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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

A fé que toca o coração

O justo viverá pela fé (Grupo Ruah)

A FÉ QUE TOCA O CORAÇÃO

03/10/2025

Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO) 

Os apóstolos pedem com simplicidade que lhes aumente a fé, em Lc 17,5. Um pedido que nasceu no contexto de uma exigência concreta. Jesus acabava de falar sobre escândalos e sobre perdoar repetidas vezes no mesmo dia. Eles percebem que, sem um dom do alto, não conseguiriam viver esse compasso da misericórdia. 

A resposta do Senhor desloca o eixo. Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis à amoreira de raízes profundas que se arranque e se plante no mar, e ela obedecerá.  

O acento não recai sobre uma medida maior, mas sobre a vida contida naquele mínimo. O grão é pequeno, porém vivo, a fé também. Não é um esforço psicológico que inflamos com a vontade, mas virtude que Deus infunde para nos ligar a Ele e tornar possível muitas coisas. 

Jesus, como usual, usa imagens que falam à memória do povo. A amoreira é árvore de vida longa e raízes tenazes, plantá-la no mar é algo que ninguém consegue. É uma imagem que toca aquilo que mais nos amarra por dentro: rancores antigos, amarguras que dominam a alma, estruturas de pecado e de costume. É nesse ponto que o ensino sobre a fé encontra o pedido dos apóstolos. Para perdoar setenta vezes, para não devolver na mesma moeda, para começar de novo com o irmão que fere, é preciso um princípio de vida que não nasce de nós. 

A fé é esse princípio. Vem de Deus, volta a Deus e, no caminho, dá ao nosso agir uma perseverança que excede o cálculo. 

O texto de Lucas sugere ainda outra ligação. Logo depois do grão de mostarda, Jesus conta a pequena parábola do servo que cumpre o seu trabalho e, ao final, diz apenas que fez o seu serviço. Há quem leia este texto com dureza, mas eu o vejo como uma pedagogia da vida espiritual. A fé não forja pessoas que exigem bônus, forma discípulos que, por estarem unidos ao Senhor, perseveram. A virtude teologal da fé dá ao coração luz para crer, mas também forma para perseverança. Ela opera escondida, como semente em terra boa. Sustenta gestos repetidos, discretos e custosos. Ensina a atravessar dias longos com caridade persistente. É aqui que a Escritura conversa com a literatura e que Victor Hugo se aproxima do Evangelho. 

Em Os Miseráveis, a vida de Jean Valjean é tocada pela graça quando o bispo Myriel lhe oferece pão, abrigo e lhe olhou com fé para selar o perdão. O condenado de alma endurecida aprendeu a respirar de novo. O bem, porém, não lhe chega como facilidade. Vem como tarefa diária.  

Depois do encontro com alguém que redirecionou o seu peso interior, Valjean persevera quando decide tornar-se Monsieur Madeleine e criar trabalho para outros. Persevera quando se inclina sobre Fantine e carrega os custos das escolhas malfeitas de toda uma cidade. Persevera quando resgata Cosette e, depois, quando a protege do olhar severo da lei. Persevera quando desce o esgoto de Paris com o corpo de Marius nos braços. Nada disso é espetáculo. É mais como o grão de mostarda que, no íntimo, empurra as raízes para baixo para subir em busca de luz. 

Hugo constrói em Valjean um retrato moral que a teologia reconhece. A graça operante de Deus o alcança e a graça cooperante sustenta as suas decisões seguintes. Fé e caridade entram em regime de aliança. A fé vê e confia. A caridade age e se entrega. Um homem comum, ferido por dentro, passa a insistir no bem quando ninguém o vê e quando tudo parecia perdido. 

Javert, sua antítese, representa a rigidez da letra que não se converte. Valjean encarna a paciência do justo que aprendeu com a misericórdia a fazer justiça de outro modo. Não se trata de opor justiça e misericórdia, mas de mostrar como a fé teologal ordena o coração para Deus e, ao fazê-lo, dá ao justo um horizonte que a norma sozinha não alcança.  

A exegese de Lucas ajuda a compreender por que o romance nos comove. Quando os apóstolos pedem aumento de fé, usam um verbo que exprime adição. Jesus devolve um grão, não um monte. Indica que o essencial não é medir, mas viver. O grão guarda um dinamismo que não se fabrica. A semente não se convence a germinar por decreto, ela recebe e, recebendo, responde. Assim é a fé. Deus a dá, nós a acolhemos e, acolhendo, descobrimos que é possível recomeçar, suportar, entregar, perdoar. 

A amoreira que parecia impossível de arrancar começa a ceder. 

A parábola da amoreira plantada no mar ganha então um rosto. Um homem, num mundo duro, escolhe não odiar quem o perseguiu. Escolhe abrigar uma criança. Escolhe calar o que traria louros fáceis. Escolhe caminhar na noite segurando o peso de outro corpo. Ninguém aplaude nos becos de Paris. Mas Deus vê e fortalece. Essa persistência não é teimosia moral. É a peça interior de uma vida visitada por Deus. É aquilo que a Igreja chama virtude teologal. Vem de Deus. Aponta para Deus. Suporta tudo porque participa da fidelidade de Deus. 

Talvez seja essa a lição mais urgente de Lucas. Pedir fé é confessar que não podemos por nós mesmos. Receber a fé é aprender que Deus faz crescer o que semeia. Perseverar na fé é descobrir que o bem não se sustenta apenas com argumentos. Sustenta-se com uma vida unida ao Senhor, mesmo quando falhamos e a noite pesa. No romance, a cidade muda devagar ao redor de Valjean. No Evangelho, o mundo muda devagar ao redor de quem perdoa de novo. O mar permanece mar. Mas, aqui e ali, árvores antigas começam a surgir. 

No fim, a fé como virtude teologal nos devolve uma verdade simples e alta. O que nos faz permanecer não é o tamanho da nossa força, é a vida de Deus em nós. O grão é pequeno, o seu impulso, não. Quando essa vida toca um indivíduo, ele não se limita a evitar o mal, mas aprende a fazer o bem com paciência. Aprende a recomeçar, aprende a não cansar de perdoar. É assim que a amoreira se levanta das entranhas da terra e vai repousar nas mãos de Deus. É assim que a cidade dos homens ganha frestas de luz. É assim que a fé cumpre sua promessa. 

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF