Translate

quarta-feira, 26 de maio de 2021

A Igreja e a escravidão no Brasil (Parte 2/3)

Presbíteros

Em síntese: O Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil ocasionou a publicação de várias obras atinentes ao assunto, portadoras de notícias e documentos poucos divulgados referentes à ação humanizadora da Igreja em favor dos escravos. Três dessas obras são utilizadas nas páginas seguintes, pondo-se em relevo traços da atitude da Igreja frente à escravatura.

A ocorrência do Centenário da Abolição no Brasil oferece-nos ocasião de voltar ao assunto, valendo-se de obras recém-editadas sobre o mesmo e portadoras de novos dados, extraídos de Arquivos, que põem em mais claro relevo a ação humanizante da Igreja perante o fato escravagista. De modo especial referimo-nos a três publicações:

Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, A Escravidão. Convergências e Divergências. Ed. Folha de Viçosa 1988.

Idem, A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro 1988.

Jaime Balmes, A Igreja Católica em face da Escravidão, com Adendo do Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho: A Igreja e a Escravidão no Brasil, São Paulo 1988.

Estas três obras apresentam informações e documentos pouco divulgados, que passamos a resumir ou ocasionalmente transcrever nas páginas subseqüentes.

2.    Alforrias e “Mão Posta”

1. A alforria é ato de libertar um escravo. Tal prática foi notável no Brasil colonial não só em favor dos inválidos (como erroneamente já se disse).

Havia ocasiões propícias à concessão de alforria por parte dos senhores: festas familiares, confecção de testamento, visitas episcopais… A alforria  podia ser concedida também como recompensa à lealdade no serviço.

Além disto, registram-se os vários casos de escravos que compravam a sua liberdade ou a conseguiam através de padrinhos e madrinhas benfeitores.

Os libertos ajudavam os ex-companheiros de serviço a conseguirem a sua libertação. As próprias Irmandades emprestavam dinheiro para que o escravo se tornasse forro.

Podia outrossim ocorrer a chamada “coartação”: o escravo e o patrão estipulavam o preço do resgate, que o servo ia pagando aos poucos; entrementes, o cativo já gozava de vários direitos do homem livre.

Mais: os escravos que denunciassem um contrabando, eram libertados pelo Estado. Aqueles que encontrassem diamantes acima de vinte quilates, eram alforriados.

Na Bahia os negros organizaram “fundos de empréstimos” para facilitar a compra da alforria; essas organizações foram-se convertendo em sociedades emancipacionistas. A eficácia de tais instituições pode-se avaliar pelo seguinte depoimento de Herbert S. Klein, doutor pela Universidade de Chicago e autor do livro African Slavery in Latin America and the Caribbean, onde assevera:

“Na época do primeiro censo nacional brasileiro, em 1872, havia 4,2 milhões de pessoas de cor livres e 1,5 milhão de escravos. As pessoas de cor livres não apenas ultrapassavam em número os 3,8 milhões de brancos, mas também representavam 43% da população brasileira, de 10 milhões de habitantes. Tudo isto mais de uma década antes da abolição da escravatura” (pp. 241-3).

A Igreja incentivou as formas de libertação dos cativos, como bem dizia D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro:

“provemos que os aplausos tantas vezes dados a quem dava alforria, eram aplausos sinceros, nascidos de um coração ansioso de ver a liberdade refulgir mais e mais entre os homens à sombra da Cruz”  (Carta Pastoral anunciando a Lei nº 2040 de 27/09/1871).

2. A Manu posita (Mão posta) era a prática de angariar recursos para redimir cativos por parte de pessoas caridosas; estas eram chamadas “manuposteiros”. Constituiam associações com o Seu Regimento; os membros dessas entidades tinham cada qual a sua função: ora a de esmolér, que pedia donativos por ocasião das festas ou nas fazendas, nas igrejas, nas ermidas…, ora a de escriturar as receitas (escrivães), ora a de guardá-las e distribui-las na qualidade de tesoureiro…

Aliás, existiam na Igreja a Ordem da SS. Trindade, desde 1198, e a dos Mercedários ou Nolascos desde 1222, destinadas a redimir os cativos detidos pelos Sarracenos. A existência dessas ordens era, por si mesma, uma réplica à prática da escravatura: como explicar a arrecadação de elevadas somas para pôr em liberdade cativos, se de outro lado, os próprios portugueses aprisionavam africanos e os reduziam à escravidão? Os Trinitários e os Mercedários suscitaram, por seu trabalho, uma mentalidade anticativeiro, que se exprimiu no Brasil através dos manuposteiros. Assim descreve o historiador Vítor Ribeiro a solenidade do resgate realizada pelas Ordens Religiosas:

“Era revestida de pompas estranhas a expedição de resgates. Os redentores, depois de terem recolhido as esmolas em cofre especial, despediam-se de El-Rey e do seu convento, deixavam crescer  longas barbas, embarcavam com o cofre, e iam à Mauritânia expor-se a mil perigos, vexames e emboscadas com a cautela que a experiência lhes ia aconselhando; negociavam os resgates por intermédio do governo de Bey ou das autoridades e, por fim, conseguindo libertar os cativos, reconduziam-nos ao reino, onde faziam e publicavam longas listas de resgates, com os nomes, idades, naturalidades, condições de cativeiro e libertação e custo dos resgates… Depois, em dia aprazado, fazia-se em Lisboa solene procissão em que entravam várias  Ordens e Confrarias, especialmente a da Misericórdia e a Nossa Senhora do Resgate, a qual dava volta à Igreja velha da Misericórdia e regressava ao convento” (cf. História de Portugal, vol. IV , Damião Peres (Dir.) Barcellos, Portucalense Editora 1932, p. 565).

O Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, em 1871 escrevia na sua Carta Pastoral referente à Lei do Ventre Livre:

“A Igreja Católica alegra-se imensamente à vista do que acaba de realizar-se entre nós. E como não? Por ventura não é a Igreja Católica que deu ao mundo São João da Mata e que aprovou a Ordem dos seus Religiosos da Santíssima Trindade, cujo fim principal foi resgatar os que gemiam cativos em poder dos Sarracenos? Não foi a Igreja Católica que aprovou a Ordem dos Religiosos das Mercês, instituída por São Pedro Nolasco com o fim de resgatar os cativos que viviam sob o poder dos infiéis, obrigando-os a um heroísmo assombroso de caridade, ligando-os com um solene voto a se deixarem eles mesmos em ferros como penhora e reféns, se tanto fosse preciso para o resgate dos Cristãos? E a Igreja Católica não celebra há tantos séculos a 24 de setembro de cada ano a instituição dessa heróica Ordem Religiosa, criada por inspiração de Maria Santíssima, a quem a Igreja reconhece tanti operis Institutricem? E graças a Deus, no quinto dia dentro do oitavário desta festa é que a nova lei brasileira foi sancionada pela Augusta princesa Imperial Regente”.

Os frutos da mentalidade humanitária despertada pelo Cristianismo são atestados por vários relatos de viajantes e cronistas que passaram pelo Brasil. Entre outros, merece atenção Henry Koster. Filho de ingleses, nascido em Portugal, chegou ao Brasil em 1809. No seu livro Travels in Brazil relata viagens ao Nordeste e refere-se à condição dos escravos:

“Atesta Koster: “Os escravos no Brasil gozam de maiores vantagens que seus irmãos nas colônias britânicas. Os numerosos dias santos para os quais a Religião Católica exige observância, dão ao escravo muitos dias de repouso ou tempo para trabalhar em seu proveito próprio. Em trinta e cinco desses dias e mais nos domingos é-lhes permitido empregar seu tempo como lhes agradar”. Atribui à opinião pública força suficiente para obstar que os senhores diminuíssem o número destes dias, o que revela uma mentalidade altamente humanitária da sociedade de então.

Desce Koster a detalhes sobre as alforrias, porta aberta para a libertação dos cativos…

Destaca o papel não relevante das associações religiosas: “Os escravos possuem sua Irmandade como as pessoas livres, e a ambição que empolga geralmente o escravo é ser admitido numa dessas confrarias, e ser um dos oficiais ou diretores do conselho da sociedade”…

Focaliza a terna devoção dos cativos a Nossa Senhora do Rosário, “algumas vezes, pintada com a face e as mãos negras”. Ressalta que “os reis do Congo brasileiro invocam a Nossa Senhora do Rosário e são vestidos como vestem os brancos. Conservam, é verdade, a dança do seu país, mas nessas festas são admitidos pretos africanos de outras nações”. É que tribos de diversas regiões africanas, muitas até rivais na África, aqui se irmanavam sob o signo da Mãe comum, a Virgem Maria, que tanto amavam e veneravam.

Que os escravos eram respeitados se deduz deste assento: “Os escravos no Brasil são regularmente casados de acordo com as fórmulas da Igreja Católica. Os proclamas são publicados como se fossem para pessoas livres. Tenho visto vários casais felizes (tão felizes quanto podem ser os escravos), com grande número de filhos crescendo ao redor deles”. Nota ainda Koster que era permitido que os escravos se casassem com pessoas livres. Se a mulher era escrava, o filho permanecia cativo; mas se o homem era escravo e a mulher forra, o filho era também livre.

“Aos escravos pertencem os sábados de cada semana para providenciar sua própria subsistência, além dos domingos e dias santificados. Os que são diligentes raramente deixam de comprar sua liberdade. Os monges não guardam interferência alguma quanto às roçarias dadas aos escravos, e quando um desses morre ou obtém sua alforria, permitem que leguem seu pedaço de terra a qualquer companheiro de sua escolha. Os escravos alquebrados são carinhosamente providos de alimento e roupa”. (Grifo nosso).

Testemunha ainda que muitos agricultores tratavam sua escravaria com carinho. Aliás, alega textualmente: “Embora os negros sejam sustentados por seus amos, existindo terras com abundância, permitem aos escravos plantar o que quiserem e vender as colheitas a quem lhes aprouver. Muitos criam galinhas e porcos e, ocasionalmente, um cavalo para alugar e possuir o dinheiro assim obtido” (Transcrito do livro de J. Balmes: A Igreja Católica em face da Escravidão, pp. 108-110).

São estes alguns aspectos da história da escravidão no Brasil que devem ser postos em relevo para que se tenha uma visão tão objetiva e fiel quanto possível do período analisado.

A propósito:

TERRA, JOÃO EVANGELISTA MARTINS, A Igreja e o Negro no Brasil. Ed. Loyola 1983.
PR 274/1984, pp. 240-247 (síntese do livro acima).
Bíblia, Igreja e Escravidão. Coordenador João Evangelista Martins Terra S. J. Ed. Loyola 1983.
PR 267/1983, pp. 106-132.


https://www.presbiteros.org.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF