Chamei-vos amigos (2): Para iluminar a terra
O “mandamento novo” que Jesus nos confiou no fim da sua vida
terrena revelou uma nova dimensão da amizade humana: trata-se de autêntico
apostolado.
23/06/2020
Os grandes rios geralmente nascem de uma pequena fonte
situada no alto das montanhas. Ao longo de seu percurso, vão recebendo água de
mananciais e afluentes até que, no final, desembocam no mar. De modo
semelhante, um afeto espontâneo ou um interesse em comum constituem as fontes
das quais pode brotar uma amizade. Pouco a pouco essa relação segue o seu
curso, recebendo correntes que a nutrem: tempo vivido em comum, conselhos de um
lado e outro, conversas, risadas, confidências... Da mesma forma que, à sua passagem,
os rios fecundam campos, enchem poços e fazem florescer as árvores, a amizade
embeleza a vida, cumula-a de luz, “multiplica as alegrias e oferece conforto
nas dores”[1].
Além disso, para um cristão, a amizade também fica repleta da “água viva” que é
a graça de Cristo (cfr. Jo 4, 10). Esta força dá um novo
impulso à corrente: transforma o afeto humano em amor de caridade. Assim, no
final do seu curso, esse rio penetra no vasto mar do amor de Deus por nós.
Um coeficiente de dilatação enorme
Nas primeiras páginas da Bíblia, o relato da criação do
homem diz-nos que ele foi formado à “imagem” de Deus, feito à sua “semelhança”
(cfr. Gn. 1, 26). Este modelo divino está sempre presente na parte
mais íntima da alma e, se treinarmos o nosso olhar, poderemos vislumbrar Deus
em cada homem e em cada mulher. Por esta altíssima dignidade, todas as pessoas
que encontrarmos no caminho – no trabalho, no estudo, no esporte, no nosso ir
de um lado para outro – são dignas de ser amadas, embora somente com algumas
delas poderemos estabelecer um relacionamento de amizade. Intuímos que, na
prática, não é possível ter infinitos amigos, entre outros motivos porque o
tempo é limitado; mas o nosso coração, movido por Deus, pode permanecer sempre
aberto, oferecendo sua amizade ao maior número de pessoas, “dando mostras de
compreensão com todos os homens” (Tt 3. 2).
“O coração humano tem um coeficiente de dilatação
enorme” (São Josemaria)
Procurar ter na alma tal disposição, que não “exclui
ninguém”, que permanece “intencionalmente aberta a todas as pessoas, com um
coração grande”[2],
tem certamente um preço. A mãe de São Josemaria, por exemplo, ao ver como seu
filho se entregava sem medida às pessoas que o rodeavam, advertiu-o: “Você vai
sofrer muito na vida, porque põe todo o coração no que faz”[3].
Abrir-se à amizade tem o seu preço e, no entanto, todos já experimentamos como
é um caminho seguro de felicidade. Ao mesmo tempo, a nossa capacidade de amar a
cada vez mais amigos pode crescer continuamente. São Josemaria sentiu esta
inquietação em seu coração, com o aumento do número de pessoas no
Opus Dei: poderei amar a todos os que vierem ao Opus Dei com o mesmo
carinho que sinto pelos primeiros? Preocupação que a graça divina resolveu: o
seu coração foi sendo continuamente dilatado por Deus, a tal ponto que ele
chegou a confessar: “O coração humano tem um coeficiente de dilatação enorme.
Quando ama, dilata-se com um crescendo de carinho que
ultrapassa todas as barreiras”[4].
Nisto vos conhecerão
Nas páginas do Gênesis revelava-se o amor de Deus ao
criar-nos à sua “imagem”, mas com a encarnação do seu Filho, receberíamos
revelações mais impressionantes. Os apóstolos de Jesus viveram durante três
anos com aquele que era o seu melhor amigo, sem sair do seu lado.
Chamavam-no Rabbi – que quer dizer “mestre” – porque além de
amigos, eram e se sentiam seus discípulos. Antes de padecer, o Mestre quis que
compreendessem que os amava com uma amizade que ia além da morte, que os amava
“até o fim” (Jo 13, 1). Este segredo da radicalidade da sua amizade
é uma das confidências íntimas que Cristo lhes fez durante a Última Ceia. Lá
manifestou também o seu desejo de que esta força se perpetuasse durante os
séculos através de todos os cristãos com a proclamação de um novo mandamento:
“Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo,
13, 34). E acrescentou: “Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos” (Jo 13,
35); isto é: os meus amigos serão reconhecidos pelo seu modo de amar aos
outros.
Há um acontecimento na história do Opus Dei muito unido
a este mandamento. Ao terminar a guerra civil, São Josemaria volta a Madri e se
dirige imediatamente à rua Ferraz. No número 16 dessa rua, dias antes do começo
do conflito, tinha-se terminado de instalar a nova Residência DYA. Quase três
anos depois, encontra tudo destruído pelos saques e bombardeios. Está
inutilizável. Entre os escombros, coberto de pó, descobre um quadro que havia
estado pendurado na parede da biblioteca. Na tela, que tinha aspecto de
pergaminho, estão escritas em latim essas mesmas palavras do mandamento novo
que Jesus, como vimos, confiou aos seus apóstolos: “Mandatum novum do
vobis...”, “Eu vos dou um novo mandamento...” (cfr. Jo 13,
34-35). Tinham-no pendurado ali porque era uma síntese do ambiente que São
Josemaria desejava para os centros da Obra: ”Lugares onde muitas pessoas
encontrem um amor sincero e aprendam a ser amigas de verdade”[5].
Depois do desastre da guerra, quando era preciso recomeçar praticamente do
zero, o importante continuava de pé: uma das bases fundamentais para
reconstruir seria deixar-se guiar por esse doce mandamento de Cristo.
Deste jeito é mais fácil subir
Vemos que o modelo da nova lei é o amor de Jesus: “Como eu
vos amei” (Jo 13, 34). Mas, como é este amor? Quais são as suas
características? O amor de Cristo pelos seus apóstolos – disse-o Ele mesmo – é
precisamente como o amor o que os amigos têm entre si. Eles foram testemunhas e
destinatários da intensidade deste amor. Sabem que Jesus cuidava das pessoas
com quem convivia. Eles o viram alegrar-se com as suas alegrias (cfr. Lc 10,
21) e sofrer com sua dor (cfr. Jo 11, 35). Sempre encontrou
tempo para estar com os outros: com a samaritana (cfr. Jo 4,
6), com a hemorroíssa (cfr. Mc 5, 32) e inclusive com o bom
ladrão quando já estava na cruz (cfr. Lc 23, 43). O carinho de
Jesus manifestava-se em coisas concretas: preocupava-se com o alimento dos que
o seguiam (cfr. Lc 9, 13) e também com seu descanso
(cfr. Mc 6, 31). Como nos recorda o Papa Francisco, Jesus
“cuidou da amizade com seus discípulos, e inclusive nos momentos críticos
permaneceu fiel a eles”[6].
Jesus quer que seus amigos sejam reconhecidos pelo seu
modo de amar aos outros
A amizade é, ao mesmo tempo, um bálsamo para a vida e um dom
de Deus. Não é apenas um sentimento fugaz e sim um verdadeiro amor “estável,
firme, fiel, que amadurece com o passar do tempo”[7].
É considerada por alguns a expressão mais alta do amor, já que nos permite
valorizar a outra pessoa por si mesma. A amizade “é olhar o outro não para
servir-se dele, mas para servi-lo”[8].
É essa a sua preciosa gratuidade. Entende-se então, que o “ser desinteressada”
é inerente à amizade, porque a intenção de quem ama não é buscar nenhum
benefício, nem um possível efeito boomerang.
Descobrir isto em sua autêntica profundidade sempre
surpreende, pois parece chocar com uma ideia da vida como competição, que
costuma ser comum em alguns ambientes. Por isso, quem experimenta a amizade o
faz habitualmente como um dom imerecido; com amigos os problemas da vida
parecem mais leves. Como diz um provérbio kikuyu do qual o
bem-aventurado Álvaro del Portillo gostou muito quando foi ao Quênia: “quando
há um amigo no cume da montanha, é mais fácil subir”[9].
Os amigos são absolutamente necessários para conseguir uma vida feliz. É, sem
dúvida, possível ter uma vida plena sem participar do amor conjugal – como
acontece, por exemplo, com quem recebeu o dom do celibato – mas não se pode ser
feliz sem experimentar o amor de amizade. Quanto consolo e alegria encontramos
numa boa amizade! Como as tristezas se aliviam!
Mais amigos para Jesus
Conhecendo a vida de Jesus e crescendo em intimidade com
Ele, podemos aprender as características de uma amizade perfeita. Vimos no
princípio que a amizade cristã é especial porque se nutre de uma corrente
divina, a graça de Deus, e por isso adquire uma nova “dimensão cristológica”.
Esta força impulsiona a olhar e a amar a todos – especialmente os mais próximos
– “por Cristo, com Ele e n’Ele”, como diz o sacerdote na Missa ao erguer Jesus
no pão eucarístico. Aprenderemos assim a “ver os outros com os olhos de Cristo,
descobrindo sempre e novamente o seu valor”[10].
São Josemaria nos animava a ser o próprio Cristo que passa ao lado das pessoas,
a dar aos outros o mesmo amor de Cristo amigo. Por isso é lógico que
alimentemos em nossa oração a expectativa humana e sobrenatural de ter sempre
novos amigos, porque “Deus muitas vezes se serve de uma amizade autêntica para
realizar a sua obra salvadora”[11].
A amizade de Jesus com Pedro, com João e com todos os seus
discípulos identifica-se com um ardente desejo de que vivam perto do Pai; a sua
amizade está unida ao desejo de que descubram a missão à qual foram chamados.
Do mesmo modo, em meio às tarefas que o Senhor nos confiou, “não se trata de
ter amigos para fazer um apostolado, mas de que o Amor de Deus informe nossas
relações de amizade para que elas sejam um autêntico apostolado”[12].
São Josemaria costumava dizer que na vida espiritual chega um momento em que
não se distinguem a oração e o trabalho, porque se vive numa contínua presença
de Deus. Algo similar acontece com a amizade, porque ao desejar o bem do amigo
queremos que esteja o mais perto possível de Deus, fonte segura de alegria.
Assim, “não há tempos compartilhados que não sejam apostólicos: tudo é amizade
e tudo é apostolado, sem nenhuma distinção”[13].
“não há tempos compartilhados que não sejam
apostólicos” (Mons. fERNAnDO oCáriz)
Por isso, no coração dos santos, sempre havia lugar para um
novo amigo. Ao ler livros que contam as suas vidas descobrimos um interesse
sincero pelos problemas dos outros, pelas suas angústias e alegrias. Dom Álvaro
cultivou esta disposição até o fim da sua vida; quis levar a amizade de Cristo
inclusive às pessoas que o acompanharam durante as horas da sua última viagem
nesta terra. Um dia depois do seu falecimento, “na mesinha de cabeceira
encontrou-se o cartão de visita de um dos pilotos do avião que o tinha levado
da Terra Santa a Roma. Ele tinha se interessado pelo piloto e pela sua família,
especialmente durante o tempo de espera no aeroporto de Tel Aviv. O
relacionamento foi breve, mas, profundo: aquele piloto foi rezar diante dos
restos mortais de dom Álvaro assim que soube do seu falecimento”[14].
Em um encontro casual tinha se gerado uma amizade que continuava entre a terra
e o céu.
***
O cristão tem um grande amor – um dom – a compartilhar. As
nossas relações com os outros dão a Cristo a possibilidade de oferecer a sua
amizade a novos amigos. “Iluminar os caminhos da terra”[15] implica
estender pelo mundo a preciosa realidade do amor de amizade. Às vezes, pensar
só em nossos interesses, ter muita pressa ou ficar em certa superficialidade ao
conhecer as pessoas, coloca em perigo este presente que Deus quer dar a todos
os homens. Grande parte da nossa missão evangelizadora é justamente devolver à
amizade o seu autêntico brilho, colocando-a em relação com Deus, com os outros,
com o nosso desejo de ser melhores... em suma, com a felicidade.
José Manuel Antuña
Foto: Maksim Shutov, disponível em Unsplash.
[1] Fernando
Ocáriz, Carta Pastoral 1/11/2019, n. 23.
[2] Fernando
Ocáriz, Carta Pastoral 1/11/2019, n. 7.
[3] Andrés
Vázquez de Prada,El fundador del Opus Dei, Rialp, Madri 1997,
tomo I, p. 164.
[4] São
Josemaria, Via Crucis, VIII estação, 5.
[5] Fernando
Ocáriz, Carta Pastoral 1/11/2019, n. 6.
[6] Francisco, Christus
vivit, n.31
[7] Ibid.,
n.152.
[8] São
João Paulo II, Ângelus 13-II-1994.
[9] Salvador
Bernal, Recuerdo de Álvaro del Portillo, Rialp, Madri 1996, p.
278. Veja aqui o vídeo da tertúlia em que Dom Álvaro fala sobre este provérbio:
[10] Fernando
Ocáriz, Carta Pastoral 1/11/2019, n.16.
[11] Ibid.
, n.5.
[12] Ibid.,
n. 19.
[13] Ibid.,
n. 19.
[14] Salvador
Bernal, Recuerdo de Álvaro del Portillo, Rialp, Madri 1996, p.
179.
[15] Fragmento
da oração pública para pedir a intercessão de São Josemaria.
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