As Reduções buscaram ser alternativa ao sistema de dominação
e colonização por parte das Coroas espanhola e portuguesas dos territórios
latino-americanos, "buscando uma possibilidade de espaço para as
componentes indígenas da sociedade e especialmente no caso da população da
etnia Guarani", cuja adesão ao projeto dos jesuítas possibilitou aos
indígenas uma margem de liberdade - possível dentro daquelas circunstâncias
históricas - e também de instrução, de formação, explica a Prof. Marina Massimi.
Jackson Erpen – Cidade do Vaticano
Quais foram os principais desafios históricos enfrentados
pelas Missões?
Inicialmente as Reduções foram construídas no território
que ocupa atuais importantes partes da terra brasileira, como Santa Catarina, o
próprio Rio Grande do Sul, Paraná. Mas devido às investidas das Bandeiras,
esses empreendimentos tiveram que recuar através, inclusive, de migrações para
a região do atual Paraguai, onde um governador na época da região, que era
domínio espanhol na época, o Hernando Arias, aceitou a proposta do Diego de
Torres Bollo e do Alfaro acerca de da constituição específica dessa região sob,
digamos, a direta responsabilidade da Coroa espanhola. Então, o primeiro
desafio que as Missões tiveram no território brasileiro foi justamente a recusa
e o ataque das Bandeiras que buscavam nas populações indígenas mão de obra
escrava. Isso, eu diria, foi o desafio do passado. Depois, como disse, quando
na região brasileira se constituíram aquilo que serão os Sete Povos, às margens
do Rio Uruguai - foram as últimas Reduções em termos cronológicos que foram
construídas e que cresceram muito, se tornaram muito importantes, muito
significativas -, essas regiões foram justamente o teatro das da guerra
guaranítica, porque é justamente essa parte, dos 30 Povos que deveria ser
trocada, em troca da Colônia do Sacramento. E foram essas comunidades indígenas
de São Miguel, de São Luís, de São Lourenço, de São Luiz Gonzaga, de São João
Batista, Santo Ângelo, que se recusaram a aceitar essa proposta que de fato era
uma proposta totalmente ruim, para esses territórios. Então essa parte do
Brasil, que corresponde hoje a uma área importante do Rio Grande do Sul, foi o
teatro das Guerras Guaraníticas e do desfecho muito violento dessa história. A
seguir também tiveram aí as guerras de fronteiras em que exércitos, de um lado
ligados a Portugal e depois aquilo que vai ser o recém-constituído Estado do
Brasil e por outro lado a Argentina, em busca também da constituição do Estado
Nacional e também Paraguai e Uruguai, então esses territórios todos foram
objeto de muita destruição na ocasião das guerras de fronteira que aconteceram
no começo do século XIX. E aqui também as comunidades indígenas remanentes na
região dos Sete Povos foram envolvidos, seja como mão de obra para o serviço
militar e de qualquer forma também como mão de obra escrava. E tiveram de novo
que fugir, e se espalhar em diversas direções, por exemplo, na direção do
Uruguai, do Paraguai, etc. Então, foi também um outro desafio importante.
Agora, o desafio, podemos dizer mais recente, foi aquele da preservação desse
patrimônio dos Sete Povos também na parte do Brasil. Foram tombadas essas
Reduções dos Sete Povos também pela UNESCO. Então, são um patrimônio monumental
nacional, mas também mundial, mas os desafios são grandes. Por exemplo, as
escavações arqueológicas no Brasil foram a partir do ano 2005 pararam. Teve um
período rico nesse sentido em que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
a Universidade Católica do Paraná se envolveram, sobretudo algumas lideranças
na área da arqueologia, como o professor Arno Kern e os seus alunos,
desenvolveram de fato trabalhos excelentes de escavação arqueológica, de
resgate, portanto, de material riquíssimo do ponto de vista das fontes
materiais, mas depois esse trabalho quase que parou. Antes disso, ainda ao
longo do século XX, sobretudo na primeira parte do século XX, devemos registrar
o fato que muito material pertencente às ruínas das reduções foi pilhado, foi
utilizado pelas populações que ocuparam depois esse território, populações de
imigrantes, imigrantes alemães, imigrantes italianos e outras regiões, usaram
esse material muitas vezes para construção de casas. Também foram derrubados,
foram derrubados parte de monumentos, para realizarem estradas, e isso também
foi um fato muito grave, por exemplo, o Colégio de São Luís Gonzaga, que foi
totalmente destruído, para/em nome da construção de uma avenida. Então, teve
todo esse problema, da dispersão do patrimônio monumental e depois também teve
esse desafio das escavações. Ao mesmo tempo, é claro que teve muito trabalho,
está tendo muito trabalho realizado por outro lado, por arqueólogos, sobretudo
ligados ao IPHAN, um esforço muito grande de manter esse patrimônio. Tem um
esforço importante de toda a população da região de São Miguel das Missões,
buscando de qualquer forma a valorização desse patrimônio, o conhecimento desse
patrimônio, a disponibilização dele, também do ponto de vista turístico, o que
também é importante porque significa a valorização, mas também a possibilidade
de um retorno também econômico que pode ajudar justamente na conservação e na
preservação do patrimônio. Então, os desafios são grandes, desde o começo,
desde a história passada até o presente, esse patrimônio constitui ainda hoje
um desafio para o país, mas um desafio também que pode ser muito promissor,
como de fato está sendo percebido, sobretudo pelas populações da região do Rio
Grande do Sul envolvida, sobretudo na região dos atuais Sete Povos.
O que se poderia dizer a respeito da população guarani
remanescente?
Um aspecto desse trabalho, desse desafio muito grande,
muito sério é o papel, o espaço dado às comunidades indígenas. Infelizmente, a
gente visitando esses monumentos, essas ruínas, a gente percebe o estado de
pobreza, de empobrecimento dessas populações de remanescentes guaranis,
sobretudo ao ramo dos guaranis que é a etnia dos guaranis Mbyá, que ocuparam e
ocupam essa região dos Sete Povos e que moram nos arredores das ruínas, que
para eles tem um significado inclusive simbólico muito grande, mas que vivem
numa condição de grande pobreza e até de desnutrição. São artesões muito
interessantes, muito originais, a gente vê que muitos deles vendem suas obras
nos arredores, por exemplo, do Museu das Missões, em São Miguel das Missões.
Mas se trata de um artesanato belíssimo e muito pouco, muito pouco valorizado
no país. Acho que esse é um grande desafio, porque a preservação e a
valorização da presença desses atores passam pela valorização e pela
preservação de sua língua nativa, de seu idioma nativo, também de sua cultura,
de sua maneira de viver, dos seus modos de viver, de suas tradições e também
por condições dignas de vida, e portanto, também até de alimentação. Então,
nesse sentido, o desafio é grande porque percebe-se uma grande pobreza. E,
portanto, há um chamado muito sério ao país, até ao governo, seja estadual, mas
também ao governo federal, para que de fato tenha uma atenção real a essas
populações, uma atenção que passe para além dos chavões, das declarações, mas
que sejam ações efetivas, para garantir a eles a dignidade e o espaço que lhe
compete, que lhe é devido, diria.
O que torna as Missões um objeto tão relevante para o
Brasil de hoje e a pesquisa nesse sentido?
E como disse na primeira resposta, tratou-se de uma
experiência que buscou ser alternativa ao sistema de dominação e de colonização
seja por parte da Império espanhol seja do Reino português dos territórios
latino-americanos, buscando uma possibilidade de espaço para as componentes
indígenas da sociedade e especialmente no caso da população, da etnia Guarani.
Evidentemente a adesão dessas populações, a proposta feita pelos jesuítas, de
viver a experiência de serem, digamos, “reduzidos”, no sentido de pertencerem a
essas comunidades por eles planejadas, possibilitou para essas populações uma
margem de liberdade - uma liberdade possível dentro daquelas circunstâncias
históricas - e também de instrução, de formação. Como disse, todos os guaranis,
todos os moradores das Reduções sabiam ler e escrever, o que era algo muito
raro no mundo da época. Mas, o que aconteceu então, foi uma grande riqueza, que
desabrochou dessa experiência, porque ao longo de cerca 150 anos ocorreu uma
possibilidade de, podemos dizer, de unidade política, econômica, social e
religiosa, que abarcava um território muito grande, como disse, uma parte da
Argentina, parte do sul do Brasil e também Paraguai, do atual Paraguai,
ocupados todas essas terras pelas populações guaranis, que seria, digamos, uma
esperança, uma possibilidade grande de uma América Latina diferente, em que o
protagonismo das comunidades nativas fosse de fato real dentro, repito, das
circunstâncias históricas possíveis. É claro que nós temos que estar atentos a
isso para não cairmos em anacronismos historiográficos. E, nesse sentido, seria
assim uma outra cara da história latino-americana. E assim, portanto, é claro
que isso é importante ser compreendido, ser estudado hoje, também para levarmos
em conta as opções, as possibilidades que a própria história militar, política,
etc, foi negando nesses territórios. Devemos nos dar conta que a criação dos
Estados nacionais, de alguma forma, também teve como contrapartida a, podemos
dizer quase a destruição de qualquer forma, a aniquilação, a submissão da
população Guarani que ocorreu logo depois do desfecho violento da experiência
reducional. E eu acho que se dar conta disso significa também uma ação de
reparação da injustiça que foi realizada com essas populações e uma
consciência, portanto, dos fatos históricos, da história também do século XIX,
do século XX, mais ligada a essas circunstâncias. Muitas vezes fica mais fácil,
ficou mais fácil para historiografia brasileira, por exemplo, negar, no sentido
de se calar acerca dessa experiência histórica, ou pior ainda, responsabilizar
as comunidades missionárias que deram origem a ela, mais do que fazer uma
análise histórico-crítica do ocorrido. O fato é que antes da destruição da
experiência das Reduções, o Brasil ocupava exatamente a metade do território
atual que foi ganha, sim, lograda através do Tratado de Madrid e depois das
guerras de fronteira. O fato é, que de qualquer forma ameaça constante às
Reduções, eram os bandeirantes paulistas, bandeirantes que hoje dão um nome,
cujos nomes estão muito presentes na consciência, na memória histórica
brasileira, porque, por exemplo, temos rodovias, temos colégios, temos
televisões, que tem o nome deles. Exemplo, Raposo Tavares, foi um dos mais
violentos, digamos, capitães de Bandeira que levou muita destruição a essas
experiências reducionais. Então, é fazer jus, reparar de alguma forma a tudo
isso, e portanto, através da história, uma operação também de justiça, de
memória e de reparação, assim como o Paul Ricoeur ensina nas suas obras. Por
isso aí, muito importante é a pesquisa historiográfica, o conhecimento dos
fatos, e que essa pesquisa seja de fato difundida também na sociedade, nas
escolas, não apenas nos âmbitos acadêmicos. Então, nesse sentido, é uma
história muito significativa do que do que é Latinoamérica, do que poderia ter
sido também se a experiência não tivesse sido derrubada, destruída.
O impacto do reconhecimento pela Unesco desse rico
patrimônio como patrimônio mundial...
Sem dúvida, foi muito importante, seja para o Brasil,
seja para as outras regiões envolvidas e Paraguai e Argentina, E sem dúvida, o
impacto foi importante como justamente documentado no histórico, que colocamos
em um livrinho acerca das ações que foram
realizadas para a preservação desse patrimônio, inclusive as escavações
arqueológicas e além disso, a visibilidade em nível mundial, do patrimônio.
Então, sem dúvida, foi importante essa data.
*Prof. Marina Massimi tem graduação em Psicóloga pela
Università degli Studi di Padova (1979), mestrado em Psicologia (Psicologia
Experimental) pela Universidade de São Paulo (1985) e doutorado em Psicologia
(Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1989). É Professora
titular aposentada da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora
Senior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e lidera
Grupo de Pesquisa "Tempo, Memória e Pertencimento" junto ao IEA. Tem
experiência de pesquisa na área de Psicologia, com ênfase em História da
Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: história da
psicologia científica e história dos saberes psicológicos na cultura
brasileira, saberes psicológicos dos jesuítas. Foi presidente e
vice-presidente da Sociedade Brasileira de História da Psicologia de 2013 a
2017. Membro da Academia Ambrosiana (Milão). Coeditora da Revista Memorandum:
Memória e História em Psicologia.
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