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sábado, 22 de julho de 2023

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos (4/15)

Celibato eclesiástico (Presbíteros)

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos 

CARD. Alfons M. Stickler

             3.  O testemunho da Igreja de Roma

No contexto do testemunho africano sobre o celibato já escutamos uma voz muito autorizada por parte de Roma: o legado pontifício Faustino manifestou em Cartago a plena correspondência de Roma sobre esta questão, suscitada ali incidentalmente. 

Roma, aliás, já tinha enviado uma carta aos bispos da África, na época do Papa Sirício, que comunicava as decisões do Sínodo romano de 386, nas que se insistia novamente em algumas importantes disposições apostólicas. Esta carta tinha sido comunicada durante o Concílio de Telepte do ano 418. A última parte da mesma (can. 9.) trata precisamente da continência do clero. 

Com este documento nos introduzimos no segundo conjunto de testemunhos sobre o celibato – presentes nas disposições dos Romanos Pontífices sobre esse tema – que têm claramente um maior peso, não só quanto à consciência da tradição observada pela Igreja universal, mas também para o desenvolvimento posterior e para a observância do celibato clerical. 

Uma afirmação geral sobre a importância da posição de Roma sobre qualquer assunto e, portanto, também sobre o celibato é proveniente de Santo Irineu, que, tendo sido discípulo de São Policarpo, estava relacionado com a tradição joanica que ele – como bispo de Lião, a partir do ano 178 – transmitia também para a Igreja na Europa. Se na sua principal obra “Contra as heresias” afirma que a tradição apostólica é preservada na Igreja de Roma, fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo, e é por isso que todas as outras igrejas devem concordar com ela, podemos dizer que isso vale também para a tradição sobre a continência dos eclesiásticos. 

Os primeiros testemunhos explícitos a respeito provêm de dois Papas: Sirício e Inocêncio I. Ao predecessor do primeiro, o Papa Dâmaso, tinha sido apresentado pelo bispo Himério de Tarragona algumas questões às quais só o seu sucessor, ou seja, Sirício tinha dado uma resposta. Quando perguntado sobre a obrigação dos clérigos maiores à continência o Papa respondeu na carta Directa em 385, dizendo que os sacerdotes e diáconos que, depois da Ordenação, geram filhos atuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que obriga os clérigos maiores desde o início da Igreja. A apelação ao fato de que no Antigo Testamento os sacerdotes e levitas podiam usar do matrimônio, fora do tempo do seu serviço no Templo, foi refutada pelo Novo Testamento no qual os clérigos maiores devem prestar culto sagrado todos os dias; por isso a partir do dia da sua Ordenação deve viver continuamente a continência. 

Uma segunda carta do mesmo Papa, referindo-se à mesma questão e que já mencionamos, é a enviada aos bispos africanos em 386, que relatou as deliberações de um Sínodo romano. Esta carta é especialmente ilustrativa sobre o tema do celibato. O Papa assinalou, acima de tudo, que os pontos tratados no Sínodo não se referem a novas obrigações, mas sim a pontos de fé e de disciplina, que, por causa da preguiça e da inércia de alguns, têm sido negligenciados. Devem, portanto, ser revitalizados, pois, segundo as palavras da Sagrada Escrituras “Sê forte e observa as nossas tradições que recebestes, quer oralmente, que por escrito” (2. Tes 2, 15), se trata de disposições dos Padres Apostólicos. O Sínodo romano é, portanto, consciente de que as tradições recebidas apenas oralmente são vinculativas. E aludindo ao juízo divino, observa que todos os bispos católicos devem observar nove disposições que são enumeradas.  

A nova delas é exposta com detalhes: os sacerdotes e levitas não devem ter relações sexuais com suas esposas, porque devem estar ocupados diariamente com o seu ministério sacerdotal. São Paulo escreveu aos Coríntios que eles deviam se abster das relações sexuais para se dedicar à oração. Se aos leigos a continência é imposta, a fim de serem ouvidos na sua oração, com muito maior razão deve estar disposto em todo momento o sacerdote para oferecer, com castidade verdadeira o Sacrifício e para administrar Batismo. Depois de outras considerações ascéticas, é rejeitada – que eu saiba, pela primeira vez no Ocidente – pelos oitenta bispos reunidos, uma objeção, ainda hoje viva, que visa provar a continuidade no uso do matrimônio em base às palavras do Apóstolo São Paulo segundo as quais, o candidato às Sagradas Ordens, só podia ter estado casado uma vez. Estas palavras, apontaram os bispos, não querem dizer que se pode continuar vivendo na concupiscência e gerando filhos, mas foram precisamente ditas em favor da futura continência. É ensinado, por conseguinte, oficialmente – e será repetido continuamente – que as segundas núpcias ou o matrimônio com uma viúva, não oferecem segurança de continência futura. A carta conclui com uma exortação a obedecer estas disposições que estão sustentadas pela tradição. 

 O seguinte Romano Pontífice que se ocupou amplamente da continência do clero é Inocêncio I (401 417). Provavelmente é sua uma carta sobre essa matéria, atribuída primeiro a Dâmaso e depois a Sirício. Quando foram apresentadas algumas questões pelos bispos da Gália, foram examinadas num Sínodo romano uma série de questões práticas, cujos resultados ou respostas foram comunicadas na carta Dominus inter no começo do século IV. A terceira das dezesseis perguntas se referia à “castidade e pureza dos sacerdotes”. Na introdução, o Papa constata que “muitos bispos em várias igrejas particulares têm mudado temerariamente a tradição dos Padres, e caíram na escuridão da heresia, preferindo a honra que vem dos homens, ao mérito diante de Deus”. 

E como o demandante, movido não pela curiosidade, mas pelo desejo de estar seguro na fé, tratava de alcançar da autoridade da Sé Apostólica informações sobre as leis e sobre as tradições, comunica-lhes com uma linguagem simples, mas de conteúdo seguro, o que se deve saber para poder corrigir todas as deficiências que a arrogância humana causou. 

À terceira das questões propostas, dá a seguinte resposta: “Em primeiro lugar, no que diz respeito aos bispos, sacerdotes e diáconos, que devem participar nos sacrifício divinos, por cujas mãos se comunica a graça do batismo e se oferece o Corpo de Cristo, decidiu-se que estão obrigados, não só por nós mas pelas divinas Escrituras à castidade: aos quais também os Padres ordenaram que observassem a continência corporal”. Continua então uma ampla exposição – que ainda hoje é digna de ser recordada – dos motivos, sobretudo bíblicos de dita prescrição, e se conclui dizendo que, ainda que só fosse pela veneração devida à religião, não se deve confiar o ministério divino aos desobedientes. 

Outras três cartas do mesmo Papa repetem os conceitos de seu antecessor Sirício, aos quais se une plenamente. Trata-se da carta a Victricio de Rouen, de 15 de fevereiro de 404; da dirigida a Exupério de Tolosa, de 20 de fevereiro de 405; e da dirigida aos bispos Máximo e Severo de Calábria, de data incerta. É importante notar que sempre se pede sanções contra os impenitentes, que devem ser afastados do ministério clerical. 

Os seguintes Pontífices Romanos também se esforçaram para preservar a estrita observância da tradicional continência do clero. Basta recordar, entre os mais importantes destes séculos, os depoimentos de dois deles: Leão Magno e Gregório Magno. 

 Leão Magno, em 456, escreveu ao bispo Rústico de Narbona: “A lei da continência é a mesma para os ministros do altar (diáconos) que para os sacerdotes e bispos. Quando eram ainda leigos e leitores podiam se casar e gerar filhos. Mas, ao ser elevados aos graus anteriormente citados, começou a não ser lícito para eles o que antes o era. De fato, para que o matrimônio carnal chegue a ser um matrimônio espiritual não é necessário que as esposas sejam afastadas, mas sim que se considerem como se não as tivesse, deste modo de salva o amor conjugal e ao mesmo tempo cessa o uso do matrimônio”. 

 O Papa confirmou assim outro ponto relacionado com a continência dos clérigos casados, que na legislação precedente era também mencionado, a saber: que as esposas dos clérigos casados, após a Ordenação de seus maridos, devem ser sustentadas pela Igreja. A posterior coabitação com o marido, então obrigado à continência, não era geralmente tolerada pelo perigo de faltar à obrigação assumida. Foi permitida apenas nos casos em que esse risco estava excluído. Qualquer texto contra o abandono das esposas deve ser interpretado nesse mesmo sentido, como é evidente neste fragmento de Leão Magno. 

Deve acrescentar-se que este Papa estendeu aos sub-diáconos a obrigação à continência posterior à sagrada Ordenação, que até agora não estava claro, por causa da dúvida que existia sobre se o Ordem do sub-diaconado pertencia ou não às Ordens maiores. 

Gregório Magno (590 604) faz compreender nas suas cartas, ao menos indiretamente, que a continência dos eclesiásticos era substancialmente observada na Igreja Ocidental. Dispôs simplesmente que também a ordenação de subdiácono comportava, definitivamente e para todos, a obrigação de perfeita continência. Ele também sugeriu repetidamente que a coexistência entre clérigos maiores e mulheres não autorizadas para isso continuava estando absolutamente proibida, e devia, portanto, ser impedida. E como as esposas não pertenciam normalmente à categoria das autorizadas, dava com isso uma significativa interpretação ao cânon 3 do Concílio Nicéia. 

Do acima exposto, podemos já deduzir uma primeira constatação de singular importância: na Igreja Ocidental, ou seja, na Europa e nas regiões da África pertencentes ao Patriarcado de Roma, a unidade da fé era e permanecia sempre viva, junto com a unidade também da disciplina, algo que se manifesta pela comunicação, mais ou menos intensa, mas nunca interrompida, entre as várias igrejas regionais. Assim, os representantes de outras regiões eram admitidos nos Concílios Provinciais. Em Elvira, por exemplo, esteve presente, entre outros Eutiques como representante de Cartago, e no Concílio de Cartago de 418, que tratou da questão dos pelagianos estavam também bispos da Espanha. 

Essa consciência de unidade e de substancial uniformidade é encontrada explicitamente nas atas conciliares da época. O primado romano cada vez mais operativo desde o momento em que as perseguições tinham terminado era atualização e posta em prática do princípio da unidade. Esta realidade reflete-se sobretudo nas questões essenciais para a fé da Igreja universal, mas nós podemos constatá-las também nas questões disciplinares, especialmente no ambiente do patriarcado romano. 

Uma prova de primeira ordem desta unidade disciplinar é precisamente a que se adverte na questão que nos ocupa, sobre a continência do clero. Junto à práxis conciliar, que é eficaz desde o início, afirmando-a e confirmando-a, surge a ação orientadora e o cuidado universal em sua conservação por parte dos Romanos Pontífices, começando pelo Papa Siríaco. Se o celibato eclesiástico corretamente entendido foi conservado claramente em conformidade com a consciência clara de sua origem e da sua antiga tradição, apesar das dificuldades que surgem sempre e em toda a parte, o devemos sem dúvida à solicitude ininterrupta do Papas. Uma prova a sensu contrario desta afirmação nos virá dada pela história do celibato na Igreja Oriental. Mas antes de entrar nela, devemos ainda prosseguir com outras fases do seu desenvolvimento na Igreja do Ocidente.

Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO 

Tradução para o português:

Pe. Anderson Alves.
Contato: 
amralves_filo@yahoo.com.br

Fonte: https://presbiteros.org.br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF