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quinta-feira, 28 de julho de 2022

“A bárbara ferocidade pareceu mansa”

"A bárbara ferocidade pareceu mansa" | 30Giorni

Por Revista 30Dias, 06/07 - 2010

“A bárbara ferocidade pareceu mansa”

É assim que Agostinho, no De civitate Dei, I, 7, menciona o Saque de Roma de agosto de 410.

de Lorenzo Cappelletti

Entre os vários centenários celebrados este ano, temos também o do chamado Saque de Roma de agosto de 410. Um acontecimento fatídico. Era a primeira vez, depois de séculos e séculos, que as muralhas de Roma eram violadas. Mas não é por esse seu caráter de divisor de época que tratamos do Saque de Roma. É muito mais por algumas sugestões que oferece ao nosso presente e ao nosso passado próximo.
Para começar, livremo-nos de um possível equívoco, de fato já esclarecido pela historiografia a partir do século XVIII: essa intrusão não ocorreu conforme as coordenadas imaginárias de um ataque de alienígenas que depredam por pura maldade (cf. o recente Barbari. Immigrati, profughi, deportati nell’Impero romano, de Alessandro Barbero). Os bárbaros que saquearam Roma “tinham sido, até pouco tempo antes, uma legião romana, a quem tínhamos concedido direitos depois de os vencer, a quem tínhamos dado campos e casas”, escreve Claudiano (In Eutropium), poeta pagão da época.
E esses bárbaros também não eram inimigos do cristianismo.

Santo Agostinho, num afresco do século VI, Latrão, Roma;
ao fundo, o início do 
De civitate Dei, num códice do século
XV conservado na Biblioteca Capitular de Verona

Os antecedentes

Alarico, protagonista do Saque de 410, era um chefe visigodo de fé cristã (“quidem christianus sed professione haereticus”, escreverá Isidoro de Sevilha em sua Historia Gothorum). Desde 375, vivia como federado, ou seja, ligado ao Império por um pacto, e como tal tinha lutado no exército de Teodósio contra os subversores (estes, sim) da autoridade imperial, engajados numa luta pelo poder no Ocidente. Era um dos muitos oficiais bárbaros que tinham contribuído para a preservação do Império, como Butheric, o magister militum bárbaro do Ilírico (região que corresponde aos atuais fatídicos Bálcãs), cujo assassinato em Tessalônica, em 390, determinou a violenta represália de Teodósio.
Teodósio, por sinal, ao morrer em janeiro de 395, deixava o Império aos dois filhos adolescentes, Honório e Arcádio, pondo-os sob a tutela carismática de Estilicão, também general semibárbaro, que de certa forma tinha de velar sobre eles e sobre sua união.

Justamente por isso, Estilicão acreditou ser seu dever interferir no Ilírico naquele mesmo ano, ante a ameaça de devastação imposta pelos visigodos de Alarico, evidentemente descontentes com o nível de respeito aos pactos demonstrado pelo Império. Mas a ação de Estilicão não foi reconhecida pela corte oriental, que, renegando a política de compromisso, decidira pôr em prática uma forte e autônoma reação antibárbara.

O peso dessa reação recairia sobre a parte mais frágil do Império. Assim, depois de ter devastado a Grécia, Alarico dá as caras no Trivêneto e, em 401, chega ameaçar Milão, onde residia Honório.
Estilicão derrota Alarico mais de uma vez, mas não aniquila seu exército. E não apenas isso. Não podendo combater em tantas frentes (nesse meio-tempo, a fronteira com o Reno estava cedendo e a Britânia era abandonada pelas legiões), busca um acordo com o visigodo, levando o Senado a aprovar uma indenização consistente a ser-lhe destinada e oferecendo a ele a magistratura militar da controversa região dos Bálcãs: a morte de Arcádio, em 408, de fato, parecia reabrir o caminho para que o Império pudesse ter um único governo, a partir do Ocidente. Naquele momento, porém, Honório e seus conselheiros milaneses é que se opunham ao acordo, seguros de que um movimento qualquer das peças não teria como desestabilizar a mesa de jogo. “Subornadas pela propaganda ‘milanesa’” – como escrevia Santo Mazarino em O Império Romano, obra que continua a ser uma mina de informações e intuições –, tropas imperiais se rebelaram contra Estilicão e expulsaram todos os seus funcionários à vista de Honório. Não restava a Estilicão outro caminho, senão a guerra civil: lançar as legiões de federados que lhe eram fiéis contra o exército imperial romano. Mas ele não o percorreu. Aceitou perder a cabeça em agosto daquele mesmo ano de 408, depois de ter sido retirado de uma igreja em Ravena, onde havia pedido asilo. O ato foi mais bárbaro que quem o sofreu. Salviano, um monge marselhês, escreveria algumas décadas mais tarde: “Procuram nos bárbaros a humanitas romana; de fato, já não suportam a bárbara desumanidade que vigora entre os romanos” (De gubernatione Dei).
Mas a morte de Estilicão provocaria como contragolpe a deserção de muitos bárbaros federados e, sobretudo, a ruptura com Alarico, tratado pela corte de Honório como um inimigo.
Esses são os antecedentes.

O Saque de Roma

O cerco e a tomada de Roma nasceram daqui. Nada mais são que uma forma direta de pressão e de chantagem sobre Honório por parte de Alarico, que se desenrola em três fases, entre meados de 408 e de 410.

Num primeiro momento, depois de descer rapidamente pela Via Flamínia, Alarico toma Porto e Tibre e corta o abastecimento de Roma pelo mar, com mercadorias vindas do norte da África.
Na cidade sitiada, há quem recorra pateticamente a ritos pagãos sugeridos por adivinhos provenientes da Toscana, pedindo para isso, paradoxalmente, a permissão do papa Inocêncio, que a concede. Ao mesmo tempo, em Ravena, para onde tinham-se transferido, Honório e seus conselheiros procuram aperfeiçoar uma política integralmente “católica” (cf. Le Sac de Rome, de André Piganiol), preocupados principalmente em punir os hereges e em excluir os “não católicos” do palácio, deixando Roma a sua própria sorte. Há maneiras e maneiras de ser católico, nuança censurada por Giorgio Falco em seu clássico La Santa Romana Repubblica, em que, no capítulo III, “Alemães. Estilicão e Alarico”, o termo “católico” é usado apenas para designar o tiers parti.

No final, obrigados pela fome e pela epidemia, os romanos pagam a Alarico a indenização que este esperara em vão de Honório. A Urbe, assim, está livre de novo e são retomadas as negociações com a corte imperial instalada em Ravena. No entanto, mesmo tendo Alarico agora limitado suas pretensões à autorização para que seu povo se estabeleça entre a Áustria e a Caríntia, não chegam a nenhum acordo. Roma, então, é novamente sitiada e, para elevar o nível da ameaça, Alarico cria um anti-imperador, na pessoa de Atalo: um pagão batizado ariano especialmente para a ocasião, de quem Alarico se serve apenas para fazer-se elevar ao cargo de líder de todo o exército imperial, enquanto Atalo cultiva sonhos de glória, pensando ser o herói da reconquista de Roma. Por obra dos mesmos funcionários que tinham eliminado Estilicão e recebido por isso a África, Roma é novamente castigada, desta vez contra Alarico e seu imperador fantoche. (A decisiva importância estratégica da África, para o Império Romano, permite entender por que Alarico, depois do Saque de Roma, se deslocará para o sul, acabando por morrer na Calábria, de onde esperava passar para a Sicília e depois, justamente, para o continente africano). Além de tudo, Ataulfo, cunhado de Alarico, é atacado a traição por outras milícias germânicas a soldo de Honório. Existem maneiras e maneiras de ser ariano e godo.

Naquela altura, na noite de 24 de agosto de 410, Alarico deixa que os seus entrem em Roma e saqueiem a cidade por três dias. Uma noite de São Bartolomeu ante litteram? Não. É claro que o episódio registra um grande número de vítimas, entre as quais a matrona Marcela, cuja morte “salienta bem o vínculo entre a aristocracia cristã e os destinos da própria Roma, constantemente mantido”, escreve Emanuela Prinzivalli em seu ensaio para o recente La comunità cristiana di Roma. La sua vita e la sua cultura dalle origini all’Alto Medioevo; além das mortes, há a captura de reféns, entre os quais a própria irmã de Honório, Gala Placídia; há estupros; há alguns incêndios e grandes espoliações, feitas sobretudo por escravos, que depois do primeiro assédio tinham saído de Roma e se unido, aos milhares, a Alarico. Escreve Jacques Le Goff nas primeiras páginas de A civilização do Ocidente medieval: “A verdade é que os bárbaros se beneficiaram da cumplicidade ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império, em que as camadas populares eram cada vez mais esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o êxito das invasões bárbaras”.

Vista do interior dos Muros Aurelianos, perto da Porta Salária, com o
adarve e a torre. Os godos entraram em Roma na altura da
Porta Salária [© Archivio Foto Luce]

Aconteceu, porém, algo novo

Seja como for, a violência foi exceção, não regra. No fundo, toda a diferença está aqui, e provém das disposições precisas dadas por Alarico, primeiramente a respeito da preservação da vida das pessoas e, em segundo lugar, a respeito da intangibilidade das basílicas. Tanto é que Orósio, nas Historiae adversus paganos, poucos anos depois, chegou a dizer que não havia acontecido praticamente nada em Roma: “Nihil factum”. Ainda que isso seja um exagero retórico, como retórica é também a estrutura literária do episódio por ele narrado de uma virgem que, indagada por um bárbaro por objetos de ouro e prata, mostrou-lhe os vasos sagrados do culto do apóstolo Pedro, de modo que puderam salvar-se ela, os vasos de Cristo (é assim que Orósio chama os cristãos) e também os pagãos que se uniram ao cortejo escoltado que levou de volta à Basílica todo aquele ouro – não é retórica, mas bíblica (tanto veterotestamentária, cf. Gn 18, 17-33, quanto neotestamentária, cf. Rm 9, 22-33) e católica, a imprevisível convergência à salvação de romanos, cristãos e pagãos, e bárbaros. Uma convergência que a ninguém excluía, por se realizar no momento oportuno escolhido pela misericórdia de Deus, que levava cada um a desempenhar sua parte: “Para que estivesse protegido, o piedoso cortejo foi cercado de todos os lados por espadas desembainhadas; cantando juntos, romanos e bárbaros fizeram ressoar publicamente um hino a Deus; a trombeta da salvação ecoou distante no massacre da Urbe, convidou e incitou a todos, até aqueles que se haviam metido em esconderijos; os vasos de Cristo [os cristãos] acorreram de todas as partes para os vasos de Pedro e muitíssimos pagãos se misturaram aos cristãos, se não na fé, em sua profissão: justamente por isso, quanto mais se confundiam, mais no momento oportuno escapavam ao perigo; quanto mais os romanos buscavam refúgio reunindo-se em grande quantidade, mais os protetores bárbaros se espalhavam em grande número ao seu redor. Ó escolha sagrada e inefável do juízo divino!” ( Historiae adversus paganos VII, 39).

É assim que deve ser compreendida a própria apologia que Agostinho faz da fé cristã ante a acusação dos pagãos de que a fé esteja na origem do desastre de Roma (ocasião da qual nasce o De civitate Dei). Não a devemos compreender como uma resposta dialética e ideológica. É preciso reler o livro I, em que Agostinho manifesta a intenção da obra, todo organizado em torno do conflito entre a vaidade dos deuses de Roma, que precisam dos homens, aliás, só existem na medida em que estão nas mãos dos homens, e o nome de Cristo, que age por conta própria por intermédio daqueles bárbaros que, embora ferozes, possuem a humildade (“ misericordia et humilitas etiam immanium barbarorum”), a virtude que, ao lado da fé (“ex fide vivens”), é própria da cidade de Deus peregrina na terra, que não atribui a si o que vem de Deus.

Agostinho não nega que o que ocorreu a Roma tenha sido ruinoso, mas atém-se ao fato de que, em meio a toda a devastação possível, surgiu algo novo que remete diretamente a Cristo: “Na recentíssima derrocada de Roma, todas as ruínas, as mortes, os saques, os incêndios e toda a desolação foram produzidos pelo que habitualmente ocorre em guerra, mas aquilo que aconteceu de novo, o fato de a bárbara ferocidade, de modo inusitado, ter parecido mansa, a ponto de basílicas extremamente espaçosas terem sido escolhidas e designadas para se encher de gente para ser protegida, onde ninguém fosse morto, ninguém capturado, onde muitos pudessem ser levados por inimigos piedosos para ser libertados, onde ninguém pudesse ser preso e feito prisioneiro nem por inimigos cruéis – isso não há quem não veja que deve ser atribuído ao nome de Cristo [...]; foi ele quem admiravelmente amansou, freou, aplacou ânimos tão truculentos e cruéis, ele, que tanto tempo antes predisse pela boca do Profeta: ‘Punirei com o açoite a sua iniquidade e com flagelos os seus pecados, mas deles não afastarei a minha misericórdia’” ( De civitate Dei I, 7).

“A misericórdia triunfa sobre o julgamento”, escreve São Tiago. Também sobre o julgamento histórico, escrevemos nós.

Fonte: http://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF