A EDUCAÇÃO NA IGREJA ANTIGA E A SUA RELAÇÃO COM A
COMUNIDADE ECLESIAL
nov 13, 2024
por Dom Vital Corbellini
Bispo da Diocese de Marabá
Introdução
Os Padres da Igreja, os primeiros escritores cristãos,
receberam uma educação dentro do sistema educacional grego romano que visava
tornar as pessoas cidadãs, membros da vida civil e comunitária. Pela educação
eles eram percebidos pessoas livres, capazes de coordenar serviços na
sociedade. Essa era uma educação básica, popular que possibilitava o
conhecimento das ciências na época. A filosofia delineava valores comunitários
e sociais. Eles frequentavam as escolas normais que o Império romano oferecia a
todos os povos dominados. Para os Padres da Igreja, a educação recebida também
visava o conhecimento de Jesus Cristo, da Igreja, a prática da Palavra de Deus
e o engajamento comunitário.
A existência das Academias
As Universidades não existiam na época, mas, sim, as
Academias em alguns lugares do Império romano como Atenas, Constantinopla,
Alexandria, Antioquia, entre outras cidades, de modo que uma educação bem
fundamentada era lhes dada, pois se tratava de um ensino superior, do ponto de
vista atual. Os padres foram educados nesse sistema educacional, na retórica,
último degrau no estudo, que os impulsionava a não só a bem falar ao público e
a ter o domínio no saber, através dos argumentos, mas essa servia para esclarecimento
das coisas, na liturgia, na interpretação da Sagrada Escritura para o povo
diante das heresias e na necessidade de dar respostas por parte da Igreja
diante dos debates teológicos, cristológicos e pneumatológicos. O estudo
favoreceu a elaboração de uma ideia e de uma educação para a vida e para o
amor. Para os padres da Igreja a retórica visava à verdade das coisas e não
simplesmente os discursos nos tribunais, palcos ou nos púlpitos das Igrejas[1]. Se os Padres freqüentavam escolas dos
pagãos, com o tempo eles encaminharam a partir da educação, a constituição de
escolas próprias em vista da formação sacerdotal, escolas bíblicas e
cristológicas nas suas comunidades. No momento em que existe a preocupação,
ação da Igreja, dos governos em relação à educação é importante dar uma visão
de como os padres dos primeiros séculos encararam a educação e da forma como a
viveram em seu tempo na relação comunitária.
Os cristãos
Os seguidores de Jesus, os cristãos freqüentavam as escolas
dos pagãos como quaisquer outros alunos. No século II, a Carta a Diogneto
afirmou que os cristãos não se distinguiam de outras pessoas nem por terra, ou
costumes. Não possuíam uma língua estranha ou algum modo especial de vida, mas
vivendo em cidades gregas e bárbaras adaptavam-se aos costumes do lugar quanto
à roupa, ao alimento e testemunhavam um modo de vida social que era admirável
para todos e paradoxal[2].
No mundo grego romano existiam três formas de escolas, na
qual os pagãos e os cristãos participavam das mesmas: primeiro, os alunos
freqüentavam o “Ludus Literarius”, isto é, o primário, onde os meninos e as
meninas entre os sete e os doze anos aprendiam a ler, a escrever e a fazer as
primeiras operações de cálculo. Depois vinha a “Gramática”, onde os
adolescentes aprendiam as obras e o estilo dos escritores mais famosos, sejam
eles gregos, sejam latinos e por fim vinha a “Escola da Retórica” onde os jovens
e adultos conseguiam a suma do saber[3].
O aprendizado da filosofia
Nestas escolas, os alunos aprendiam também a filosofia.
Alguns autores dos primeiros séculos davam valor à filosofia helênica na sua
escola como Justino de Roma e Clemente de Alexandria. Orígenes fez uma leitura
da filosofia em chave cristã. Já Tertuliano não via com simpatia a influência
da filosofia no cristianismo ainda que ele dependesse de sua teologia da
filosofia sobretudo, a estóica[4]. No século IV haverá uma abertura sempre
maior à filosofia clássica de uma forma particular, com os padres capadócios.
Basílio recomendará a leitura dos autores gregos e latinos com o intuito que
eles aprofundassem ainda mais o estudo da Sagrada Escritura. “Quando se
apresentam fatos ou palavras de homens excelentes, segui-os com espírito de
emulação e fazer o possível para imitá-los”[5].
A juventude cristã
A juventude cristã tinha frequentemente mestres pagãos cujo
ensinamento era ligado à mitologia, à racionalidade, às tradições pagãs. Havia
casos de mestres cristãos apreçados pelos pagãos e de mestres pagãos que se
gloriavam de alunos cristãos. Por exemplo o reitor pagão Libânio tinha relações
com Basílio e João Crisóstomo. Proerésio foi mestre de Gregório de Nazianzo e
do pagão Eunápio. Mário Vitorino, sendo mestre pagão, se converteu ao
cristianismo, ao professar a sua fé em uma forma pública[6].
Autores cristãos, fundadores de escolas
Justino mártir, Ireneu de Lião, Tertuliano foram fundadores
de escolas teológicas não ligadas exclusivamente às Sagradas Escrituras.
Justino falou que o nome de cristãos possibilitava a perseguição. “Não
castigais ninguém que foi acusado diante dos vossos tribunais antes que ele
seja réu convicto. Contudo, quando se trata de nós, tomais o nome como prova,
sendo que, se for pelo nome, deveríeis antes castigar os nossos acusadores”[7]. O bispo de Lião fundou um centro
cultural pela defesa da apostolicidade da Igreja na unidade da sucessão dos
apóstolos e a presença do bispo como aquele que garantia a transmissão da
verdade revelada. Com Tertuliano falava-se da verdade como o aspecto fundamental
na transmissão do cristianismo. Em Alexandria Orígenes imprimiu ensinamentos
religiosos relacionados ao mundo transcendente como Deus, mistério trinitário,
anjos, almas, em relação ao mundo histórico, criação, encarnação do Verbo,
ressurreição e castigo, o mundo humano, o livre arbítrio, a sabedoria, o dom
humano de ser imagem de Deus[8].
A visão da educação a partir dos Padres da Igreja
Clemente Alexandrino dizia que a sabedoria divina é grande
por tomar conta de seus filhos em diversos modos no cuidado da nossa salvação.
O pedagogo, no caso Cristo, testemunha em favor daqueles que cumprem o bem e
chama-os nessa prática (do bem), admoestando-os para não se inclinarem aos
pecados mas para que possam ter uma vida melhor[9]. Clemente chamou o Verbo encarnado de
Pedagogo da humanidade que se serviu das mais diversas manifestações de sua
mesma sabedoria para salvar os mais infortunados na vida. Ele também disse que
somos alunos necessitados das palavras do Mestre para que dê ânimo aos outros.
Assim como os bons não necessitam de médico, mas os doentes (cf. Mc 2,17),
assim também nós necessitamos do Salvador. Nós somos doentes nesta vida por
desejos não bons provenientes de nossas intemperanças e de todas as outras
inflamações de nossas paixões. O Pedagogo nos admoesta com remédios doces e
também com remédios amargos. Temos a necessidade do Salvador para que nos guie
para superação da cegueira apontando-nos à luz, nós que estamos com sede para a
fonte da água viva porque aqueles que beberão da mesma nunca mais terão sede(cf
Jo 4,14)[10].
Jesus, o Educador da Humanidade
Clemente Alexandrino reconheceu que sem Jesus, o Educador da
humanidade não haveria vida, mas a morte. Como as crianças e os adolescentes
precisam de seus educadores, nós temos a necessidade do Mestre, Jesus Cristo
para assim não ser privados de uma educação que leve à separação dos grãos com
o celeiro que serão recolhidos no Pai[11]. Assim é o nosso Pedagogo: bom e justo.
Ele não veio para ser servido, mas para servir a todos(cf. Mt 20,28) e por isso
o evangelho mostra-o dando a sua vida por nós. Ele oferece o que há de mais
precioso, a sua alma, a sua vida para toda a humanidade(cf. Jo 15,13)[12].
A educação como ensino em família
A educação entendida como ensino deve começar em família.
São João Crisóstomo, Bispo e Padre da Igreja nos séculos IV e V teve presentes
alguns pontos no sentido que os pais eduquem os seus filhos e filhas com
solicitude, admoestando-os no Senhor. A juventude tem necessidade que as
pessoas a corrija, a acompanhe, a nutre. Uma consideração é levada em conta: a
conservação da castidade. Neste campo a juventude sofre os danos maiores; e
para superá-los nisso, há a necessidade de muita atenção e muita luta. Um grande
penhor foi dado aos pais, os seus filhos e as filhas. Faça-se o possível para
encaminhá-los no bem para que o maligno não os carregue consigo. A preocupação
em formar o ânimo dos filhos e das filhas esteja na vida dos pais. Deve-se ter
presente a formação das virtudes[13]. Os filhos e as filhas sejam educados e
admoestados no Senhor(cf. Ef 6,4). Se os seres humanos são valorizados por
esculpir as estátuas dos reis, gozando de muita honra, “Nós que tornamos mais
bela imagem real, o homem de fato é imagem de Deus (cf. Gn 1,26) não gozaremos
dos bens imensos, admitido que a nossa obra torne a verdadeira semelhança”?[14]. São João Crisóstomo dizia que a
verdadeira semelhança é a virtude da alma, porque acontece a educação dos
filhos e das filhas para serem bons, para que dominem a ira, as ofensas,
qualidades divinas que nós as educamos para serem generosos, amantes das pessoas
humanas e do Senhor Deus[15].
A educação é dada na comunidade
A educação também devia ser feita pela comunidade eclesial.
São Gregório de Nazianzo, bispo de Constantinopla, século IV falava da boa
educação, o seu significado e noção. Todos os seres humanos dotados de
inteligência concordam que a educação é o primeiro dos nossos bens e a educação
mais excelente não deveria levar em conta só os discursos inteligíveis, sendo
dada na comunidade, em vista do dom da salvação. Em relação as ciências pagãs,
São Gregório dizia que o cristão aceita a contemplação e a investigação da
natureza. Rejeita-se toda ciência que leve aos demônios, ao erro, à perdição. A
educação não seria desprezada, do contrário, considerar-se-iam estultos e sem
educação aqueles que assim pensam e querem que todos convenham com eles, para a
superação da ignorância[16].
A educação e os bens eternos
A educação tinha como fim último a elevação aos bens
eternos. Clemente Alexandrino interpretou a palavra de Jesus: “A tua fé te
salvou”(Mt 5,34) no sentido de que a salvação é dada em relação à fé e às
obras. O fiel deve afastar-se da escravidão da carne e dos vícios para assim
alcançar a demora eterna na qual é destinado[17]. Agostinho tinha presente o impulso que
deve ser dado à essa educação. Como a educação de um indivíduo dá-se por
etapas, assim também aquela do gênero humano e por isso o povo de Deus eleva-se
das realidades temporais à compreensão daquelas eternas, das realidades
visíveis para aquelas invisíveis. Ele dizia que é ótima coisa quando a alma
humana não está presa aos desejos terrestres; ela começa a se habituar a
esperar por Deus diante dos bens mesquinhos deste mundo espere por aqueles da
vida eterna[18]. A educação da alma, do interior da
pessoa humana é uma das coisas mais difíceis de serem feitas. Uma coisa é
atenção às feridas e doenças no corpo; outra coisa é acalmar a fome e a sede
semelhantes de modo a ajudar os outros. Quando se trata de ajudar os mais
necessitados nós damos uma ajuda aos seus corpos: no entanto deveria ter outra
ajuda pelo ensinamento, na qual nós cumprimos uma obra educativa sobre os seus
ânimos. O bispo de Hipona considerava essa arte educativa, que é a arte médica
da alma, vem das mesmas divinas Escrituras distinguindo-se em dois momentos:
admoestação e a instrução. Se a primeira dá-se sobre o temor, a segunda é sobre
o amor. Quem educa deve ter em conta o amor. A educação que vem de Deus para o
ser humano é dada pelos dois Testamentos. Se o Antigo prevaleceu mais o temor
no Novo Testamento é o amor. Desta forma quem ama o próximo faz o possível para
que o corpo e a alma se salvem e que esse(o próximo) tema a Deus e o ame[19].
Os Padres da Igreja consideraram a educação como algo
importante que levasse ao saber, à vida comunitária, como forma de levar as
pessoas à verdade das coisas, em suas famílias, comunidades e sociedade,
sobretudo a verdade que é Jesus Cristo, a Igreja e o ser humano.
[1] Cfr. A. Quacquarelli. Retorica.
In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane.
Genova-Milano: Marietti, 2008, pg. 4501
[2]Cfr. Carta a Diogneto, 5,1-4.
In: Padres Apologistas. São Paulo: Paulus, 1995.
[3]Cfr. B. Amata, Scuola. In: Nuovo
Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane, pg. 4816.
[4] Cfr. Idem, pgs. 4816-4817.
[5]Basilio I Cesarea. Discorso ai
Giovani, IV,2, a cura di M. Naldini.. Firenze: Nardini Editore,
1990.
[6] Cfr. B. Amata, Scuola.
In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane., pg.
4817. Ver também: Santo Agostinho. Confissões, VIII, 2,5. São
Paulo: Paulus, 1997.
[7] Cfr. Justino de Roma. I
Apologia, 4,4-5. São Paulo: Paulus, 1995.
[8] Cfr. B. Amata, Scuola.
In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane., pg.
4819.
[9] Clemente Alessandrino. Il
Pedagogo, I, 74. In: La Teologia dei padri. Roma: Città Nuova
Editrice, 1974, pg. 100.
[10] Cfr. Idem, pg. 100.
[11] Cfr. Ibidem, pg. 101.
[12] Cfr. Ibidem, pg. 101.
[13] Cfr.Giovanni Crisostomo. Omelie
sulla prima lettera a Timoteo, 9,2. In: La Teologia dei padri,
3. Roma: Città Nuova Editrice, 1974, pgs. 381-382.
[14] Idem, 21,4. pg. 385.
[15] Cfr. Ibidem, pg. 386.
[16] Cfr. Gregório di Nazianzo. Discorso
funebre in onore di Basílio il Grande, 11. In: La Teologia dei
padri, 3. pg. 27.
[17] Cfr. Clemente Alessandrino. Stromata, VI,
108,4. In: La Teologia dei padri, 2. pg. 180.
[18] Cfr. Agostino. La Città di Dio, X,14.
In: La Teologia dei padri, 4, pg. 238.
[19] Cfr. Agostino. I costumi della
Chiesa cattolica,, I, 55-56. In: La Teologia dei padri,
1, pgs. 267-268.
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