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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Reduções Jesuítico-Guarani, alternativa ao sistema de dominação e colonização reinante (Parte 2/2)

Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo (Foto: Luca Ruggieri)

As Reduções buscaram ser alternativa ao sistema de dominação e colonização por parte das Coroas espanhola e portuguesas dos territórios latino-americanos, "buscando uma possibilidade de espaço para as componentes indígenas da sociedade e especialmente no caso da população da etnia Guarani", cuja adesão ao projeto dos jesuítas possibilitou aos indígenas uma margem de liberdade - possível dentro daquelas circunstâncias históricas - e também de instrução, de formação, explica a Prof. Marina Massimi.

Jackson Erpen – Cidade do Vaticano

Quais foram os principais desafios históricos enfrentados pelas Missões?

Inicialmente as Reduções foram construídas no território que ocupa atuais importantes partes da terra brasileira, como Santa Catarina, o próprio Rio Grande do Sul, Paraná. Mas devido às investidas das Bandeiras, esses empreendimentos tiveram que recuar através, inclusive, de migrações para a região do atual Paraguai, onde um governador na época da região, que era domínio espanhol na época, o Hernando Arias, aceitou a proposta do Diego de Torres Bollo e do Alfaro acerca de da constituição específica dessa região sob, digamos, a direta responsabilidade da Coroa espanhola. Então, o primeiro desafio que as Missões tiveram no território brasileiro foi justamente a recusa e o ataque das Bandeiras que buscavam nas populações indígenas mão de obra escrava. Isso, eu diria, foi o desafio do passado. Depois, como disse, quando na região brasileira se constituíram aquilo que serão os Sete Povos, às margens do Rio Uruguai - foram as últimas Reduções em termos cronológicos que foram construídas e que cresceram muito, se tornaram muito importantes, muito significativas -, essas regiões foram justamente o teatro das da guerra guaranítica, porque é justamente essa parte, dos 30 Povos que deveria ser trocada, em troca da Colônia do Sacramento. E foram essas comunidades indígenas de São Miguel, de São Luís, de São Lourenço, de São Luiz Gonzaga, de São João Batista, Santo Ângelo, que se recusaram a aceitar essa proposta que de fato era uma proposta totalmente ruim, para esses territórios. Então essa parte do Brasil, que corresponde hoje a uma área importante do Rio Grande do Sul, foi o teatro das Guerras Guaraníticas e do desfecho muito violento dessa história. A seguir também tiveram aí as guerras de fronteiras em que exércitos, de um lado ligados a Portugal e depois aquilo que vai ser o recém-constituído Estado do Brasil e por outro lado a Argentina, em busca também da constituição do Estado Nacional e também Paraguai e Uruguai, então esses territórios todos foram objeto de muita destruição na ocasião das guerras de fronteira que aconteceram no começo do século XIX. E aqui também as comunidades indígenas remanentes na região dos Sete Povos foram envolvidos, seja como mão de obra para o serviço militar e de qualquer forma também como mão de obra escrava. E tiveram de novo que fugir, e se espalhar em diversas direções, por exemplo, na direção do Uruguai, do Paraguai, etc. Então, foi também um outro desafio importante. Agora, o desafio, podemos dizer mais recente, foi aquele da preservação desse patrimônio dos Sete Povos também na parte do Brasil. Foram tombadas essas Reduções dos Sete Povos também pela UNESCO. Então, são um patrimônio monumental nacional, mas também mundial, mas os desafios são grandes. Por exemplo, as escavações arqueológicas no Brasil foram a partir do ano 2005 pararam. Teve um período rico nesse sentido em que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade Católica do Paraná se envolveram, sobretudo algumas lideranças na área da arqueologia, como o professor Arno Kern e os seus alunos, desenvolveram de fato trabalhos excelentes de escavação arqueológica, de resgate, portanto, de material riquíssimo do ponto de vista das fontes materiais, mas depois esse trabalho quase que parou. Antes disso, ainda ao longo do século XX, sobretudo na primeira parte do século XX, devemos registrar o fato que muito material pertencente às ruínas das reduções foi pilhado, foi utilizado pelas populações que ocuparam depois esse território, populações de imigrantes, imigrantes alemães, imigrantes italianos e outras regiões, usaram esse material muitas vezes para construção de casas. Também foram derrubados, foram derrubados parte de monumentos, para realizarem estradas, e isso também foi um fato muito grave, por exemplo, o Colégio de São Luís Gonzaga, que foi totalmente destruído, para/em nome da construção de uma avenida. Então, teve todo esse problema, da dispersão do patrimônio monumental e depois também teve esse desafio das escavações. Ao mesmo tempo, é claro que teve muito trabalho, está tendo muito trabalho realizado por outro lado, por arqueólogos, sobretudo ligados ao IPHAN, um esforço muito grande de manter esse patrimônio. Tem um esforço importante de toda a população da região de São Miguel das Missões, buscando de qualquer forma a valorização desse patrimônio, o conhecimento desse patrimônio, a disponibilização dele, também do ponto de vista turístico, o que também é importante porque significa a valorização, mas também a possibilidade de um retorno também econômico que pode ajudar justamente na conservação e na preservação do patrimônio. Então, os desafios são grandes, desde o começo, desde a história passada até o presente, esse patrimônio constitui ainda hoje um desafio para o país, mas um desafio também que pode ser muito promissor, como de fato está sendo percebido, sobretudo pelas populações da região do Rio Grande do Sul envolvida, sobretudo na região dos atuais Sete Povos.

Ruinas de San Ignacio Miní | Crédito: Vatican News.

O que se poderia dizer a respeito da população guarani remanescente?

Um aspecto desse trabalho, desse desafio muito grande, muito sério é o papel, o espaço dado às comunidades indígenas. Infelizmente, a gente visitando esses monumentos, essas ruínas, a gente percebe o estado de pobreza, de empobrecimento dessas populações de remanescentes guaranis, sobretudo ao ramo dos guaranis que é a etnia dos guaranis Mbyá, que ocuparam e ocupam essa região dos Sete Povos e que moram nos arredores das ruínas, que para eles tem um significado inclusive simbólico muito grande, mas que vivem numa condição de grande pobreza e até de desnutrição. São artesões muito interessantes, muito originais, a gente vê que muitos deles vendem suas obras nos arredores, por exemplo, do Museu das Missões, em São Miguel das Missões. Mas se trata de um artesanato belíssimo e muito pouco, muito pouco valorizado no país. Acho que esse é um grande desafio, porque a preservação e a valorização da presença desses atores passam pela valorização e pela preservação de sua língua nativa, de seu idioma nativo, também de sua cultura, de sua maneira de viver, dos seus modos de viver, de suas tradições e também por condições dignas de vida, e portanto, também até de alimentação. Então, nesse sentido, o desafio é grande porque percebe-se uma grande pobreza. E, portanto, há um chamado muito sério ao país, até ao governo, seja estadual, mas também ao governo federal, para que de fato tenha uma atenção real a essas populações, uma atenção que passe para além dos chavões, das declarações, mas que sejam ações efetivas, para garantir a eles a dignidade e o espaço que lhe compete, que lhe é devido, diria.

O que torna as Missões um objeto tão relevante para o Brasil de hoje e a pesquisa nesse sentido?

E como disse na primeira resposta, tratou-se de uma experiência que buscou ser alternativa ao sistema de dominação e de colonização seja por parte da Império espanhol seja do Reino português dos territórios latino-americanos, buscando uma possibilidade de espaço para as componentes indígenas da sociedade e especialmente no caso da população, da etnia Guarani. Evidentemente a adesão dessas populações, a proposta feita pelos jesuítas, de viver a experiência de serem, digamos, “reduzidos”, no sentido de pertencerem a essas comunidades por eles planejadas, possibilitou para essas populações uma margem de liberdade - uma liberdade possível dentro daquelas circunstâncias históricas - e também de instrução, de formação. Como disse, todos os guaranis, todos os moradores das Reduções sabiam ler e escrever, o que era algo muito raro no mundo da época. Mas, o que aconteceu então, foi uma grande riqueza, que desabrochou dessa experiência, porque ao longo de cerca 150 anos ocorreu uma possibilidade de, podemos dizer, de unidade política, econômica, social e religiosa, que abarcava um território muito grande, como disse, uma parte da Argentina, parte do sul do Brasil e também Paraguai, do atual Paraguai, ocupados todas essas terras pelas populações guaranis, que seria, digamos, uma esperança, uma possibilidade grande de uma América Latina diferente, em que o protagonismo das comunidades nativas fosse de fato real dentro, repito, das circunstâncias históricas possíveis. É claro que nós temos que estar atentos a isso para não cairmos em anacronismos historiográficos. E, nesse sentido, seria assim uma outra cara da história latino-americana. E assim, portanto, é claro que isso é importante ser compreendido, ser estudado hoje, também para levarmos em conta as opções, as possibilidades que a própria história militar, política, etc, foi negando nesses territórios. Devemos nos dar conta que a criação dos Estados nacionais, de alguma forma, também teve como contrapartida a, podemos dizer quase a destruição de qualquer forma, a aniquilação, a submissão da população Guarani que ocorreu logo depois do desfecho violento da experiência reducional. E eu acho que se dar conta disso significa também uma ação de reparação da injustiça que foi realizada com essas populações e uma consciência, portanto, dos fatos históricos, da história também do século XIX, do século XX, mais ligada a essas circunstâncias. Muitas vezes fica mais fácil, ficou mais fácil para historiografia brasileira, por exemplo, negar, no sentido de se calar acerca dessa experiência histórica, ou pior ainda, responsabilizar as comunidades missionárias que deram origem a ela, mais do que fazer uma análise histórico-crítica do ocorrido. O fato é que antes da destruição da experiência das Reduções, o Brasil ocupava exatamente a metade do território atual que foi ganha, sim, lograda através do Tratado de Madrid e depois das guerras de fronteira. O fato é, que de qualquer forma ameaça constante às Reduções, eram os bandeirantes paulistas, bandeirantes que hoje dão um nome, cujos nomes estão muito presentes na consciência, na memória histórica brasileira, porque, por exemplo, temos rodovias, temos colégios, temos televisões, que tem o nome deles. Exemplo, Raposo Tavares, foi um dos mais violentos, digamos, capitães de Bandeira que levou muita destruição a essas experiências reducionais. Então, é fazer jus, reparar de alguma forma a tudo isso, e portanto, através da história, uma operação também de justiça, de memória e de reparação, assim como o Paul Ricoeur ensina nas suas obras. Por isso aí, muito importante é a pesquisa historiográfica, o conhecimento dos fatos, e que essa pesquisa seja de fato difundida também na sociedade, nas escolas, não apenas nos âmbitos acadêmicos. Então, nesse sentido, é uma história muito significativa do que do que é Latinoamérica, do que poderia ter sido também se a experiência não tivesse sido derrubada, destruída.

Imagem remanescente do período das Reduções | Crédito: Vatican News.

O impacto do reconhecimento pela Unesco desse rico patrimônio como patrimônio mundial...

Sem dúvida, foi muito importante, seja para o Brasil, seja para as outras regiões envolvidas e Paraguai e Argentina, E sem dúvida, o impacto foi importante como justamente documentado no histórico, que colocamos em um livrinho acerca das ações que foram realizadas para a preservação desse patrimônio, inclusive as escavações arqueológicas e além disso, a visibilidade em nível mundial, do patrimônio. Então, sem dúvida, foi importante essa data.

*Prof. Marina Massimi tem graduação em Psicóloga pela Università degli Studi di Padova (1979), mestrado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1985) e doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1989). É Professora titular aposentada da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Senior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e lidera Grupo de Pesquisa "Tempo, Memória e Pertencimento" junto ao IEA. Tem experiência de pesquisa na área de Psicologia, com ênfase em História da Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: história da psicologia científica e história dos saberes psicológicos na cultura brasileira, saberes psicológicos dos jesuítas. Foi presidente e vice-presidente da Sociedade Brasileira de História da Psicologia de 2013 a 2017. Membro da Academia Ambrosiana (Milão). Coeditora da Revista Memorandum: Memória e História em Psicologia.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF