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terça-feira, 25 de maio de 2021

A Igreja e a escravidão no Brasil (Parte 1/3)

Presbíteros

A Igreja e a escravidão no Brasil

Em síntese: O Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil ocasionou a publicação de várias obras atinentes ao assunto, portadoras de notícias e documentos poucos divulgados referentes à ação humanizadora da Igreja em favor dos escravos. Três dessas obras são utilizadas nas páginas seguintes, pondo-se em relevo traços da atitude da Igreja frente à escravatura.

A ocorrência do Centenário da Abolição no Brasil oferece-nos ocasião de voltar ao assunto, valendo-se de obras recém-editadas sobre o mesmo e portadoras de novos dados, extraídos de Arquivos, que põem em mais claro relevo a ação humanizante da Igreja perante o fato escravagista. De modo especial referimo-nos a três publicações:

Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, A Escravidão. Convergências e Divergências. Ed. Folha de Viçosa 1988.

Idem, A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro 1988.

Jaime Balmes, A Igreja Católica em face da Escravidão, com Adendo do Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho: A Igreja e a Escravidão no Brasil, São Paulo 1988.

Estas três obras apresentam informações e documentos pouco divulgados, que passamos a resumir ou ocasionalmente transcrever nas páginas subseqüentes.

1.   O Tráfico Negro no Brasil e a Igreja

1. As tribos da África Ocidental praticavam a venda de homens negros como escravos. Procuravam assim os vencedores na guerra retirar algum lucro da vitória: trocavam por dinheiro ou mercadorias os adversários prisioneiros; para estes, era preferível ser vendidos como escravos a permanecer sob o domínio de africanos vencedores; estes tratavam ignominiosamente os vencidos.

No Brasil, a exploração das minas e demais riquezas naturais sugeriu aos portuguesas a procura de escravos na África – coisa, aliás que já outros povos (como, por exemplo, os árabes da península ibérica) praticavam, para atender aos serviços da agricultura e da indústria. Principalmente após D. Afonso, que reinou até 1453, os reis de Portugal perderam o controle sobre a importação de escravos, de modo que os colonos portugueses, levaram multidões de africanos para a Europa. Conseqüentemente também os trouxeram para o Brasil, fazendo negócios altamente lucrativos tanto para quem vendia como para quem comprava os negros.

2. A Igreja não se calou diante de tais costumes. Entre os documentos que o atestam, além dos que já foram citados em PR, existe uma carta do Papa João VIII, datada de setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da Sardenha, que diz:

“Há uma coisa a respeito da qual desejamos admoestar-vos em tom paterno; se não vos emendardes, cometereis grande pecado, e, em vez do lucro que esperais, vereis multiplicadas as vossas desgraças. Com efeito; por instituição dos gregos, muitos homens feitos cativos pelos pagãos são vendidos nas vossas terras e comprados por vossos cidadãos, que os mantêm em servidão. Ora consta ser piedoso e santo, como convém a cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos sejam postos em liberdade por amor a Cristo; a quem assim proceda, a recompensa será dada não pelos homens, mas pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isto exortamo-vos e com paterno amor vos mandamos que compreis dos pagãos alguns cativos e os deixeis partir para o bem de vossas almas” (Denzinger-Schönmetzer,  Enquirídio dos Símbolos e Definições nº 668).

O Papa Pio II, em 7 de outubro de 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime)¹.

Em 1571 Tomás de Mercado, teólogo de Sevilha, declarava desumana e ilícita a traficância de escravos, tanto mais que instaurava uma luta fratricida entre os próprios africanos. Em sua Summa de Tratos y Contratos, este autor afirmava não haver justificativa para negócio tão infame.

3. Houve mesmo sacerdotes que se sacrificaram, tanto no Brasil como fora, em favor dos escravos. Sejam citados, entre outros, os Padres Afonso Sandoval S. J. e Pedro Claver. O primeiro foi o pioneiro do trabalho em prol dos negros em Cartagena das Índias, porto de tráfico no Mar das Antilhas; com grande  coragem denunciou os maus tratos de muitos traficantes; através de seus escritos, tentou suscitar uma mentalidade antiescravagista; para melhor trabalhar, procurou conhecer a cultura africana a fim de entender mais perspicazmente aqueles pobres seres humanos que ele defendia.

Quanto a Pedro Claver, em 1610 chegou de Sevilha a Cartagena das Índias, onde o Pe. Sandoval lhe ensinou o amor aos negros. Na Colômbia foi ordenado sacerdote e passou a trabalhar com o Pe. Sandoval junto aos negros. No ano seguinte, foi para o Peru; retornou depois a Cartagena e assumiu também as missões entre os escravos das fazendas do interior. Durante toda a sua vida, cuidou de cerca de trezentos mil escravos. Em 1639, quando o Papa Urbano VIII publicou um documento em favor dos escravos, viveu dias felizes. Todavia esse servidor dos escravos morreu paralítico, de doença contraída nas missões da região pantanosa de Tolu e Finu, aos 8 de setembro de 1654

4. As Constituiçoens primeyras do Arcebispado da Bahia (1707) mais de uma vez se voltaram para a sorte dos escravos, procurando fazer que os senhores lhe propiciassem ou facilitassem os bens espirituais. Assim, por exemplo, no tocante ao sacramento do matrimônio, rezavam as Constituições:

“Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras cativas ou livres e seus senhores lhe não podem impedir o matrimônio nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por Ter outro justo impedimento, o não possa seguir, e, fazendo o contrário, pecam mortalmente e tomam sobre suas consciências culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação” (D. Sebastião Monteiro de Vide, Constituiçoens, título 71).

Os sacramentos da Eucaristia e da Penitência eram de fácil acesso aos escravos, principalmente na Quaresma, em vista do cumprimento do preceito pascal.

No concernente ao sacramento da Ordem, o impedimento para os escravos não era racial, mas provinha da própria condição de escravos. Regozijavam-se, porém, quando entravam em contatos com sacerdotes negros, que vinham da Costa de Angola ou da ilha de São Tomé, onde havia um cabido de cônegos todos negros.

5. Deve-se notar também o papel benéfico desempenhado pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cujas igrejas eram pontos de encontro de escravos e livres; aí cultuavam a Deus e faziam suas devoções como também exprimiam suas aspirações e deixavam via à tona seus íntimos sentimentos.

Dentre os Estatutos dessas Confrarias merecem destaque alguns tópicos como os seguintes:

“Toda pessoa, preta ou branca, de um ou outro sexo, forro ou cativo, de qualquer nação que seja, que quiser ser Irmão desta irmandade, irá à mesa ou à casa do Escrivão da Irmandade pedir-lhe faça assento de Irmandade” (cap. I do Compromisso da Irmandade da Paróquia do Pilar de Ouro Preto).

O capítulo II do mesmo Compromisso reza:

“Haverá nesta Irmandade um Rei e uma Rainha, ambos pretos, de qualquer nação que sejam, os quais serão eleitos todos os anos em mesa a mais votos e serão obrigados assistir com o seu estado as festividades de Nossa Senhora e mais Santos, acompanhando no último dia atrás do pálio”.

Vê-se que nestes textos desaparecem as diferenças raciais; além do que, escravos e livres são equiparados entre si.

6. Descendo através dos tempos, temos uma Carta do Papa Pio VII enviada ao Imperador Napoleão Bonaparte da França, em protesto contra os maus tratos infligidos a homens vendidos como animais; ao que acrescentava: “Proibimos a todo eclesiástico ou leigo apoiar como legítimo, sob qualquer pretexto, este comércio de negros ou pregar ou ensinar em público ou em particular, de qualquer forma, algo contrário a esta Carta Apostólica” (citado por L. Conti, A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro, em O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XIX. Lisboa 1979, p. 337).

O mesmo Sumo Pontífice se dirigiu a D. João VI de Portugal nos seguintes termos:

“Dirigimos este ofício paterno à Vossa Majestade, cuja boa vontade nos é planamente conhecida, e de coração a exortamos e solicitamos no Senhor, para que, conforme o conselho de sua prudência, não poupe esforços para que… o vergonhoso comércio de negros seja extirpado para o bem  da religião e do gênero humano”.

Pio VII também muito se empenhou para que no Congresso Internacional de Viena (1814-15) a instituição da escravatura fosse condenada e abolida

7. Quanto à travessia do Oceano Atlântico por parte dos escravos trazidos em navios negreiros, verifica-se hoje que descrições de Castro Alves e outros autores são hiperbólicas e poéticas, fugindo à realidade histórica. Os brancos tinham interesse em prover à conservação da vida de seus escravos em condições tão boas quanto possível, visto que os negros deviam ser oferecidos aos colonos do Brasil, que os examinariam de perto antes de os comprar. Julga-se até que os traficantes contratavam médicos que acompanhavam a população dos navios negreiros.

A propósito:

TERRA, JOÃO EVANGELISTA MARTINS, A Igreja e o Negro no Brasil. Ed. Loyola 1983.
PR 274/1984, pp. 240-247 (síntese do livro acima).
Bíblia, Igreja e Escravidão. Coordenador João Evangelista Martins Terra S. J. Ed. Loyola 1983.
PR 267/1983, pp. 106-132.


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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF