A FÉ QUE TOCA O CORAÇÃO
03/10/2025
Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
Os apóstolos pedem com simplicidade que lhes aumente a fé,
em Lc 17,5. Um pedido que nasceu no contexto de uma exigência concreta. Jesus
acabava de falar sobre escândalos e sobre perdoar repetidas vezes no mesmo dia.
Eles percebem que, sem um dom do alto, não conseguiriam viver esse compasso da
misericórdia.
A resposta do Senhor desloca o eixo. Se tiverdes fé como um
grão de mostarda, direis à amoreira de raízes profundas que se arranque e se
plante no mar, e ela obedecerá.
O acento não recai sobre uma medida maior, mas sobre a vida
contida naquele mínimo. O grão é pequeno, porém vivo, a fé também. Não é um
esforço psicológico que inflamos com a vontade, mas virtude que Deus infunde
para nos ligar a Ele e tornar possível muitas coisas.
Jesus, como usual, usa imagens que falam à memória do povo.
A amoreira é árvore de vida longa e raízes tenazes, plantá-la no mar é algo que
ninguém consegue. É uma imagem que toca aquilo que mais nos amarra por dentro:
rancores antigos, amarguras que dominam a alma, estruturas de pecado e de
costume. É nesse ponto que o ensino sobre a fé encontra o pedido dos apóstolos.
Para perdoar setenta vezes, para não devolver na mesma moeda, para começar de
novo com o irmão que fere, é preciso um princípio de vida que não nasce de
nós.
A fé é esse princípio. Vem de Deus, volta a Deus e, no
caminho, dá ao nosso agir uma perseverança que excede o cálculo.
O texto de Lucas sugere ainda outra ligação. Logo depois do
grão de mostarda, Jesus conta a pequena parábola do servo que cumpre o seu
trabalho e, ao final, diz apenas que fez o seu serviço. Há quem leia este texto
com dureza, mas eu o vejo como uma pedagogia da vida espiritual. A fé não forja
pessoas que exigem bônus, forma discípulos que, por estarem unidos ao Senhor,
perseveram. A virtude teologal da fé dá ao coração luz para crer, mas também
forma para perseverança. Ela opera escondida, como semente em terra boa.
Sustenta gestos repetidos, discretos e custosos. Ensina a atravessar dias
longos com caridade persistente. É aqui que a Escritura conversa com a
literatura e que Victor Hugo se aproxima do Evangelho.
Em Os Miseráveis, a vida de Jean Valjean é
tocada pela graça quando o bispo Myriel lhe oferece pão, abrigo e lhe olhou com
fé para selar o perdão. O condenado de alma endurecida aprendeu a respirar de
novo. O bem, porém, não lhe chega como facilidade. Vem como tarefa diária.
Depois do encontro com alguém que redirecionou o seu peso
interior, Valjean persevera quando decide tornar-se Monsieur Madeleine e criar
trabalho para outros. Persevera quando se inclina sobre Fantine e carrega os
custos das escolhas malfeitas de toda uma cidade. Persevera quando resgata
Cosette e, depois, quando a protege do olhar severo da lei. Persevera quando
desce o esgoto de Paris com o corpo de Marius nos braços. Nada disso é
espetáculo. É mais como o grão de mostarda que, no íntimo, empurra as raízes
para baixo para subir em busca de luz.
Hugo constrói em Valjean um retrato moral que a teologia
reconhece. A graça operante de Deus o alcança e a graça cooperante sustenta as
suas decisões seguintes. Fé e caridade entram em regime de aliança. A fé vê e
confia. A caridade age e se entrega. Um homem comum, ferido por dentro, passa a
insistir no bem quando ninguém o vê e quando tudo parecia perdido.
Javert, sua antítese, representa a rigidez da letra que não
se converte. Valjean encarna a paciência do justo que aprendeu com a
misericórdia a fazer justiça de outro modo. Não se trata de opor justiça e
misericórdia, mas de mostrar como a fé teologal ordena o coração para Deus e,
ao fazê-lo, dá ao justo um horizonte que a norma sozinha não
alcança.
A exegese de Lucas ajuda a compreender por que o romance nos
comove. Quando os apóstolos pedem aumento de fé, usam um verbo que exprime
adição. Jesus devolve um grão, não um monte. Indica que o essencial não é
medir, mas viver. O grão guarda um dinamismo que não se fabrica. A semente não
se convence a germinar por decreto, ela recebe e, recebendo, responde. Assim é
a fé. Deus a dá, nós a acolhemos e, acolhendo, descobrimos que é possível
recomeçar, suportar, entregar, perdoar.
A amoreira que parecia impossível de arrancar começa a
ceder.
A parábola da amoreira plantada no mar ganha então um rosto.
Um homem, num mundo duro, escolhe não odiar quem o perseguiu. Escolhe abrigar
uma criança. Escolhe calar o que traria louros fáceis. Escolhe caminhar na
noite segurando o peso de outro corpo. Ninguém aplaude nos becos de Paris. Mas
Deus vê e fortalece. Essa persistência não é teimosia moral. É a peça interior
de uma vida visitada por Deus. É aquilo que a Igreja chama virtude teologal.
Vem de Deus. Aponta para Deus. Suporta tudo porque participa da fidelidade de
Deus.
Talvez seja essa a lição mais urgente de Lucas. Pedir fé é
confessar que não podemos por nós mesmos. Receber a fé é aprender que Deus faz
crescer o que semeia. Perseverar na fé é descobrir que o bem não se sustenta
apenas com argumentos. Sustenta-se com uma vida unida ao Senhor, mesmo quando
falhamos e a noite pesa. No romance, a cidade muda devagar ao redor de Valjean.
No Evangelho, o mundo muda devagar ao redor de quem perdoa de novo. O mar
permanece mar. Mas, aqui e ali, árvores antigas começam a surgir.
No fim, a fé como virtude teologal nos devolve uma verdade
simples e alta. O que nos faz permanecer não é o tamanho da nossa força, é a
vida de Deus em nós. O grão é pequeno, o seu impulso, não. Quando essa vida
toca um indivíduo, ele não se limita a evitar o mal, mas aprende a fazer o bem
com paciência. Aprende a recomeçar, aprende a não cansar de perdoar. É assim
que a amoreira se levanta das entranhas da terra e vai repousar nas mãos de
Deus. É assim que a cidade dos homens ganha frestas de luz. É assim que a fé
cumpre sua promessa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário