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sexta-feira, 4 de julho de 2025

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo (Parte 2/2)

Identidade e Missão (Opus Dei)

A cooperação do trabalho humano para o projeto de Deus sobre o mundo

Quarto artigo da série “A caminho do centenário”. Este artigo apresenta a visão de São Josemaria sobre o trabalho como participação na obra criadora de Deus, em continuidade com a tradição bíblica e o Magistério. Longe de ser uma tarefa meramente instrumental e extrínseca, o trabalho é uma colaboração ativa no aperfeiçoamento do mundo criado.

01/06/2025

Criação a caminho

Apresentar o trabalho humano como participação no poder criador de Deus é possível quando se reconhece que a criação possui uma dimensão histórica intrínseca, está in statu viae – em estado de caminho – e, portanto, destinada a ser concluída precisamente pelo trabalho. Um ponto do Catecismo da Igreja Católica (1997) ilustra de forma sugestiva este aspecto: “A criação tem sua bondade e sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acabada das mãos do Criador. Ela é criada "em estado de caminhada" ("in statu viae") para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou” (n. 302). O Concílio Vaticano II havia afirmado claramente esta mesma perspectiva, desenvolvendo-a em diversos pontos da constituição pastoral Gaudium et spes, com o fim de expor o valor das atividades humanas, sua legítima autonomia e sua elevação, pela caridade, ao mistério pascal de Jesus Cristo:

“Uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus [...]. Os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria atividade que prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história” (Gaudium et spes, n. 34).

Ao prolongar a obra do Criador, o ser humano, por sua condição de criatura, não compartilha a transcendência do ato criador de Deus, mas coopera em seu desenvolvimento ao longo do tempo. Sua participação inscreve-se no progresso que a criação experimentou e continuará experimentando na história. E o faz com criatividade, reflexo de seu ser feito à imagem e semelhança de Deus.

Entendido e apresentado como participação no poder divino, o trabalho deixa de ser uma mera atividade extrínseca e transitória, limitada à satisfação de necessidades materiais. Não pode, tampouco, ser reduzido a uma carga imposta inexoravelmente ao ser humano, fonte só de fadiga e estresse: embora esta concepção seja frequente, assumi-la implica adotar uma perspectiva teológica e antropologicamente errônea:

“Devemos convencer-nos, portanto, de que o trabalho é uma maravilhosa realidade que se nos impõe como uma lei inexorável, e de que todos, de uma maneira ou de outra, lhe estão submetidos, ainda que alguns pretendam fugir-lhe. Aprendei-o bem: esta obrigação não surgiu como uma sequela do pecado original nem se reduz a um achado dos tempos modernos. Trata-se de um meio necessário que Deus nos confia aqui na terra, dilatando os nossos dias e fazendo-nos participar do seu poder criador, para que ganhemos o nosso sustento e simultaneamente colhamos frutos para a vida eternao homem nasce para trabalhar, como as aves para voar” (Amigos de Deus, n. 57).

O cristianismo convida-nos, portanto, a mudar de atitude diante do trabalho. Seria uma visão reducionista considerá-lo unicamente como uma necessidade inevitável da qual desejaríamos prescindir ou como um obstáculo para realização de nossos desejos e nossa personalidade. A antropologia bíblica apresenta-o, pelo contrário, como uma contribuição inteligente para o progresso da criação, um mandato criativo que Deus outorgou aos primeiros seres humanos antes do pecado de Adão:

“Desde o começo da sua criação, o homem teve que trabalhar. Não sou eu que o invento: basta abrir a Sagrada Bíblia nas primeiras páginas para ler que - antes de que o pecado e, como consequência dessa ofensa, a morte e as penalidades e misérias entrassem na humanidade - Deus formou Adão com o barro da terra e criou para ele e para a sua descendência este mundo tão belo, ut operaretur et custodiret illum (Gn 2, 15), para que o trabalhasse e o guardasse” (Amigos de Deus n. 57).

Prolongar a criação mediante o próprio trabalho não é, no entanto, um processo automático. Não se trata de inserir mecanicamente a atividade humana dentro de um ato criador divino que atravessa a história. Para participar na obra criadora mediante seu trabalho, o homem precisa ser dócil ao Espírito Santo, Espírito criador e identificar-se com Jesus Cristo, sujeito da recapitulação e da reconciliação do mundo com Deus. Para poder realmente cooperar na ação divina, quer na obra da criação, redenção ou santificação, é preciso estar em estado de graça, o que manifesta que o amor de Deus é atual no sujeito. Em poucas palavras, só sendo homens e mulheres de oração, e transformando o trabalho em oração (cfr. Sulco, n. 497; Amigos de Deus, n.os 64-67), o trabalho converte-se “no ponto de encontro de nossa vontade com a vontade salvadora de nosso Pai celestial” (Carta 6, n. 13).

Um programa de tal envergadura pode se realizar se o trabalho entra na vida de oração de quem o exerce, como tema de seu diálogo com Deus. Só assim a vontade de quem trabalha pode se identificar com a vontade de Deus: compreende-se onde e como exercitar a caridade e as outras virtudes cristãs, recebe-se luzes para examinar a própria consciência, orienta-se a própria atividade para a verdade e o bem, promove-se programas que tendem ao bem comum e à difusão do Evangelho de Jesus Cristo.

Dar a forma de Cristo ao mundo

Ao meditar sobre o trabalho e convertê-lo em objeto de oração pessoal, o cristão aprende a enxertar sua atividade na obra da criação e da salvação. Seguindo as inspirações do Espírito Santo, pode transformar o mundo dando-lhe a forma de Jesus Cristo, e converter assim o trabalho humano em opus Dei, trabalho de Deus. É este o sentido profundo da afirmação de São Josemaria de que o trabalho é o eixo em torno do qual deve girar a santidade e o apostolado daqueles que aderem à nova fundação que Deus, através dele, suscitou (cfr. Carta 31, n.os 10-11).

A centralidade do trabalho não é meramente circunstancial, já que as virtudes e o apostolado desenvolvem-se normalmente no âmbito das relações e dos lugares vinculados à atividade profissional de cada um. Trata-se, sobretudo, de uma centralidade do projeto na medida em que ordena as realidades terrenas a Deus precisamente a partir do que o cristão concebe, realiza e a que dá andamento através de seu trabalho.

Estamos num mundo em construção, em uma história aberta. É necessário, por isso, ouvir o Espírito para compreender, nas situações mutáveis da vida, como dar ao trabalho humano a forma Christi. “Ao empreender vosso trabalho, seja ele qual for, fazei, meus filhos, um exame para comprovar, na presença de Deus, se o espírito que inspira essa tarefa é, realmente, espírito cristão, tendo em conta que a mudança das circunstâncias históricas – com as modificações que ele introduz na configuração da sociedade – pode fazer que o que foi justo e bom em dado momento, deixe de sê-lo” (Carta 29, n. 18). Ainda em caminho rumo à cidade de Deus, o cristão é chamado, por sua vocação batismal, a construir a cidade dos homens (Amigos de Deus, n. 210). Deve-se, portanto, avaliar todas as dimensões que contribuem para o progresso dos homens: o saber, a técnica, a arte, a ciência (cfr. Sulco, n. 293).

A visão positiva do progresso e da pesquisa cientifica, fruto de uma compreensão do trabalho como participação no projeto de Deus para o mundo, não ignora uma legítima preocupação pelas questões éticas que o progresso cientifico e técnico pode apresentar. O espírito cristão sugere, no entanto, centrar a atenção sobretudo na formação e nas virtudes daqueles que trabalham, para que possam atuar com responsabilidade na busca da verdade e do bem. Para os cristãos isto representa alcançar uma síntese madura entre fé e razão, ética e técnica, progresso cientifico e progresso humano. Assim o inspiram tanto o otimismo cristão quanto o amor apaixonado por um mundo que, tendo saído bom das mãos de Deus, foi confiado ao cuidado e ao aperfeiçoamento pelo ser humano através de seu trabalho (cfr. Entrevistas, n.os 23, 116-117).

“Quis o Senhor que os seus filhos, os que recebemos o dom da fé, manifestemos a original visão otimista da criação, ou ‘amor ao mundo’ que palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal” (Forja n. 703).

Como pai de um caminho eclesial específico e de uma nova fundação, o pensamento de São Josemaria sobre o papel do trabalho humano nos planos de Deus não só se encontra em seus numerosos ensinamentos sobre o sentido espiritual e teológico do trabalho, mas reflete-se ainda nas numerosas obras inspiradas por ele e promovidas por seus filhos e filhas em todo o mundo.

Transmitir uma visão positiva da dignidade do trabalho como a que nos é legada pelos escritos e pela pregação do fundador do Opus Dei, traz consequências muito importantes para a psicologia do homem contemporâneo, sua vida social e a organização de seu tempo. De fato, o trabalho continua sendo um âmbito de tensões e desafios, que somos chamados a discernir e a integrar e que gera conflitos na conciliação entre a profissão e a vida familiar, bem como na relação entre o esforço profissional e o necessário descanso. Viver uma ética baseada na justiça torna-se, além disso, difícil em um ambiente de relações muitas vezes marcadas pelo egoísmo, a autoafirmação e a busca desmedida do lucro.

Tudo isso permite compreender que, em uma história marcada pelo pecado do homem, cooperar na tarefa de levar ao seu fim um mundo criado in statu viae implica também reordenar o que está desordenado, curar o que o pecado feriu. Em suma, significa participar na obra redentora de Cristo (cfr. É Cristo que passa, n.os 65, 183). Tal participação em si mesma é um dom de Deus e só se torna possível quando, na própria vida, o homem rejeita o pecado e vive em graça, como filho de Deus guiado pelo Espírito. O próximo artigo abordará algumas reflexões sobre a dimensão histórica da atividade humana, situando o trabalho na intercessão entre criação e redenção.

Esta série é coordenada pelo prof. Giuseppe Tanzella-Nitti. Conta com outros colaboradores, alguns dos quais são professores e professoras da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma).

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/a-cooperacao-do-trabalho-humano-para-o-projeto-de-deus-sobre-o-mundo/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF