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quinta-feira, 20 de julho de 2023

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos (2/15)

Celibato eclesiástico (Presbíteros)

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos. 

CARD. Alfons M. Stickler

1.      Orientações para a investigação sobre a origem e desenvolvimento do celibato eclesiástico

O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correto da origem e do desenvolvimento do celibato eclesiástico – ao que podemos chamar simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado – é tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser explicado pelo fato do método justo de investigar e expor a questão não ser observado.  

Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, em uma investigação de caráter histórico não se pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a integridade destas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo. 

Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade de compreender e utilizar adequadamente documentos e o seu conteúdo. Somente sobre essa base segura – autenticidade, integridade, credibilidade e valor – se pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes. 

Junto a esses pressupostos metodológicos gerais, é necessário também aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A historiografia filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento adequado da filosofia, bem como a historiografia teológica pressupõe o conhecimento da teologia e a historiografia da medicina ou da matemática requerem um conhecimento suficiente destas ciências. Do mesmo modo, na historiografia jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas exigências metodológicas próprias. 

De acordo com o dito, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se queremos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do Direito Canônico e da Teologia. O significado e a necessidade destas observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.

2.      Raízes do recente debate sobre as origens do celibato 

No final do século passado tivemos uma áspera discussão sobre a origem do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais. Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, seus resultados, sem receber uma resposta do seu adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão (dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura até hoje. 

Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular as suas conclusões não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de interpretação das fontes, que em um estudioso altamente qualificado, como ele sem dúvida era, é realmente estranho. Aceitou como bom, e a utilizou como um dos seus principais argumentos contra a opinião Bickell, a narração espúria sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnucio, no Concílio de Nicéia em 325. E isto, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade deste episódio (o que está comprovado, como demonstraremos, ao falar, na quarta parte, do Concílio de Nicéia). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável, ao aceitar apenas só a existência de uma obrigação oficial do celibato, que tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do historiador da teologia Vacandard e do historiador dos concílios Leclercq. 

3.      A transmissão oral do direito 

Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais autoridade deste século, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius) é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto, toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima. 

Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da transmissão de normas consuetudinárias, que lentamente são postas por escrito. Por exemplo, os romanos, expressão do gênio jurídico mais perfeito, somente depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram seus ordenamentos jurídicos populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de cada indivíduo. 

Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, o da jovem da Igreja foi, em grande medida, as disposições e obrigações transmitidas apenas oralmente; ainda mais quando – durante os três séculos de perseguição (embora intermitente) – dificilmente poderiam ter sido fixadas as leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía já por escrito alguns elementos de direito primitivo, e em maior medida de que outras sociedades jovens. Uma prova disto nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na verdade, em sua segunda carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras: “Exorto, pois, irmãos, fiqueis firmes e guardai as tradições que haveis aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”.

Estes se referem, sem dúvida, a disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas apenas oralmente e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não estaria fazendo justiça ao método de conhecimento próprio da história dos ordenamentos jurídicos.

4.      Os postulados do dado teológico

O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles a um carisma intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise só pode ser feito, conseqüentemente, à luz da revelação e da elaboração teológica. 

Como é  agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito, nem do modo apropriado, com questões jurídicas e disciplinares, mas se apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica – também chamada de “glosadores” – então muito florescente. Os historiadores da Teologia medieval constataram isto há bastante tempo, e um olhar para a obra do príncipe do escolástica medieval o confirmando suficientemente. Esta realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida, hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho procuraremos atender a esta exigência tão legítima.

Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO 

Tradução para o português:

Pe. Anderson Alves.
Contato: 
amralves_filo@yahoo.com.br

Fonte: https://presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF