados, a recepção da teoria do género representa uma ruptura com a linguagem dos instrumentos jurídicos vinculantes adoptados antes dos anos 90. Os documentos anteriores da ONU, por exemplo, ao abordar questões relativas à igualdade dos direitos, à família e à educação, referiam-se aos «homens e mulheres», aos «esposos» ou «marido e mulher», ao «matrimónio», à «família» (em singular).

A mudança começou a dar-se na altura da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 4-15 de Setembro de 1995), marcada pela intervenção notável de uma feminista muito célebre, Hillary Clinton, então Primeira-dama dos EUA, que declarou surpreendentemente: «os direitos das mulheres são direitos do homem». Apesar da oposição de países como Estados Unidos e França, a Santa Sé afirmou alto e bom som os seus pontos de desacordo presentes no documento preparatório da Conferência. O «género» foi metido às escondidas na Plataforma de Ação de Pequim, mas não foi explicitamente definido.

Posteriormente, os organismos da ONU dedicaram-se a definir o «género». Estas definições difusas levaram tempo, permitindo interpretações cada vez mais comprometidas. A mais notável é a da ONU Mulheres: o «género» corresponde “aos atributos sociais e às oportunidades associadas ao facto de ser homem ou mulher e às relações entre mulheres e homens, assim como às relações entre mulheres e às relações entre homens”, acrescentando que “esses atributos, oportunidades e relações são específicas de certos contextos e épocas, e sujeitos a mudança”. ONU Mulheres faz pressão para que «a igualdade de género e os direitos das mulheres» se integrem nos tratados mundiais. E conclui: “O marco para o desenvolvimento depois de 2015 deve reconhecer que a falta de controle das mulheres e das adolescentes sobre o seu corpo e a sua sexualidade é constitui uma enorme violação dos seus direitos”.

A ditadura pela subversão ideológica

Para a ideologia do género, a família converteu-se num lugar onde se negoceia o poder; ela já não é a célula básica da sociedade, e muito menos um lugar de amor e de comunhão interpessoal. Sendo a família uma fonte de desigualdades, é preciso mudar as relações de poder entre homens e mulheres, entre rapazes e raparigas, desde a escola primária. Em muitos países ocidentais, estes objetivos já foram conseguidos. A teoria do género pretende abalar as “estruturas coercitivas” (políticas, culturais e religiosas) que atribuem papéis estereotipados às mulheres e aos homens, restringindo as suas opções de vida, e rejeitando as opções homossexuais. Encontramos aqui os dois afluentes envenenados do rio chamado «gender»: o feminismo e os grupos homossexuais.

A ideologia do género radica no relativismo, segundo o qual tudo é possível e aceitável. Bento XVI e agora o Papa Francisco disseram que as nossas sociedades caminham para uma ditadura do relativismo, que não reconhece senão o próprio ego e os seus desejos. Esta ideologia, que penetrou na sociedade, mete-se na Igreja por fora e por dentro. Há grupos de pressão («lobbies») que querem impor a ideologia do género e o relativismo moral. Se a família está em perigo, é a sociedade que está em perigo, e também a própria fé. Com efeito, os bispos (e os presbíteros, seus cooperadores) estão chamados a defender a santidade do matrimónio e da família. Se fracassam na sua missão, o futuro da humanidade está em grave perigo, porque a fé está sempre ameaçada de dois modos: ou pela vontade de mudar a doutrina imutável, ou dando mau exemplo.

O bom combate pela família

Nos nossos dias assistimos muito especialmente a um combate frontal e violento entre «o espírito do mundo» e «o Espírito Santo». Nos primeiros tempos da Igreja, por exemplo em Roma, o contexto cultural era bastante parecido ao que conhecemos hoje, com a banalização do adultério, da poligamia, da homossexualidade, do aborto… Os cristãos dessa época não aceitaram compromissos, mas permaneceram fiéis ao Evangelho, mesmo quando o seu testemunho ia contracorrente da cultura dominante. Graças ao seu exemplo, foram o fermento na massa pagã da época [8] e pouco a pouco viram a conversão de povos inteiros. Assim foi como a Europa se tornou cristã e viu florescer uma civilização marcada pelo cristianismo, onde o matrimónio, em particular a dignidade da mulher, e a família, com o respeito pelos filhos desde a sua concepção, foram evidenciados.

Ora, durante os dois recentes Sínodos sobre a família, de 2014 e 2015, num contexto social e cultural muito parecido ao da Roma antiga, pelo menos no Ocidente, a tentação do compromisso com o «espírito do mundo» surgiu como uma proposta teológico-pastoral errónea: adaptar o ensinamento da Igreja às realidades do mundo contemporâneo, ou se se prefere, adaptar a doutrina da Igreja aos casos particulares que caem na pastoral. O deslumbramento por este modelo, retransmitido pelos meios de comunicação complacentes, mesmo católicos, conquistou certo número de bispos, um dos quais chegou a qualificar este paradigma como «fonte de revelação»!

Conclusão

São João Paulo II disse muitas vezes que “o futuro da humanidade passa pela família” [9]. Se a batalha final entre Deus e o reino de Satanás se trava no matrimónio e na família, é preciso urgentemente empenharmo-nos nela, pois dela depende o futuro da sociedade humana, e sabemos que a família, fundada no matrimónio de amor, monógamo, livre, fiel e indissolúvel, é a sua célula básica.

Neste ano jubilar da Misericórdia, podemos encontrar refúgio, como Maria, Mãe do Redentor e Mãe Nossa, no Coração de Jesus, no seu Sagrado Coração traspassado por amor a nós.


[1] FRANCISCO, Encontro Mundial das Famílias em Manila, 16-I-2015.

[2] FRANCISCO, Exortação apostólica pós-sinodal “Amoris laetitia”, 19-III-2016, n. 56.

[3] CARD. ROBERT SARAH, Deus ou nada, recentemente editado em Portugal (2016).

[4] Cf. MARGUERITE A. PETEERS, La perspective du genre: origines idéologiques lointaines d’une norme prioritaire de la gouvernance mondiale, 24-V-2014.

[5] Cf. Jo 8, 44.

[6] Cf. Gen 3, 5: «Sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”.

[7] Cf. MARGUERITE A. PETEERS, la définition des nouveaux concepts de base pour le mariage et la famille, 7-XI-2014.

[8] Cf. Mt 13, 33.

[9] Cf. S. JOÃO PAULO II, Familiaris consortio

Fonte: https://www.cliturgica.org/portal/artigo.php?id=2436

Reflexão para o 6º Domingo do Tempo Comum (A)

Evangelho de Domingo | Vatican News

No Evangelho vemos a proposta sobre a justiça do Reino dos Céus. Como vimos no domingo passado, somos chamados a sinalizar a aliança de sal, a perene, que não se corrompe. Essa aliança de Deus com cada um dos seres humanos é alimentada por todos nós batizados, que assumimos o projeto do Senhor.

Padre Cesar Augusto, SJ - Vatican News

Deus nos criou livres e depende de nós a escolha que nos fará felizes. O que dependia do Senhor já foi feito. Ele nos criou à sua imagem e semelhança, ou seja, livres, tendo no íntimo de nosso ser buscar o bem e evitar o mal. Somos feitos pelo Sumo Bem, evidentemente, só poderemos estar voltados para a prática do bem. Contudo o Senhor, exatamente porque nos criou à sua imagem e semelhança, nos fez livres. Como diz a leitura do Livro do Eclesiástico “Diante de ti, Ele colocou o fogo e a água; para o que quiseres, tu podes estender a mão. Diante do homem estão a vida e a morte, o bem e o mal; ele receberá aquilo que preferir”. Consequentemente, cada um de nós é sujeito de sua felicidade ou desgraça, à medida que tiver feito escolhas a favor da vida ou da morte.

Evidentemente, tendo herdado o pecado original, sabemos também que a nossa natural inclinação ao bem foi atingida, de modo que, muitas vezes, como nos diz São Paulo, “não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”.

No Evangelho vemos a proposta sobre a justiça do Reino dos Céus. Como vimos no domingo passado, somos chamados a sinalizar a aliança de sal, a perene, que não se corrompe. Essa aliança de Deus com cada um dos seres humanos é alimentada por todos nós batizados, que assumimos o projeto do Senhor. Também faz parte de nossa opção aceitarmos essa vocação dada por Jesus, de colaborarmos com Deus na construção da nova sociedade, do Reino de Justiça.

Por fim, a Primeira Carta aos Coríntios nos fala que a perfeição está na sabedoria, mas não na sabedoria deste mundo, muito menos na de seus poderosos, pois ela está voltada para a morte, para a destruição. A Sabedoria de Deus, ao contrário, seu plano de amor em benefício dos homens, está escondida e foi destinada para nossa glória, é o projeto de Deus, sua opção pelos simples, pelos marginalizados. Os poderosos não a conheceram porque, mantendo sua opção, condenaram Jesus à morte e o crucificaram. Contudo, “o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram nem os ouvidos ouviram nem coração algum jamais pressentiu” escreve São Paulo.

Concluindo, a liturgia deste domingo nos exorta a mantermos nossa missão, nossa vocação optando livremente pelo anúncio do projeto de Deus, de anunciar a construção de uma nova sociedade onde a sabedoria de Deus triunfará e os marginalizados deste mundo a conhecerão. Aliás, à medida em que optamos por fazer a vontade de Deus, já desfrutamos no próprio ato de fazer o bem, a alegria e a felicidade que almejamos.

Menina de 7 anos protege o irmão sob os escombros do terremoto na Síria

Facebook / Assyro-chaldéens, l'histoire continue
Mariam, 7 anos, e seu irmãozinho sob os escombros
Por Aleteia

As crianças permaneceram nesta posição por 17 horas, até a chegada do resgate.

Depois do terremoto que atingiu a Síria e a Turquia em 6 de fevereiro, alguns resgates são vislumbres de esperança em meio a mais de 16.000 mortos.

Uma bebê recém-nascida retirada dos escombros emocionou as redes sociais. Agora é a história de duas crianças resgatadas das ruínas de um prédio na Síria que está comovendo o mundo. A cidade onde ocorreu esse resgate é Harem, a cerca de 60 quilômetros de Aleppo. 

Uma garotinha de cerca de sete anos, chamada Mariam, ficou enterrada por várias horas sob os escombros com seu irmãozinho. Na foto, podemos ver as duas crianças pequenas presas entre enormes blocos de concreto. A menina posicionou o braço acima da cabeça do irmão mais novo para protegê-lo até que fossem resgatados.

Ambos foram socorridos com segurança. Mohamad Safa, líder de uma ONG que trabalha com a ONU, compartilhou esta foto no Twitter e fez o seguinte comentário: “A menina de 7 anos que manteve a mão na cabeça do irmãozinho para protegê-lo enquanto eles estavam sob os escombros por 17 horas conseguiu escapar com segurança. Não vejo ninguém compartilhando. Se ela estivesse morta, todos compartilhariam! Compartilhe positividade…”

Um terremoto mortal 

Embora o terremoto tenha ocorrido há 3 dias, as chances de sobrevivência para aqueles que ainda estão presos sob os escombros estão diminuindo. Os socorristas enviados ao local continuam as buscas e ainda conseguem evacuar os moradores. A par das equipas enviadas pela Turquia e pela Síria, vários países do mundo decidiram enviar reforços.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

Dom Catelan: A herança litúrgica do Papa Bento XVI

Papa Bento XVI  (ANSA) 

A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000).

Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira - bispo auxiliar do Rio de Janeiro

A liturgia é um dos temas mais caros ao Papa Bento XVI. Ele dedicou-lhe muita atenção e reflexão, tanto em sua produção teológica pessoal, como em seu Magistério Pontifício.

A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000). Na coleção que reúne sua produção teológica, o volume 11 recolhe diversos artigos, conferências, apresentações e homilias sobre o tema. Na língua original soma 757 páginas (Herder, 2008), na tradução brasileira (Ed. CNBB, 2ª edição revisada, 2019) soma 751).

O texto em que ele desenvolve seu pensamento de modo mais sistemático e completo é do ano 2000. O título da obra se assemelha muito ao do livro de um de seus autores favoritos, Romano Guardini, O Espírito da Liturgia, publicado em 1918. Com isso ele indica que pretende retomar aspectos de uma corrente do Movimento Litúrgico que não receberam a mesma atenção no caminho da liturgia ao longo do Século XX. A história da liturgia e de seus principais elementos é apresentada na perspectiva da continuidade fundamental e o que se assemelha a rupturas ele demonstra serem evoluções necessárias do fundamento posto por Deus desde o ato criador do cosmos. Essa perspectiva se manifesta já na relação entre o Antigo e o Novo Testamento.

Nesse libro, o estudo dos fundamentos bíblicos da liturgia recebe atenção primorosa. Dialoga com os autores das principais pesquisas e as passa em resenha para discutir as ideias principais ou mais difundidas. Dá grande atenção ao desenvolvimento da liturgia ao longo da história da Igreja, em perspectiva de crescimento orgânico, vital, sem rupturas bruscas. Destaca-se sua exposição sobre o significado da participação ativa de todos os fiéis nas celebrações: trata-se não simplesmente de fazer ou dizer coisas, mas de tomar parte na ação fundamental, que é realizada por Cristo através de sua Igreja. Os fiéis não são meros expectadores, tomam realmente parte no ato de culto, suas ações exteriores são extremamente importantes. Bastaria, para compreender a importância que J. Ratzinger atribui a elas, a leitura do capítulo quarto desse livro, a respeito da forma litúrgica, onde trata do significado espiritual do rito, do corpo com suas posições e gestos, da voz, da veste e da matéria que entra no ato de culto.

Em seu Magistério Pontifício, destacam-se duas exortações apostólicas e uma carta apostólica. Os textos maiores, as exortações apostólicas, são: Sacramentum Caritatis (2007) e Verbum Domini (2010). No primeiro, a opção por apresentar a Eucaristia a partir da fé, da celebração e da vida, assume a perspectiva mistagógica. Essa perspectiva caracteriza grande parte de suas homilias sobre temas litúrgicos. Destacam-se as proferidas por ocasião das celebrações anuais da Missa Crismal (manhã de Quinta-Feira Santa), dos Batismos celebrados na Festa do Batismo do Senhor e das Ordenações. Sua compreensão da mistagogia se encontra no magnífico número 64 dessa exortação. Ele considera que essa é a forma fundamental da formação liturgia, formar pela liturgia mais que para ela (embora valorize muito também essa modalidade). Não menos importante é a noção de culto espiritual que se encontra no número 70, que exprime como o mistério crido e celebrado se torna “princípio da vida nova” e “forma da existência cristã”.

A exortação apostólica Verbum Domini trata da Palavra de Deus de modo geral, mas dedica os números 52 a 71 à Palavra de Deus na liturgia. Entre a compreensão do significado teológico da Palavra de Deus, sua difusão pastoral e a atuação da Igreja no mundo consequente à fé, está, como a fazer conexão e transição, a Palavra na celebração. Aí se destaca a noção de sacramentalidade da Palavra (n. 56). Primeira vez que essa expressão ocorre em um documento pontifício, ocasionou muitos estudos e publicações. Em analogia (comparação que leva em conta semelhanças e diferenças) com a encarnação do Filho de Deus e com os sacramentos, ele expõe a eficácia da Palavra, que produz em nós o que significa. Destaca-se a analogia com a presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia, pois em sua Palavra ele está realmente presente e se dirige a nós, o que tem consequências para a vida espiritual dos fiéis e para a vida pastoral da Igreja.

Por fim, a carta apostólica (motu próprioSummorum Pontificum (2007), trata do uso da liturgia romana anterior à reforma litúrgica de 1970. Levando em conta o impulso da liturgia para a vida espiritual, para o fortalecimento da religião e da piedade do povo cristão, dá continuidade a ações de seu predecessor, São João Paulo II, que permitiram cada vez mais ampla e facilmente o uso da edição do Missal de 1962. Na introdução aos 12 artigos, demonstra que a coexistência dos dois Missais e dos dois rituais (o da forma típica reformada e o anterior, compreendido como forma extraordinária) não fere a concordância que deve haver entre as Igrejas particulares e a Igreja universal quanto à doutrina da fé, aos sinais sacramentais e aos usos universalmente aceitos. Também não põe em risco a correspondência entre a regra da oração e a regra da fé na Igreja (Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed. típica, n. 397). Isso porque na liturgia há crescimento e progresso, mas na continuidade, sem rupturas. Juntamente com a carta apostólica, escreve uma Carta aos Bispos no qual pede generosidade com relação aos grupos que solicitam celebrações na forma extraordinária como também prudência no acompanhamento, pois “não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados à atitude dos fiéis ligados à antiga tradição latina” (Carta).

Talvez mais até do que o aspecto doutrinal do Magistério litúrgico de Bento XVI, sua forma de celebrar e de pregar durante as celebrações sejam o aspecto mais precioso de seu legado. Ele viveu o que ensinou: “a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada” (Sacramentum Veritatis, 64).

Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira

Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro

Membro da Comissão Teológica Internacional

Professor da PUC-Rio

Secretário da Sociedade Ratzinger Brasil

Caminhando para a Páscoa

Caminhando para a Páscoa | arquicascavel

CAMINHANDO PARA A PÁSCOA

Dom Adelar Baruffi
Arcebispo de Cascavel (PR)

Na Quarta-feira de Cinzas, com a celebração e imposição das cinzas na cabeça dos cristãos católicos, iniciamos a nossa preparação para a Páscoa. As festas mais importantes do cristianismo sempre trazem consigo a ideia de que temos que prepará-las, com um razoável tempo de antecipação. Recordemos que o Advento, do qual preparamos o Natal, é de quatro semanas. Nossa Quaresma tem a duração de quarenta dias, até a celebração da celebração do lava-pés, na Quinta-Feira da Semana Santa. O modo brasileiro de celebrar a Quaresma, nos convida a imitar a misericórdia do Pai repartindo o pão com os necessitados, fortificando nosso espírito fraterno, conforme nos diz a Campanha da Fraternidade.

Na Igreja católica, a Quaresma tem o significado de uma disposição, quase um caminhar para o encontro de Cristo que dá sua vida por nós. Quando chegarmos à semana santa, devemos estar bem preparados, com nossa confissão feita ou por fazer naqueles dias.  A Páscoa, a mais importante festa do calendário litúrgico cristão, celebra a Ressurreição de Jesus, a base principal da fé cristã. Neste tempo, os fiéis são convidados a fazerem um confronto especial entre suas vidas e a mensagem cristã expressa nos Evangelhos. Esse confronto deve levar o cristão a aprofundar sua compreensão da Palavra de Deus e a intensificar a prática dos princípios essenciais de sua fé.

Por volta do ano 350, a Igreja decidiu aumentar o tempo de preparação para a Páscoa, que era de três dias, que permaneceram como o Tríduo Sagrado da Semana Santa: Quinta feira Santa, Sexta-feira Santa (Paixão) e Sábado Santo. A preparação para a Páscoa passou, então, a ter 40 dias. Embora na quinta-feira santa, Sexta-Feira Santa e sábado santo são os três dias de muita espiritualidade, com o Cristo morto e, depois, vivo diante de nós. Não podemos faltar em nenhum destes dias em nossa celebração na comunidade.

O principal do tempo da Quaresma é a “conversão”. Sempre atual. Tempo de escuta da Palavra de Deus, de preparação e de memória do Batismo, de reconciliação com Deus e com os irmãos, de recurso mais frequente à oração, o jejum e a esmola. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “a oração, o jejum e a esmola… expressam a conversão em relação a si mesmo, a Deus e aos outros” (CIC 1434). Foi o próprio Jesus quem falou deles, qual sentimento básico para quem quer viver a fé na sua concretude, do dia a dia. Jesus fala da oração, do jejum e da caridade e do modo como devemos fazer e o que evitar (cf. Mt 6, 1-6.16-18). A Campanha da Fraternidade, com sua longa história, vem nos ajudar nisso. A nossa conversão deve ter um olhar mais radical, mais social, mais visível. Neste ano nos convida a refletir sobre a fome e a fraternidade.

Todos os cristãos batizados devem estar neste tempo nas celebrações. Especialmente este ano A, quando os evangelhos são escolhidos para nos conduzir (embora possam também ser tomados nos outros anos), devemos nos colocar no caminho de quem olha para Jerusalém e vê lá a nossa fé que se configura e molda. É para lá, para Jerusalém, que caminhamos como católicos.

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF