Entrevista com o biblista padre Francesco Giosuè Voltaggio.
A essência do Cântico dos Cânticos não é a posse, mas o desejo. O biblista
explica por que o significado literal e alegórico não estão em contraposição,
mas em estreita continuidade.
Debora Donnini – Cidade do Vaticano
É curiosa a presença do Cântico dos Cânticos na Bíblia
hebraica e cristã. É verdade que o Cântico se inspira em alguns poemas antigos
da Mesopotâmia? E quando poderia ter sido escrito? A riqueza deste texto emerge
com toda a sua determinação na entrevista com o padre Francesco Giosuè
Voltaggio, biblista e professor de Arqueologia e Sagrada Escritura na Terra
Santa e também reitor do Seminário Redemptoris Mater da
Galiléia.
Pe. Voltaggio: O fundo literário do Cântico deve
ser buscado nos cantos de amor egípcios e na poesia nupcial mesopotâmica nas
quais se exaltava a beleza dos noivos, chamados “rei” e “rainha”. Foram
percebidas também semelhanças entre o Cântico dos Cânticos e
um gênero poético árabe, chamado wasf, no qual descreve-se a beleza
dos noivos com a descrição poética de seus corpos. Todavia há novidades
decisivas no Cântico. Por exemplo, ao contrário dos cantos de amor egípcios que
se caracterizam por um monólogo dos protagonistas, o Cântico é um verdadeiro
diálogo entre o amado e a amada, com a intervenção de um coro. Portanto, a
revelação bíblica assume a humanidade – e também a literatura humana – mas a
transfigura, como é o caso, do Cântico que trata do amor humano como humano mas
que ao mesmo tempo o transfigura. Com relação à datação ainda há uma discussão
entre os estudiosos. Varia entre o século X e o século I A.C. A pesquisa
exegética atual é propensa a uma datação perto do final do domínio ptolemaico
na Palestina, ou seja, na primeira metade do século III A.C. Também é muito
interessante que o texto é atribuído a Salomão. Isso é de fundamental
importância para a interpretação do Cântico, porque Salomão significa Sábio por
excelência, e na tradição judaica e cristã é uma figura do Messias.
O Cântico dos Cânticos é fundamentalmente um canto de amor,
de paixão, mas não um amor efêmero: fala-se de um noivo e de uma noiva. E a
característica que talvez torne o amor tão sublime é justamente porque se trata
de um amor de eleição, de escolha, um amor que como diz o Cântico é “forte como
a morte”. Na sua opinião, há esta característica de amor de eleição que pesa
insistentemente no Cântico?
Pe. Voltaggio: Muito. O nome Cântico dos
Cânticos em hebraico tem um valor superlativo por isso pode ser
traduzido também como o “Cântico mais belo”, o “Cântico sublime”. O amor humano
é uma realidade sublime e profunda demais para ser descrita com palavras
humanas e por isso recorre-se à poesia. Portanto, saindo de todos os esquemas,
o amor situa-se no âmbito do estático, do sublime, do divino, ou seja o amor do
Cântico dos Cânticos não é somente de paixão ou de aprazimento, mas é feito de
relação e de distância, de proximidade e de afastamento, de palavras e de
silêncios, de vida e de morte, etc. Por exemplo, no amor entre os dois amados
do Cântico , há duas noites, momentos nos quais o amado e amada se perdem. Mas
o amor humano do Cântico é um amor forte como a morte, uma chama do Senhor.
Este versículo é o ápice do livro e em hebraico sente-se o som da letra shin que
se repete, do fogo, isto é o amor tem o “som” do fogo. Este é o único versículo
do Cântico onde de modo velado encontra-se o nome do Senhor. Trata-se de um
amor de eleição, que vem do próprio Deus que é – segundo o que diz a Escritura
– um fogo devorador e este amor humano entre os noivos é um reflexo do amor
apaixonado que Deus tem pela humanidade, porque Deus é o noivo e a humanidade é
a noiva, em uma leitura espiritual ou alegórica.
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