A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus
sobre o mundo
Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este
artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na
obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério.
Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma
colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.
01/06/2025
Criação a caminho
Apresentar o trabalho humano como participação no poder
criador de Deus é possível quando se reconhece que a criação possui
uma dimensão histórica intrínseca, está in statu viae –
em estado de caminho – e, portanto, destinada a ser concluída
precisamente pelo trabalho. Um ponto do Catecismo da Igreja Católica
(1997) ilustra de forma sugestiva este aspecto: “A criação tem sua
bondade e sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acabada das mãos
do Criador. Ela é criada "em estado de caminhada" ("in statu
viae") para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a
destinou” (n. 302). O Concílio Vaticano II havia afirmado claramente esta mesma
perspectiva, desenvolvendo-a em diversos pontos da constituição pastoral Gaudium
et spes, com o fim de expor o valor das atividades humanas, sua legítima
autonomia e sua elevação, pela caridade, ao mistério pascal de Jesus Cristo:
“Uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana
individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos
séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus
[...]. Os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas
famílias, de tal modo exercem a própria atividade que prestam conveniente
serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu
trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal
para a realização dos desígnios de Deus na história” (Gaudium et spes, n.
34).
Ao prolongar a obra do Criador, o ser humano, por sua
condição de criatura, não compartilha a transcendência do ato criador de Deus,
mas coopera em seu desenvolvimento ao longo do tempo. Sua participação
inscreve-se no progresso que a criação experimentou e continuará experimentando
na história. E o faz com criatividade, reflexo de seu ser feito à imagem e
semelhança de Deus.
Entendido e apresentado como participação no poder
divino, o trabalho deixa de ser uma mera atividade extrínseca e
transitória, limitada à satisfação de necessidades materiais. Não pode,
tampouco, ser reduzido a uma carga imposta inexoravelmente ao ser humano, fonte
só de fadiga e estresse: embora esta concepção seja frequente, assumi-la
implica adotar uma perspectiva teológica e antropologicamente errônea:
“Devemos convencer-nos, portanto, de que o trabalho é uma
maravilhosa realidade que se nos impõe como uma lei inexorável, e de que todos,
de uma maneira ou de outra, lhe estão submetidos, ainda que alguns pretendam
fugir-lhe. Aprendei-o bem: esta obrigação não surgiu como uma sequela do pecado
original nem se reduz a um achado dos tempos modernos. Trata-se de um meio
necessário que Deus nos confia aqui na terra, dilatando os nossos dias e
fazendo-nos participar do seu poder criador, para que ganhemos o nosso sustento
e simultaneamente colhamos frutos para a vida eterna: o
homem nasce para trabalhar, como as aves para voar” (Amigos de Deus,
n. 57).
O cristianismo convida-nos, portanto, a mudar de atitude
diante do trabalho. Seria uma visão reducionista considerá-lo unicamente como
uma necessidade inevitável da qual desejaríamos prescindir ou como um obstáculo
para realização de nossos desejos e nossa personalidade. A antropologia bíblica
apresenta-o, pelo contrário, como uma contribuição inteligente para o progresso
da criação, um mandato criativo que Deus outorgou aos primeiros seres humanos
antes do pecado de Adão:
“Desde o começo da sua criação, o homem teve que trabalhar.
Não sou eu que o invento: basta abrir a Sagrada Bíblia nas primeiras páginas
para ler que - antes de que o pecado e, como consequência dessa ofensa, a morte
e as penalidades e misérias entrassem na humanidade - Deus formou Adão com o
barro da terra e criou para ele e para a sua descendência este mundo tão
belo, ut operaretur et custodiret illum (Gn 2, 15), para que o
trabalhasse e o guardasse” (Amigos de Deus n. 57).
Prolongar a criação mediante o próprio trabalho não é, no
entanto, um processo automático. Não se trata de inserir mecanicamente a
atividade humana dentro de um ato criador divino que atravessa a história. Para
participar na obra criadora mediante seu trabalho, o homem precisa ser dócil ao
Espírito Santo, Espírito criador e identificar-se com Jesus Cristo, sujeito da
recapitulação e da reconciliação do mundo com Deus. Para poder realmente
cooperar na ação divina, quer na obra da criação, redenção ou santificação, é
preciso estar em estado de graça, o que manifesta que o amor de Deus é atual no
sujeito. Em poucas palavras, só sendo homens e mulheres de oração, e transformando
o trabalho em oração (cfr. Sulco, n. 497; Amigos de Deus, n.os 64-67), o
trabalho converte-se “no ponto de encontro de nossa vontade com a vontade
salvadora de nosso Pai celestial” (Carta 6, n. 13).
Um programa de tal envergadura pode se realizar se o
trabalho entra na vida de oração de quem o exerce, como tema
de seu diálogo com Deus. Só assim a vontade de quem trabalha pode se
identificar com a vontade de Deus: compreende-se onde e como exercitar a
caridade e as outras virtudes cristãs, recebe-se luzes para examinar a própria
consciência, orienta-se a própria atividade para a verdade e o bem, promove-se
programas que tendem ao bem comum e à difusão do Evangelho de Jesus Cristo.
Dar a forma de Cristo ao mundo
Ao meditar sobre o trabalho e convertê-lo em objeto de
oração pessoal, o cristão aprende a enxertar sua atividade na obra da criação e
da salvação. Seguindo as inspirações do Espírito Santo, pode transformar o
mundo dando-lhe a forma de Jesus Cristo, e converter assim o
trabalho humano em opus Dei, trabalho de Deus. É este o
sentido profundo da afirmação de São Josemaria de que o trabalho é o eixo em
torno do qual deve girar a santidade e o apostolado daqueles que aderem à nova
fundação que Deus, através dele, suscitou (cfr. Carta 31, n.os 10-11).
A centralidade do trabalho não é meramente circunstancial,
já que as virtudes e o apostolado desenvolvem-se normalmente no âmbito das
relações e dos lugares vinculados à atividade profissional de cada um.
Trata-se, sobretudo, de uma centralidade do projeto na medida em que ordena as
realidades terrenas a Deus precisamente a partir do que o cristão concebe,
realiza e a que dá andamento através de seu trabalho.
Estamos num mundo em construção, em uma história aberta. É
necessário, por isso, ouvir o Espírito para compreender, nas situações mutáveis
da vida, como dar ao trabalho humano a forma Christi. “Ao
empreender vosso trabalho, seja ele qual for, fazei, meus filhos, um exame para
comprovar, na presença de Deus, se o espírito que inspira essa tarefa é,
realmente, espírito cristão, tendo em conta que a mudança das circunstâncias
históricas – com as modificações que ele introduz na configuração da sociedade
– pode fazer que o que foi justo e bom em dado momento, deixe de sê-lo” (Carta 29,
n. 18). Ainda em caminho rumo à cidade de Deus, o cristão é chamado, por sua
vocação batismal, a construir a cidade dos homens (Amigos de Deus, n.
210). Deve-se, portanto, avaliar todas as dimensões que contribuem para o
progresso dos homens: o saber, a técnica, a arte, a ciência (cfr. Sulco, n.
293).
A visão positiva do progresso e da pesquisa cientifica,
fruto de uma compreensão do trabalho como participação no projeto de Deus para
o mundo, não ignora uma legítima preocupação pelas questões éticas que o
progresso cientifico e técnico pode apresentar. O espírito cristão sugere, no
entanto, centrar a atenção sobretudo na formação e nas virtudes daqueles que
trabalham, para que possam atuar com responsabilidade na busca da verdade e do
bem. Para os cristãos isto representa alcançar uma síntese madura entre fé e
razão, ética e técnica, progresso cientifico e progresso humano. Assim o
inspiram tanto o otimismo cristão quanto o amor apaixonado por um mundo que,
tendo saído bom das mãos de Deus, foi confiado ao cuidado e ao aperfeiçoamento
pelo ser humano através de seu trabalho (cfr. Entrevistas, n.os 23,
116-117).
“Quis o Senhor que os seus filhos, os que recebemos o dom da
fé, manifestemos a original visão otimista da criação, ou ‘amor ao mundo’ que
palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu
trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal” (Forja n.
703).
Como pai de um caminho eclesial específico e de uma nova
fundação, o pensamento de São Josemaria sobre o papel do trabalho humano nos
planos de Deus não só se encontra em seus numerosos ensinamentos sobre o
sentido espiritual e teológico do trabalho, mas reflete-se ainda nas numerosas
obras inspiradas por ele e promovidas por seus filhos e filhas em todo o mundo.
Transmitir uma visão positiva da dignidade do trabalho como
a que nos é legada pelos escritos e pela pregação do fundador do Opus Dei,
traz consequências muito importantes para a psicologia do homem contemporâneo,
sua vida social e a organização de seu tempo. De fato, o trabalho continua
sendo um âmbito de tensões e desafios, que somos chamados a discernir e a
integrar e que gera conflitos na conciliação entre a profissão e a vida
familiar, bem como na relação entre o esforço profissional e o necessário descanso.
Viver uma ética baseada na justiça torna-se, além disso, difícil em um ambiente
de relações muitas vezes marcadas pelo egoísmo, a autoafirmação e a busca
desmedida do lucro.
Tudo isso permite compreender que, em uma história marcada
pelo pecado do homem, cooperar na tarefa de levar ao seu fim um mundo
criado in statu viae implica também reordenar o que está
desordenado, curar o que o pecado feriu. Em suma, significa participar na obra
redentora de Cristo (cfr. É Cristo que passa, n.os 65,
183). Tal participação em si mesma é um dom de Deus e só se torna possível
quando, na própria vida, o homem rejeita o pecado e vive em graça, como filho
de Deus guiado pelo Espírito. O próximo artigo abordará algumas reflexões sobre
a dimensão histórica da atividade humana, situando o trabalho na intercessão
entre criação e redenção.
Esta série é coordenada pelo prof. Giuseppe
Tanzella-Nitti. Conta com outros colaboradores, alguns dos quais são
professores e professoras da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma).
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