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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

EXEGESE: Sua verdadeira carne transfigurou (Parte 2/2)

A Transfiguração do Senhor (ACI Digital)

Arquivo 30Dias n 12 - 2001

Relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana na conferência sobre "O Rosto dos Rostos"

Sua verdadeira carne transfigurou

"O Cristo glorioso não apaga a verdade da Encarnação." Publicamos o relatório do Prefeito da Biblioteca Ambrosiana no congresso sobre "O Rosto dos Rostos", realizado em outubro de 2001 na Pontifícia Universidade Urbaniana. O congresso, organizado pelo Instituto Internacional de Pesquisa sobre o Rosto de Cristo, publicou um volume com as atas.

por Gianfranco Ravasi

Os três espectadores

Pedro, Tiago e João, na solene epifania do protagonista são três atores que têm uma importância particular nos Evangelhos. Trata-se de um grupo privilegiado que, em diversas ocasiões, ocupa posição de destaque, a ponto de constituir, como observou o exegeta Joachim Gnilka (4), "os portadores especiais da revelação de Cristo". Na mesma lista dos Doze, emerge esse tipo de primazia: "Simão, a quem pôs o nome de Pedro; depois Tiago, filho de Zebedeu; e João, irmão de Tiago, a quem pôs o nome de Boanerges, isto é, filhos do trovão" ( Mc 3,16-17). Quando Jesus testemunhou a ressurreição da filha de Jairo, "não permitiu que ninguém o seguisse, exceto Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago" ( Mc 5,37). Mesmo na noite escura do Getsêmani, "levou consigo Pedro, Tiago e João..." ( Mc 14,33).

Em nossa narrativa, a lista apresenta algumas variações: Pedro, Tiago e João ( Mt 17,1; Mc 9,2); Pedro, João e Tiago ( Lc 9,28). O que permanece é a primazia de Pedro (cf. Mt 10,2) que também tem a função de porta-voz em nosso “drama”. De fato, a sua é a única declaração que vem da terra e se cruza com a celestial: “ kyrie , rabbi , epistáta , é bom para nós estarmos aqui”; isso é seguido, com pequenas variações de acordo com os três sinóticos, pela proposta de erguer três tendas, uma para cada um dos três atores da teofania, Jesus, Moisés e Elias. Não é nossa tarefa, aqui, buscar as razões para tal reação que, entre outras coisas, é rotulada como sem sentido por Marcos ( Mc 9.6), nem isolar sua matriz simbólica ou sinaítica ou sua conexão com a solenidade dos Tabernáculos ( Lv 23.42; Zc 14.16-19) ou com as “moradas eternas” ( Lc 16.9). Evidentemente, as palavras de Pedro são marcadas por um equívoco: o discípulo deseja conservar para sempre aquele antegozo da bem-aventurança celestial, evitando assim seguir o caminho da cruz e apagando a Paixão e a Morte. Os três, de fato, são envolvidos pela luminosa nuvem teofânica, participando assim da intimidade divina e, após terem ouvido a voz celestial, prostram-se no chão e são tomados pelo medo ( Mt 17,6-7), típico das experiências epifânicas ( Lc 1,12; 1,29; 2,9; 5,10; 8,35). Esses são os traços característicos dos "apocalipses" divinos ( Dn 8,17; 10,9-10; Ap 1,17).

Os três discípulos, portanto, experimentam uma verdadeira entrada no transcendente e no misterioso na montanha, e é Jesus quem os traz de volta, com seu toque e seu clássico chamado a "não temer" nas teofanias, à história na qual o caminho da Encarnação deve se cumprir. Uma história que inclui, precisamente, o sofrimento ( Mt 17,12) e a morte ( Mt 15,23). Dessa experiência exaltante, porém, um eco permanecerá no coração de Pedro, como atesta uma passagem da Segunda Carta que a tradição atribuiu ao apóstolo: "... nós fomos testemunhas oculares da grandeza [de nosso Senhor Jesus Cristo]. Ele recebeu honra e glória de Deus Pai, quando esta voz lhe foi dirigida da Glória Majestosa: 'Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo'. Nós ouvimos essa voz vinda do céu, enquanto estávamos com ele no monte santo..." ( 2Pe 1,16-18).

As duas grandes testemunhas, Moisés e Elias

No centro da epifania que tem Jesus como protagonista estão também duas grandes testemunhas da Primeira Aliança, de facto, «os mediadores extremos da Aliança: eles representam o início e o fim da história que se realiza em Jesus, juiz escatológico» (assim escreve um comentador do Evangelho de Mateus, Jean Radermakers).(5)
Curiosamente, Marcos inverte os dois personagens, talvez para enfatizar a tipologia profético-eliana com a qual o Rosto de Jesus é frequentemente retratado nos Evangelhos. A ordem histórico-tradicional, no entanto, antecipa a figura de Moisés, o legislador do Sinai. De fato, se seguirmos a orientação do Êxodo até o Sinai, perceberemos que não faltam alusões possíveis presentes em nossa cena. Moisés também sobe a montanha acompanhado por três discípulos escolhidos, Aarão, Nadabe e Abiú ( Êx 24:1,9); mesmo na teofania do Sinai há menção ao último dia, quando Deus chama Moisés ( Êx 24:16). A nuvem e o fogo, semelhantes à nuvem luminosa da Transfiguração, aparecem como sinal da Glória do Senhor ( Êx 24:16-17). E Moisés, como Cristo, também terá um rosto resplandecente depois de ter estado em comunicação com Deus ( Êx 34:29).

Se Moisés é por excelência a encarnação da lei divina que revela a Israel, Elias representa a profecia que idealmente começa com ele. Uma profecia que é lida no Novo Testamento como um dedo apontando para Cristo, tanto que imediatamente após a Transfiguração, "enquanto desciam do monte", Jesus declara que "Elias já veio" e os discípulos entendem que "ele estava falando de João Batista" ( Mt 17,12-13). Elias, portanto, é o Precursor por excelência com sua palavra. Mas ele também o é com sua morte gloriosa, que se revela como uma ascensão ao céu ( 2 Reis 2,11), antecipando a de Cristo. De fato, dessa perspectiva, até mesmo Moisés pode ser envolvido, pois sua morte do túmulo misterioso ( Dt 34,5-6) foi interpretada pela tradição judaica como uma assunção à glória divina (daí a apócrifa Assunção de Moisés ) e a própria tradição judaico-cristã ( Jd 9) seguiu essa linha.

Não é à toa que Lucas – que se preocupa em situar a Ascensão como meta da vida de Cristo (cf. Lc 9,51; 24,50-51; At 1,9-11) – em seu relato da Transfiguração também introduz o tema do diálogo de Jesus com Moisés e Elias, que "aparecem em glória": eles falam do " êxodo que [Cristo] estava prestes a realizar [ pleroun ] em Jerusalém" ( Lc 9,31). Assim, delineia-se a exaltação gloriosa do Ressuscitado; a cruz que aguarda Cristo e sua morte conduzem à Ascensão, isto é, à entrada no horizonte da eternidade, do infinito e do divino. Uma entrada que havia sido indicada pelo fim de Moisés e Elias e que se realiza plenamente ( pleroun) .) por Jesus ressuscitado e exaltado em glória. Chegamos agora ao limiar do ato final do "drama" da Transfiguração. Agora será do céu que o último personagem aparecerá para selar o evento, revelando-se como o outro protagonista com Jesus.

O protagonista final, o Pai

O que decifra completamente o perfil do primeiro protagonista, Jesus, e resolve o enigma da cena da Transfiguração é uma presença-ausência, a do Pai, o protagonista final que sela todo o "drama" ao se apresentar com sua voz. Sua palavra é sinal de transcendência (seu rosto, de fato, não aparece), mas também de proximidade e comunicação. Sua finalidade é delinear o retrato perfeito de Cristo, desenvolvido através do recurso às Escrituras. É também evidente que essa intervenção torna a Transfiguração paralela ao batismo, onde a mesma voz divina apresentou solenemente Jesus ao mundo como o filho amado enviado pelo Pai ( Mt 3,17; Mc 1,11; Lc 3,22). As declarações dos Sinóticos na Transfiguração refletem substancialmente dois esquemas.

O esquema de Mateus ( Mt 17,5) também incorpora a fórmula de Marcos ( Mc 9,7), expandindo-a: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo". Em primeiro lugar, há o perfil messiânico do Filho na esteira do Salmo 2,7; há a proclamação de sua singularidade e predileção divina com referência também a Isaque, o filho amado e sacrificado ( Gn 22,2); há a satisfação que é adesão, aprovação, exaltação com referência ao Servo sofredor do Senhor "em quem Deus se compraz" ( Is 42,1). Já a outra fórmula, a de Lucas ( Lc 9,35), concentra-se mais nesta última característica: "Este é o meu Filho, o Escolhido", uma expressão que segue precisamente Is 42,1: "Eis... o meu Escolhido, em quem me comprazo"(6). Portanto, em todos os Sinóticos, ainda que com acentos diferentes, o Pai revela que o Filho será glorificado, mas pelo caminho do sofrimento.

Jesus é entronizado em sua pessoa divina, mas também em sua missão salvadora.
O Pai, portanto, completa o retrato do Rosto de Cristo, que é certamente Senhor, rabino, mestre, ápice da lei e da profecia, mas que é sobretudo Filho e Salvador. Toda a cena e a adesão dos três espectadores que encarnam os discípulos de toda a história cristã devem convergir para Ele. O imperativo final: «Escutai-o!» não é apenas o apelo a recorrer a Cristo como profeta definitivo, segundo a releitura messiânica do Deuteronômio ( Dt 10,14) .(João 18,15.19): "O Senhor, teu Deus, suscitará para ti, dentre ti, dentre teus irmãos, um profeta semelhante a mim; a ele ouvirás... Se alguém não ouvir as palavras que ele disser em meu nome, eu o considerarei responsável." O imperativo do Pai é também um convite à plena obediência ao Filho estabelecido como Senhor da história. Assim, como escreveu o exegeta H. Baltensweiler em um ensaio dedicado precisamente à Transfiguração, "o verdadeiro discipulado de Jesus Cristo não consiste em alguma atividade insensata e iniciativa vazia, como vemos nos discípulos quando querem construir cabanas, mas apenas em ouvir adequadamente o Kyrios, o Jesus transfigurado." (7)

No centro da cena, portanto, está o Filho entronizado pelo Pai. Aquele Filho que não perde sua humanidade deixando-a evaporar na teofania. No final, como vimos, ele toca as mãos ( Mt 17,7) dos três apóstolos espectadores, aproximando-se deles, apagando seu sagrado medo e descendo com eles as encostas da montanha para retornar a percorrer os vales e planícies da história onde o mal e o demoníaco se aninham ( Mt 17,14-21; Mc 9,14-29; Lc 9,37-42) e rumar para Jerusalém, a cidade do sofrimento e da morte, mas também do "êxodo" ( Mt 17,22-23; Mc 9,30-32; Lc 9,44-45). O Venerável Beda comentou corretamente: «Transfiguratus Salvator non substantiam verae carnis amisit»(8), o Cristo glorioso não apaga a verdade da Encarnação. E deixamos com ele o cume da "alta montanha", recordando as sete presenças que povoavam aquele espaço místico e geográfico, isto é, transcendente e histórico. Aqui, primeiro, está Jesus, Senhor, rabino, mestre, legislador, profeta, Filho unigênito e Servo sofredor. Depois, vem a Primeira Aliança com Moisés e Elias, e os discípulos do Novo Testamento, Pedro, Tiago e João. E aqui, no final, está o Pai que coloca o primeiro protagonista, Jesus, de volta ao centro da cena.

NOTAS
4 J. Gnilka, Marcos , Assis 1987, p. 478.
5 J. Radermakers, Leitura Pastoral do Evangelho de Mateus , Bolonha 1974, p. 248.
6 «Lucas, ao substituir agapetós , ​​amado, por eklelegménos , escolhido, segundo Is 42,1, assimila o texto mais a Is 42,1 (cf. 23,35)… Desta forma, Lucas quer exprimir com a devida ênfase a importância única deste Filho e da sua tarefa» (H. Schürmann, O Evangelho de Lucas , I, Brescia 1983, p. 876).
7 H. Baltensweiler, A Compreensão de Jesus. Relatórios Históricos e Sinópticos , Zurique 1959, p. 136.
PL 92,217.

Fonte: https://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF