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quinta-feira, 20 de maio de 2021

TEOLOGIA: Cristo, o Espírito Santo e a Igreja (Parte 2/5)

Ecclesia

Cristo, o Espírito Santo e a Igreja

Ioannis D. Zizioulas*
Trad.: Pe. André Sperandio

2. O problema da síntese entre cristologia e pneumatologia

O que deveria incluir uma síntese adequada entre cristologia e pneumatologia? É preciso colocar esta pergunta antes de se ocupar do problema das instituições eclesiais. Trataremos simplesmente daqueles aspectos que tem a ver com a eclesiologia.

Praticamente ninguém, se é que há alguém, questionaria que cristologia e pneumatologia andam juntas e não podem estar separadas. Falar de «cristomonismo» em qualquer parte da tradição cristã, supõe não compreender ou ser injusto com essa parte da tradição. (O padre Congar o demonstrou em relação com a tradição católica ocidental) [8]. O problema não é se se aceita a importância da pneumatologia na cristologia ou vice-versa. O problema surge em torno a estas duas perguntas: em primeiro lugar, a questão da prioridade. Deve-se fazer depender a cristologia da pneumatologia, ou vice-versa? Em segundo lugar, a questão do conteúdo. Quando falamos de cristologia e pneumatologia, que aspectos particulares da doutrina e da existência cristã temos em conta ?

Em primeiro lugar tratemos do tema da prioridade. Que se trata de uma questão real e não o produto de uma elaboração teológica percebe-se no fato de que não apenas toda a história da teologia que diz respeito à relação entre Oriente e Ocidente, senão e inclusive a teologia e a liturgia mais primitivas que conhecemos se viram afetadas por este problema [9].

Nos mesmos escritos neotestamentários encontramo-nos com a opinião de que o Espírito é dado por Cristo, particularmente por Cristo após sua ressurreição e ascensão («ainda não havia Espírito, porque Jesus não havia sido glorificado») [10], e a opinião de que não há, por assim dize-lo, Cristo até que atua o Espírito, não apenas como um precursor que prepara sua chegada, mas como aquele que constitui sua própria identidade como Cristo, seja no batismo (Marcos) ou em sua concepção biológica (Mateus e Lucas). Ambas as opiniões coexistiam felizmente no mesmo escrito bíblico como fica evidente ao se estudar a obra de Lucas (Evangelho e Atos), o evangelho de João etc. A nível litúrgico, estas duas abordagens se distinguem muito claramente do desenvolvimento de duas tradições referentes a relação entre batismo e confirmação (ou crisma) [11]. Sabe-se que na Síria e Palestina a confirmação precedia liturgicamente o batismo, ao menos até o século IV, enquanto que em outras partes se observava a prática eclesial que finalmente prevaleceu em todas as partes, ou seja, a celebração da confirmação depois do batismo. Dado que a confirmação era normalmente contemplada como o ritual da «entrega do Espírito» poderia-se argumentar que nos casos em que a confirmação precedia o batismo nos encontrávamos com a prioridade da pneumatologia sobre a cristologia enquanto que no outro caso se dava o inverso. Ademais, há indícios de que na Igreja Primitiva o batismo era inconcebível sem a "entrega do Espírito" [12], o que nos faz concluir que os dois ritos estavam unidos em uma síntese tanto litúrgica como teológica, sem ter em conta a questão da prioridade de um aspecto sobre o outro.

Por conseguinte parece que a questão da prioridade entre cristologia e pneumatologia não constitui necessariamente um problema, e durante muito tempo a Igreja não percebeu como um problema esta diversidade de abordagem, tanto a nível litúrgico como teológico. Assim, não há motivo pelo qual as coisas devam ser diferentes hoje em dia como alguns ortodoxos parecem sugerir. O problema só foi resolvido quando estes dois aspectos foram de fato separados um do outro, tanto a nível litúrgico como teológico. A partir de então, a história do Oriente e a do Ocidente passaram a seguir caminhos separados que levaram ao distanciamento e a divisão total. Não apenas separou-se o batismo e a confirmação na liturgia ocidental, se não que a cristologia tendeu a dominar paulatinamente a pneumatologia, sendo o filioque apenas uma parte deste novo desenvolvimento. O Oriente ainda que manteve a unidade litúrgica entre batismo e crisma e assim conservou a síntese original a nível litúrgico, não pôde resistir à tentação de adotar uma atitude reacionária em relação a o Ocidente em sua teologia.

O clima de polêmica e suspeita mútua contribuiu para esta situação e obscureceu todo o panorama. O que devemos e podemos ver claramente agora, entretanto, é que enquanto a unidade de cristologia e pneumatologia não foi rompida, a questão da prioridade pode seguir sendo um «theologúmenon». Por diversas razões que tem a ver com a idiossincrasia ocidental (preocupação pela história, ética etc.), sempre se deu uma certa prioridade  à cristologia sobre a pneumatologia. De fato, há razões para crer que isto podia ser espiritualmente conveniente, especialmente em nossa época. Igualmente, para o Oriente a pneumatologia sempre ocupará um lugar crucial dado o fato de que o etos oriental parece marcado por uma abordagem litúrgica metahistórica em relação com a existência cristã. Diversas preocupações conduzem a diversas ênfases e prioridades. Enquanto o conteúdo essencial tanto da cristologia como da pneumatologia estiver presente, a síntese existirá em sua plenitude. Porém, em que consiste este «conteúdo»? De que adoece a eclesiologia se o conteúdo de cristologia ou pneumatologia é deficiente?

É difícil estabelecer distinções quando há por meio uma unidade. Nossa tarefa neste momento é algo delicado e supõe o risco de fazer separações onde só deveríamos fazer distinções. Temos de ter em conta que, segundo a tradição patrística tanto oriental como ocidental, a atividade de Deus ad extra é una e indivisível: onde está o Filho, ali também estão o Pai e o Espírito; e onde está o Espírito, ali também estão o Pai e o Filho. Não obstante, o aporte de cada uma das pessoas divinas à economia possui suas características peculiares [13] que são relevantes para eclesiologia e haverão de refletir-se nela. Mencionemos algumas destas, em particular, relativas ao Filho e ao Espírito.

O mais óbvio é que somente o Filho se encarna. Tanto o Pai como o Espírito estão implicados na história, mas somente o Filho se faz história. De fato, como veremos mais adiante, ao introduzirmos o tempo e a história no Pai ou no Espírito, negamos automaticamente suas peculiaridades na economia. Estar implicado na história não é o mesmo que fazer-se história. Por conseguinte, a economia, tendo assumido a história e tendo uma história, é apenas e tão somente uma : o acontecimento de Cristo. Inclusive, «acontecimentos» como Pentecostes, que a primeira vista parecem ter um caráter exclusivamente pneumatológico ver-se-hão em relação com o acontecimento de Cristo [14] para que possam definir-se como parte da história da salvação; de outro modo, deixam de ser pneumatológicos em sentido próprio.

Pois bem: se, fazer-se história é a peculiaridade do Filho na economia, qual é o aporte do Espírito? É precisamente o oposto: libertar o filho e a economia das ataduras da história. Se o Filho morre na cruz, sucumbindo assim as ataduras da existência histórica, é o Espírito o que o ressuscita de dentre os mortos [15]. O Espírito é o que se encontra mais além da história [16], e quando atua na história o faz para trazer  à história os últimos dias, o eschaton [17]. Daqui que a primeira peculiaridade fundamental da pneumatologia é seu caráter escatológico. O espírito faz de Cristo um ser escatológico, o último Adão.

Outro importante aporte do Espírito Santo ao acontecimento de Cristo é que, graças a implicação do Espírito Santo na economia, Cristo não é somente um indivíduo, isto é, não é «um» mas «muitos». Esta «personalidade corporativa» de Cristo não se pode conceber sem a pneumatologia. Não é irrelevante que o espírito, desde a época de Paulo, tenha sido associado com a noção de comunhão (κοινωνία) [18]. A pneumatologia aporta à cristologia esta dimensão de comunhão. E é graças a esta função da pneumatologia pelo que podemos dizer que Cristo tem um «corpo», isto é, falar de eclesiologia, da igreja como corpo de Cristo.

Contudo, na teologia cristã  tem havido outras funções atribuídas a obra particular do Espírito, a saber, a inspiração e a santificação. A tradição ortodoxa concedeu particular importância à segunda. Isto é, a ideia de santificação, quiçá pela forte influência que Orígenes sempre exerceu no Oriente. Isto é evidente no monacato como uma forma do que normalmente se chama espiritualidade. Porém, o monacato - e as noções de «santificação» e «espiritualidade» que o subjazem - nunca se converteu em um aspecto decisivo da eclesiologia do Oriente. A eclesiologia na tradição ortodoxa sempre esteve determinada pela liturgia e pela eucaristia; e por esta razão, são os dois primeiros aspectos da pneumatologia, isto é, a escatologia e a comunhão, que têm determinado a eclesiologia ortodoxa. Tanto a escatologia como a comunhão constituem elementos fundamentais da compreensão ortodoxa da eucaristia. O fato de que também sejam, como temos visto, aspectos fundamentais da pneumatologia nos mostra que, se queremos compreender adequadamente a eclesiologia ortodoxa e sua relação com a pneumatologia, devemos nos ocupar principalmente desses dois aspectos da pneumatologia: a escatologia e a comunhão [19].

Tudo isto precisa ser completado com outro aspecto fundamental. Não é suficiente falar da escatologia e da comunhão como aspectos necessários da pneumatologia e da eclesiologia; é necessário que esses aspectos da pneumatologia se transformem em elementos constitutivos da eclesiologia. Por «constitutivos» refiro-me a que estes aspectos da pneumatologia devem condicionar a ontologia mesma da Igreja. O espírito não é algo que anima uma Igreja que existe previamente de algum modo. O espírito faz ser a Igreja. A pneumatologia não tem a ver com o bem-estar da Igreja, mas com seu próprio ser. Não se trata de um dinamismo acrescentando à essência da Igreja. É a essência mesma da Igreja. A Igreja é constituída em e através da escatologia e da comunhão. A pneumatologia é uma categoria ontológica em eclesiologia.

Notas:

[8] Y. Congar, Pneumatologie ou 'Cristomonisme' dans la tradition latine, en Ecclesia a Spiritu Sancto edocta. Mélanges G. Philips, 1970, 41-63. Em sua transcendental obra em 3 volumes, Je crois en l'Espit Saint, 1980, o padre Congar mostra de maneira clara e convincentemente o posto central que a pneumatologia ocupou na teologia ocidental ao longo dos séculos. É uma obra de particular importância e merece especial atenção na atualidade quando se produz o diálogo entre a Igreja Católica e a Ortodoxa. Outro recente estudo de grande relevância sobre o posto da pneumatologia no pensamento ocidental e a obra do Padre Louis Bouyer, Le Consolateur, 1980. A importância da questão da pneumatologia também fica explícita em um artigo do teólogo católico W. Kasper Esprit Christ-Église, en L'expérience de l'Esprit. Mélanges E. Schillebeeckx, 1976, 47-69.

[9] Para um tratamento mas detalhado, cf. meu Implications ecclésiologiques de deux types de Pneumatologie , en Communio Sanctorum . Mélanges J.-J. von Allmen, 1982, 141-154.

[10] Jn 7, 39.

[11] Cf. T. W. Manson, Entry into Membership of the Early Church: Journal of Theological Studies 48 (1947) 24-33.

[12] Cf. G. Lampe, The Seal of the Spirit, 1951. A controvérsia de Lampe com G. Dix sobre este tema (este insistia em que o Espírito somente se dava na confirmação) resulta inútil dada sua variedade na liturgia. Em qualquer caso, o batismo e a confirmação formam uma unidade litúrgica na Igreja Primitiva e por isso o Espírito Santo estava envolto em todo o processo da iniciação cristã.

[13] A unidade das operações divinas ad extra é, segundo os Padres, indivisível, porém não indiferenciável. Cf. J. McIntyre, The Holy Spirit in Greek Patristic Thought: The Scottish Journal of Theology 7 (1954), especialmente 357ss.

[14] No quarto evangelho, por exemplo, Pentecostes é visto como o regresso de Jesus mediante o derramamento do Espírito Santo. Cf. R. E. Brown, The Gospel According to John, 1970,1139. De forma parecida aparece nos Padres: Cf. Cirilo de Alexandria, in Jo. 10,2 e 11,2 (PG 74, 433-436; 453-456).

[15] Romanos, 8,11

[16] Cf. H. U. von Balthasar, Der Unberkannte penseits des Wortes, en Interpretation der Welt. Festschrift R. Guardini, 1966, 638-645.

[17] Atos 2,17.

[18] 2 Coríntios 13,13.

[19]. Ao dizer isto não quero menosprezar a importância da santificação pessoal, especialmente como se entende no monacato. Em todo caso, o monacato ortodoxo está tão intimamente unido com a escatologia que desta forma se relaciona em profundidade com a eclesiologia. O que, não obstante, gostaria de sublinhar é que nenhuma espiritualidade é sã e verdadeiramente cristã se não depende constantemente do acontecimento da comunhão eclesial. A comunidade escatológica por antonomásia se encontra na eucaristia, que é assim o coração de toda a eclesiologia.

Referência:

*ZIZIOULAS, Ioannis D. . Cristo, el Espírito y la Iglesia. In: ZIZIOULAS, Ioannis D. El Ser Eclesial. Persona, comunión, Iglesia . 1ª. ed. Salamanca: Sígueme, 2003. cap. 3, p. 137-155.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF