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quinta-feira, 27 de novembro de 2025

NOVÍSSIMOS: Retornando às últimas coisas

Almas condenadas sendo lançadas no inferno, detalhe do Juízo Final, Michelangelo, Capela Sistina, Vaticano | 30Giorni

REDESCOBERTAS

Arquivo 30Dias nº 04 - 2002

Retornando às últimas coisas

Uma conferência no Vaticano e dois livros relançam um tema esquecido na pregação da Igreja: as realidades últimas e definitivas — morte, juízo, inferno e céu.

Por Gianni Cardinale

Após um período de negligência, as Últimas Coisas voltam a ser discutidas, um termo latino tradicionalmente usado para designar as quatro realidades últimas e definitivas: morte, juízo, inferno e céu. No Sínodo dos Bispos do último outono, o Arcebispo de Sydney, George Pell, abordou a necessidade de reintroduzir esses temas na catequese e na pregação, temas que foram esquecidos no panorama eclesial das últimas décadas, mas que são essenciais para a fé cristã. "Poderíamos dizer", denunciou ele, "que o limbo desapareceu, que o purgatório caiu no esquecimento, que o inferno não é mais mencionado por ninguém, exceto talvez por terroristas e culpados de crimes hediondos, enquanto o céu é o direito humano final e universal, ou talvez apenas um mito consolador."

Parece que o apelo do prelado australiano não passou despercebido. Talvez seja uma coincidência, mas nos últimos meses houve várias iniciativas que sinalizam um renovado interesse pelas Últimas Coisas. Destacamos brevemente três delas. 

Videoconferência sobre Escatologia

No dia 29 de novembro, um mês após o término do Sínodo, realizou-se no Vaticano a terceira videoconferência organizada pela Congregação para o Clero, como parte de uma iniciativa voltada para a formação contínua de sacerdotes em todo o mundo. O tema da iniciativa, organizada pelo Cardeal Darío Castrillón Hoyos, foi "Escatologia do Concílio Vaticano II aos nossos dias". A videoconferência contou com a presença de uma dúzia de teólogos, indicados por bispos locais, conectados em todo o mundo. Não faltaram surpresas. Dois palestrantes criticaram a hipótese de Hans Urs von Balthasar, o teólogo suíço que faleceu em 1988, poucos dias antes de receber o chapéu cardinalício, segundo a qual o inferno existe, mas pode estar vazio.

O Padre Jean Galot, emérito da Universidade Gregoriana, fez isso implicitamente, afirmando que tal hipótese "priva de toda a eficácia as advertências de Jesus, repetidamente formuladas no Evangelho". Monsenhor Michael Hull, de Nova York, foi mais explícito em seu discurso sobre "Erros na Escatologia Contemporânea", que se concentrou principalmente na hipótese de Baltasar, a qual ele contestou por ser equivalente a "negar o livre-arbítrio humano". Aqueles que desejarem ler os discursos citados aqui, bem como outros, como o do teólogo da Casa Pontifícia, Padre George Cottier, sobre o purgatório, podem encontrá-los online no site da Congregação para o Clero (www.clerus.org). 

Catecismo sobre as Últimas Coisas

Também no ano passado, foi publicado o livro As Últimas Coisas: Uma Introdução à Escatologia.

Publicado pela Ares Editions (Milão, 200 páginas, €12,39) e assinado por dois sacerdotes do Opus Dei: Justo Luis Sánchez de Alva e Jorge Molinero. Esta é uma obra tradicional que apresenta a doutrina católica sobre as Últimas Coisas de maneira catequética. Não é por acaso que o texto mais citado é o Catecismo da Igreja Católica de 1995. Há inúmeras citações do Vaticano II (especialmente da Lumen Gentium ), referências oportunas ao Credo do Povo de Deus pronunciado por Paulo VI em 30 de junho de 1968, bem como diversas referências aos Concílios mais antigos e documentos papais dos séculos passados. O texto está dividido em três partes: escatologia universal (com capítulos sobre o Juízo Final e a ressurreição dos mortos); escatologia individual (com capítulos sobre a teologia da morte, do céu e do inferno); escatologia intermediária, ou seja, a condição da alma entre a morte e a ressurreição (e, neste contexto, discute-se a doutrina do purgatório).

Não faltam notas interessantes e curiosas. Por exemplo, recorda-se que a crença na reencarnação, hoje difundida até entre os católicos devido à influência das religiões orientais, era uma característica dos hereges cátaros do século XIII, que não acreditavam no purgatório e defendiam que a purificação das almas necessitadas ocorria em vidas sucessivas, sempre na Terra. O volume reconta então rapidamente a história de João XXII, o papa que, durante o seu pontificado, proferiu homilias que beiravam a ortodoxia — afirmando que, antes do fim do mundo, as almas dos santos não veem Deus face a face e os condenados não vão para o inferno — e que mais tarde se arrependeu no final da vida (este momento de "confusão" doutrinal foi resolvido com a constituição Benedictus Deus, promulgada em 1336 pelo seu sucessor, Bento XII).

Teólogos e filósofos sobre a vida após a morte:

Recentemente, a Edizioni San Paolo lançou o livreto Aldilà & dintorni. Dez Diálogos sobre as “Últimas Coisas” (Milão, 108 páginas, €8,26). O autor é o jornalista Roberto Righetto, editor das páginas culturais do jornal Avvenire, do CEI . O volume apresenta dez entrevistas sobre o tema das Últimas Coisas com teólogos como Giacomo Canobbio, Giovanni Ancona, Gianni Colzani e Luigi Sartori; filósofos como Sergio Givone (cuja afirmação “não me tirem o purgatório” é peremptória), Umberto Regina e Vittorio Possenti; e acadêmicos como Maurizio Maggi, Moreno Fiori e Eugenio Corsini.

Essas discussões são precedidas por uma introdução detalhada ao tema, na qual Righetto relata, entre outras coisas, as hipóteses teológicas originais apresentadas pelo Cardeal Giacomo Biffi sobre o que acontece após a morte: "Quando os olhos se fecham, os olhos se abrem e se vê se está perto ou longe de Cristo. Este é o juízo: e é um juízo imediato." A respeito do Juízo Final, o Cardeal Biffi cita novamente o livro: "Poderia ser um falso problema, no sentido de que, se é verdade que além do tempo não há tempo, não é muito importante distinguir o juízo particular e o Juízo Final como se fossem temporalmente separados. Isto é, ambos se constituem no único instante que é o da eternidade."

No apêndice do livro, Righetto relata apropriadamente as três catequeses sobre escatologia proferidas pelo Papa João Paulo II durante as três audiências gerais de quarta-feira, em 21 de julho, 28 de julho e 4 de agosto de 1999. Uma curiosidade. Na segunda dessas palestras, o Papa Wojtyla proferiu uma frase que alguns interpretaram como eco da hipótese de Balthasar sobre um inferno vazio: "A danação continua sendo uma possibilidade real, mas não podemos saber, sem uma revelação divina especial, se (ênfase nossa, ed. ) e quais seres humanos estão de fato envolvidos".

CAIXA DE DISCUSSÃO : O limbo acabou no limbo

O renovado interesse pelas Últimas Coisas ilustrado nestas páginas não diz respeito ao limbo, o lugar à margem ( limbus ) do paraíso onde, segundo uma hipótese teológica, as crianças que morrem antes de serem batizadas são acolhidas. Essa hipótese, criada para conciliar, por um lado, a necessidade do batismo para a salvação e, por outro, a misericórdia divina para com as crianças que morrem sem terem cometido qualquer pecado pessoal, desapareceu do debate teológico atual. Mas não completamente. Pelo menos nos Estados Unidos, de fato, o limbo ainda é um tema de interesse hoje em dia. A revista conservadora Laywitness (março/abril de 2002), um boletim da organização Católicos Unidos pela Fé, publicou uma reportagem de quatro páginas sobre o conceito de limbo, afirmando que "continua sendo uma opinião teológica respeitável que pode ser acolhida pelos fiéis".

O semanário jesuíta americano America (18 de março) discorda, declarando-o inapropriado. Outro semanário, Our Sunday Visitor (31 de março), lembra que a ideia de limbo nunca fez parte do ensinamento oficial da Igreja, nem mesmo do Catecismo da Igreja Católica. Ele menciona isso quando, no n.º 1261, afirma: "Quanto às crianças que morrem sem o Batismo, a Igreja não pode deixar de as confiar à misericórdia de Deus, como faz no seu rito fúnebre. De facto, a grande misericórdia de Deus [...] e a ternura de Jesus para com as crianças [...] permitem-nos esperar que haja um caminho de salvação para as crianças que morrem sem o Batismo. Por isso, é ainda mais premente o convite da Igreja para não impedir que as crianças cheguem a Cristo através do dom do santo Batismo."

Fonte: https://www.30giorni.it/

Os passos dos Papas na Turquia, terra dos Concílios onde cresce o diálogo pela unidade

Viagem apostólica de Paulo VI à Turquia em 1967 | Vatican News.

A primeira Viagem Apostólica do Papa Leão XIV, inicialmente à Turquia, de 27 a 30 de novembro, e depois ao Líbano, de 30 de novembro a 2 de dezembro, segue os passos dos seus predecessores. Paulo VI se dirigiu a esse país em 1967, João Paulo II em 1979, Bento XVI em 2006 e Francisco em 2014.

Amedeo Lomonaco – Cidade do Vaticano 

A visita à Turquia é uma viagem às fontes da fé, entre as raízes do cristianismo. Papa Leão XIV é o quinto Pontífice a ir para esse país. A primeira Viagem Apostólica do seu Pontificado, que compreende também o Líbano, inicia-se, de fato, na Turquia, de 27 a 30 de novembro, por ocasião do 1.700º aniversário do primeiro Concílio de Niceia que, 17 séculos depois, ainda permanece atual. 

O objetivo é o de promover a fraternidade e o diálogo entre o Oriente e Ocidente. O Pontífice realiza o desejo do Papa Francisco de celebrar o aniversário do histórico evento eclesial convocado pelo imperador romano Constantino em 325 d.C. 

Na Bula da proclamação do Jubileu, Spes non confundit, Francisco enfatiza que o Concílio de Niceia é “um marco na história da Igreja”, e representa também um convite “a todas as Igrejas e comunidades eclesiais a prosseguir no caminho até a unidade visível”. 

Em Niceia, foi definido o Credo, a profissão de fé cristã. Essa oração marca também um dos momentos centrais da Viagem Apostólica de Leão XIV: o encontro ecumênico nas proximidades das escavações arqueológicas da Basílica de São Neófito, na cidade de İznik, a antiga Niceia, a cerca de 100 quilômetros de Istambul. 

A Viagem Apostólica de Paulo VI em 1967

O primeiro a realizar uma Viagem Apostólica à Turquia foi o Papa Paulo VI. A visita histórica, em 25 e 26 de julho de 1967, tem lugar em uma terra que é uma ponte entre a Europa e a Ásia.

No período que precede a chegada do Papa Montini, a expectativa é palpável. Em Istambul, a antiga Constantinopla e grande metrópole do Oriente, onde foram escritas páginas ilustres da história do cristianismo, a comunidade local se prepara para o encontro com o bispo de Roma.

Apesar do impacto do terremoto que atingiu o país em 22 de julho daquele ano, as igrejas ficam repletas de fiéis. São dias em que os católicos e outros cristãos, que se encontraram na localidade de férias, retornam a Istambul, Éfeso e Smirne. Querem estar presentes, escreve o “L’Osservatore Romano”, na crônica que precede a chegada do Papa Montini na Turquia para o grande acontecimento. 

Um momento da jornada apostólica em 1967 | Vatican News.

 O abraço com o Patriarca Atenágoras

Uma das primeiras fotos após aterrissagem no aeroporto de Yeşilköy – renomeado em 1980, em homenagem ao primeiro presidente turco Mustafa Kemal Atatürk – é o abraço fraterno entre o Pontífice e o Patriarca ecumênico Atenágoras. Eles já haviam se encontrado, pela primeira vez, em Jerusalém, em 1964. 

São imagens indeléveis acompanhadas pelas palavras contidas na carta do Papa Montini, dirigidas ao “amadíssimo irmão” Atenágoras. Paulo VI, no documento, exprime “o ardente desejo de ver ser realizada a oração do Senhor. “Que eles sejam um como nós o somos”. “Esse desejo anima uma vontade resoluta de fazer tudo para aproximar o dia em que será restaurada a plena comunhão entre a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente”, escreve o Papa Montini. 

Na cerimônia de boas-vindas, Paulo VI, dirigindo-se ao então chefe de Estado Cevdet Sunay, ressalta ainda que a visita à Turquia pretende ser também “um testemunho da amizade e da estima que a Igreja Católica nutre pelo povo turco”. 

Compreender a profunda unidade

Um dos acontecimentos centrais tem como pano de fundo a Igreja patriarcal ortodoxa de São Jorge no Fanar. Ali, Paulo VI foi recebido pelo Patriarca Atenágoras. As suas palavras são uma exortação válida também hoje.

“À luz do nosso amor por Cristo e no nosso amor fraterno um pelo outro, estamos descobrindo cada vez mais a identidade profunda da nossa fé, enquanto os pontos sobre os quais ainda estamos em desacordo não devem nos impedir de compreender essa profunda unidade."

O Patriarca Atenágoras recorda ainda que o objetivo é “de unir o que está dividido, com mútuas ações eclesiásticas, em todo o lugar que seja possível, afirmando os pontos comuns de fé e de governo". 

A acolhida de Bento XV

Também no dia 25 de julho tem lugar outro evento muito aguardado. O cenário é a Catedral Católica do Espírito Santo, em Istambul. No pátio da igreja se vê uma estátua dedicada a um Papa e, sob o monumento, pode-se ler a escrita: “Ao grande Pontífice da hora trágica mundial, Bento XV, benfeitor dos povos sem distinções de nacionalidade e de religião, em sinal de reconhecimento, o Oriente (1914–1919)”.

O discurso do Papa Montini, dirigido a bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis se abre exatamente com esse destaque. “Não nos sentimos estrangeiros nesta Igreja, onde sentimos que seguimos os passos dos nossos predecessores. Não foi porventura Bento XV a nos acolher há pouco na entrada? Bento XV, cuja estátua se ergue para recordar às gerações sucessivas o grande coração deste magnânimo Pontífice, que sofreu profundamente a dor da primeira guerra mundial”, afirmou Paulo VI. 

Peregrinação no alvorecer do Ano da Fé 

Outro momento significativo da Viagem Apostólica de 1967 foi a Missa celebrada em 26 de julho, na Igreja de Santo Antônio, em Istambul. Na homilia, Paulo VI recorda a figura de outro Pontífice. Trata-se do Papa João XXIII, nomeado mais de 20 anos antes da eleição à Cátedra de Pedro como delegado apostólico na Turquia e na Grécia.

Os anos 1930 marcam um período em que a Igreja está presente de muitas formas na jovem república Turca, nascida em 1923. A missão do então dom Angelo Giuseppe Roncalli, na Turquia, é marcada pelo ministério aos católicos e pelo diálogo com os mundos ortodoxo e muçulmano. Paulo VI, na Igreja de Santo Antônio, recorda disso com estas palavras: esta Igreja “era a predileta do Papa João XXIII, quando aqui cumpria o serviço da Sé Apostólica, na qualidade de delegado apostólico”. “A sua memória - acrescentou na ocasião - é, também aqui, inapagável”. 

Paulo VI enfatiza, além disso, que a Viagem Apostólica à Turquia se realiza em 1967, “no alvorecer do Ano da Fé, na veneração de lugares que, com toda razão, devem ser considerados privilegiados, pelos monumentos de fé que preservam e pelo significado que revestem”. 

Uma viagem no coração do Papa

Depois da Missa na Igreja de Santo Antônio, o dia de 26 de julho prossegue com a despedida de Istambul e os encontros com os fiéis de Éfeso e de Esmirna, locais da Ásia Menor, onde estão gravadas “as grandes memórias cristãs”, como ressalta Paulo VI. Na cerimônia de despedida da Turquia, Papa Montini recorda alguns momentos da Viagem Apostólica e, em seguida, pronuncia estas palavras: “Levamos tudo isso no coração”.

Chega o momento de retomar o caminho de volta e, enquanto isso, em Roma, uma multidão imponente o espera sobre os terraços e pátios do Aeroporto de Fiumicino. Todos querem saudar o Papa.  

A Viagem Apostólica de João Paulo II em 1979

Seguindo os passos de Paulo VI, João Paulo II viaja para a Turquia em 1979. “Dirijo-me para esta Nação para continuar, com um renovado compromisso, o esforço em direção à unidade de todos os cristãos, com base em um dos objetivos proeminentes do Concílio Vaticano II”, afirma o Pontífice polonês na partida.

Papa Wojtyla começa a sua peregrinação ecumênica em Ancara. “É uma grande alegria para mim, sucessor de Pedro, dirigir-me hoje a vós, com as mesmas palavras que São Pedro dirigia 19 séculos atrás aos cristãos que se encontravam, então, como hoje, em pequena minoria nessas terras”, diz à comunidade católica daquela cidade. 

Os encontros com o Patriarca de Constantinopla Dimitrios e com o Patriarca armênio Shnorhk Kalustian precedem o abraço à comunidade armênio-católica de Istambul. A essa porção do povo de Deus indica uma missão especial: “Sois chamados, mais do que os outros, a serem os arquitetos da unidade”.  

Na terra dos Concílios

Os pontos essenciais da fé encontraram a formulação dogmática nos Concílios ecumênicos realizados em Istambul, ou nas cidades vizinhas, entre elas Niceia e Éfeso. É o que recorda Papa João Paulo II na homilia na Catedral do Espírito Santo. “Como não lembrar com emoção os padres da Igreja do Oriente, Pastores e Doutores, nascidos nesta região” e o seu “incomparável apostolado”, afirma o Pontífice.

No dia seguinte, 30 de novembro de 1979, João Paulo II se encontra, primeiramente, com a comunidade polonesa. Trata-se de uma colônia pouco numerosa. “Vós sois herdeiros daqueles poloneses que, mais de cem anos atrás, deram início a esse oásis polonês no Bósforo”, recordou o papa naquela ocasião. 

Giovanni Paolo II in Turchia nel 1979 | Vatican News.

Sob os olhos de Maria

Um dos últimos momentos da peregrinação apostólica de João Paulo II na Turquia é a Missa em Éfeso. Na homilia, o Pontífice confia à Mãe de Deus os destinos da Igreja. E recorda o caminho para a plena unidade de todos os cristãos. “Sob o seu olhar materno, estamos prontos a reconhecer as nossas culpas recíprocas, os nossos egoísmos e as nossas lentidões: Ela gerou um Filho único, nós infelizmente apresentamos-lho dividido”. “Confiamos a Maria a nossa resolução sincera de não aquietarmos enquanto não se chegar ao termo do caminho".

Apostolicidade e unidade

A viagem para a Turquia foi marcada por duas “notas” peculiares, recorda João Paulo II ao concluir a peregrinação, depois da aterrissagem no aeroporto de Fiumicino

Com o coração ainda invadido por intensas emoções e trazendo na alma imagens inesquecíveis de lugares tornados queridos por venerandas tradições, piso novamente o solo da Itália. Estou agradecido ao Senhor pela assistência que me concedeu também nesta peregrinação, realizada segundo duas peculiares "notas" da Igreja, a da apostolicidade e a da unidade.

A viagem de João Paulo II testemunha mais uma vez “a firme vontade” de um sucessor de Pedro “de seguir em frente na estrada que conduz à plena unidade de todos os cristãos”. 

Um momento da jornada apostólica de 1979 | Vatican News.

A Viagem Apostólica de Bento XVI em 2006

Em 2006, desloca-se para a Turquia Bento XVI que, no início de sua Viagem Apostólica, deseja, primeiramente, evocar a recordação das “memoráveis visitas” de Paulo VI e João Paulo II. “De igual modo, não posso deixar de mencionar também o Papa Bento XV, artífice infatigável da paz durante o primeiro conflito mundial, e do Beato João XXIII, o papa "amigo dos Turcos", que foi Delegado Apostólico na Turquia e Administrador Apostólico do Vicariato latino em Istambul", acrescenta, encontrando-se com o Corpo Diplomático em Ancara. 

Paz entre os povos

Em 29 de novembro de 2006, Bento XVI preside a Celebração Eucarística no Santuário mariano nacional de Meryem Ana Eví, em Éfeso, e invoca a paz para a Terra Santa e para o mundo inteiro. 

Daqui de Éfeso, cidade abençoada pela presença de Maria Santíssima sabemos que Ela é amada e venerada inclusive pelos muçulmanos elevemos ao Senhor uma especial oração pela paz entre os povos. Desta parte da Península anatólica, ponte natural entre continentes, invocamos a paz e a reconciliação sobretudo para aqueles que habitam na Terra que chamamos "santa", e que é assim considerada tanto pelos cristãos, como pelos judeus e pelos muçulmanos: é a terra de Abraão, de Isaac e de Jacob, destinada a acolher um povo que se tornasse uma bênção para todos os povos (cf. Gn 12, 1-3).

Bento XVI na Turquia em 2006 | Vatican News.

O encontro com o Patriarca Bartolomeu I

O dia 30 de novembro de 2006 é o dia da festa de Santo André Apóstolo e do encontro entre o Papa Bento XVI e o Patriarca ecumênico Bartolomeu I. “Demos graças ao Autor de todo o bem, que nos permite ainda uma vez, na oração e no intercâmbio, expressar a nossa alegria de sentirmo-nos irmãos e de renovar o nosso compromisso em vista da plena comunhão", lê-se na Declaração comum. Palavras que se entrelaçam com o abraço do Papa Paulo VI ao Patriarca de Atenágoras. Sucessivamente, na Igreja Patriarcal de São Jorge no Fanar, Bento XVI enfatiza que “as divisões existentes entre os cristãos são um escândalo para o mundo e um obstáculo para a proclamação do Evangelho”. 

Avançar no caminho em direção à unidade

A visita de oração ao patriarcado armênio apostólico e o encontro com o Patriarca Mesrob II precedem o momento de conclusão da viagem apostólica de Bento XVI à Turquia: a celebração eucarística na Catedral do Espírito Santo em Istambul.

Há vinte e seis anos, nesta mesma catedral, o meu predecessor o Servo de Deus João Paulo II desejava que o alvorecer do novo milénio pudesse "surgir sobre uma Igreja que reencontrou a sua plena unidade, para testemunhar melhor, entre as exacerbadas tensões do mundo, o amor transcendente de Deus, manifestado no Filho Jesus Cristo"

Esse desejo, enfatiza Bento XVI, ainda não se realizou. “Mas o desejo do Papa é sempre o mesmo e estimula-nos, a todos nós discípulos de Cristo que progredimos com lentidão e com as nossas pobrezas pelo caminho que conduz à unidade”. 

A Viagem Apostólica de Francisco em 2014

A Turquia é um cruzamento de encontro e diálogo. O Papa Francisco, durante a Viagem Apostólica à Turquia em 2014, louva o compromisso do País com os refugiados e destaca a vocação daquela nação de ponte entre os continentes e os povos.

“A Turquia, pela sua história, em virtude da sua posição geográfica e devido à importância de que se reveste na região, tem uma grande responsabilidade: as suas decisões e o seu exemplo possuem uma valência especial e podem ser de significativa ajuda no sentido de favorecer um encontro de civilização”, destacou o Papa durante o encontro com as autoridades. 

O Pontífice argentino comenta, sem seguida, que “a liberdade religiosa e a liberdade de expressão, eficazmente garantidas a todos, estimularão o florescimento da amizade, tornando-se um sinal eloquente de paz.”. 

Um momento da viagem apostólica de Francisco à Turquia em 2014 | Vatican News.

O Espírito Santo e a unidade da Igreja

Em 29 de novembro, a chegada de Papa Francisco a Istambul – com as visitas à mesquita Sultan Ahmet (a célebre Mesquista Blu), em Santa Sofia, e a saudação da comunidade católica no pequeno jardim da delegação apostólica – abre a parte ecumênica da viagem apostólica. Uma das imagens mais significativas é a de Francisco, com pés descalços e as mãos juntas, que pausa por longos instantes em adoração silenciosa ao lado do grande mufti na Mesquista. A  cena, então, muda para a Catedral Católica do Espírito Santo para a Missa. Na homilia, Francisco recorda o “princípio harmonizador” para cumprir a unidade entre os crentes. 

O Espírito Santo faz a unidade da Igreja: unidade na fé, unidade na caridade, unidade na coesão interior. A Igreja e as Igrejas são chamadas a deixarem-se guiar pelo Espírito Santo, colocando-se numa atitude de abertura, docilidade e obediência. É Ele que faz a harmonia na Igreja. Vem-me à mente uma afirmação muito bela de São Basílio Magno: «Ipse harmonia est – Ele próprio é a harmonia».

O dia 29 de novembro de 2014 conclui-se com a oração ecumênica na Igreja patriarcal de São Jorge. O Papa pede um favor ao Patriarca Bartolomeu I: “de abençoar a mim e à Igreja de Roma”. O 30 de novembro é o dia da assinatura da declaração conjunta. Papa Francisco e o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I exprimem  a sincera e firme intenção de intensificar os esforços “para a promoção da plena unidade entre todos os cristãos e, sobretudo, entre católicos e ortodoxos”. A última fotografia da viagem de Francisco à Turquia é o abraço com os jovens refugiados. Eles provêm da Turquia, da Síria, do Iraque e de vários países do Oriente Médio e da África. A difícil situação deles, enfatiza o Pontífice argentino, “é a triste consequência de conflitos exasperados e da guerra”. 

Os passos dos Papas e a Turquia

A Turquia está no coração dos Pontífices. Paulo VI viajou para esse país pouco mais de quatro anos depois da eleição ao trono de Pedro. João Paulo II visitou a Turquia um ano depois de ter sido eleito Pontífice. Também para Bento XVI e Francisco, a viagem apostólica à Turquia não foi distante da data de suas eleições. Olhando para a história, parece que os Papas, depois da eleição, querem logo abraçar e beijar essa terra. 

Agora, o povo turco aguarda Leão XIV. A primeira viagem apostólica de seu Pontificado começa nesta região do mundo, onde páginas indeléveis do cristianismo iluminam caminhos já traçados e ainda a completar. Os de Leão XIV são novos passos para acrescentar no espírito do Concílio de Niceia. Passos para cumprir com o irmão Bartolomeu I nos passos de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI, Francisco e também Bento XV e João XXIII.  

Os Papas abraçam a Turquia, terra ligada, de maneira indissolúvel, às origens e à história da Igreja. Os passos dos Pontífices se adicionam aos do apóstolo do povo, São Paulo, que era um judeu de Tarso, na atual Turquia.

Leão XIV, nesta terra dos Concílios, que teve um papel primário nos alvores do cristianismo, renova a missão de Pedro, na reta final do Ano Santo da esperança, rumo à Luz de Natal. 

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A Igreja Católica se torna a segunda religião que celebra o maior número de casamentos no Reino Unido

Apenas 23.004 Casais Optaram Por Se Casar Na Igreja Da Inglaterra Ou Na Igreja Do País De Gales (Anglicanos) No Ano Passado (ZENIT)

A Igreja Católica se torna a segunda religião que celebra o maior número de casamentos no Reino Unido

Os casamentos religiosos representaram apenas 32.473 cerimônias, e as igrejas anglicanas sediaram aproximadamente 70% delas.

25 DE NOVEMBRO DE 2025, 21H03, ELIZABETH OWENS

(ZENIT News / Londres, 25 de novembro de 2025) – O som dos sinos de casamento, um elemento essencial e tradicional da vida paroquial inglesa, está se tornando cada vez mais raro. Novos dados do Escritório Nacional de Estatísticas revelam que 2023 marcou um recorde negativo para casamentos religiosos na Inglaterra e no País de Gales, dando continuidade a uma tendência de queda que já existia antes da pandemia, mas que agora atingiu um ponto de inflexão inegável.

Segundo dados divulgados em 18 de novembro, apenas 23.004 casais optaram por se casar na Igreja da Inglaterra ou na Igreja do País de Gales (anglicanos) no ano passado. O país não registrava números tão baixos desde a década de 1830, com exceção do ano atípico de 2020, quando os lockdowns tornaram as igrejas praticamente inacessíveis. Embora a vida tenha voltado ao normal, o interesse por cerimônias religiosas não se recuperou.

Os casamentos civis dominam o cenário matrimonial atual. Dos 216.901 casamentos heterossexuais registrados em 2023 — uma queda significativa em relação aos 239.097 celebrados no ano anterior — mais de 184.000 ocorreram em cartórios ou locais seculares. Os casamentos religiosos representaram apenas 32.473 cerimônias, sendo que as igrejas anglicanas foram responsáveis ​​por aproximadamente 70% delas.

O ranking da participação religiosa também apresenta um panorama revelador. Depois da Comunhão Anglicana, a Igreja Católica Romana foi a mais ativa, celebrando 3.303 casamentos. Outras denominações cristãs contribuíram com mais 3.629 cerimônias, enquanto comunidades religiosas não cristãs celebraram 2.537 casamentos. Apesar da diversidade do cenário religioso do país, os números gerais revelam um claro declínio nos ritos matrimoniais religiosos.

Os casais do mesmo sexo, que formalizaram 7.501 casamentos no ano passado, realizaram apenas 96 cerimônias religiosas. Nem a Igreja da Inglaterra nem a Igreja do País de Gales (Anglicana) permitem atualmente tais uniões, embora as congregações Metodistas Unidas e Reformadas o façam, uma adaptação que atraiu alguns casais que buscam tanto o sacramento quanto o reconhecimento legal.

Por trás das estatísticas, esconde-se uma história mais profunda de mudança cultural. Os casamentos na igreja, antes enraizados na tradição local e nas expectativas familiares, agora enfrentam a concorrência de espaços personalizados, eventos em destinos turísticos e uma mentalidade cada vez mais secular. Mas o clero não está disposto a ceder. Em entrevista ao Daily Telegraph, o bispo anglicano de Manchester, David Walker, pediu aos casais que não presumam que as portas da igreja estejam fechadas para eles. Sua mensagem foi direta: os casais não precisam ser frequentadores assíduos da igreja, nem mesmo batizados, para se casarem em uma paróquia anglicana. Nem devem hesitar se já tiverem filhos.

Essas garantias refletem a silenciosa urgência sentida por muitos membros do clero diante do declínio da frequência à igreja, não apenas em casamentos, mas em todo o espectro dos sacramentos. Os casamentos, no entanto, carregam um peso simbólico: são momentos em que pessoas que se afastaram da prática religiosa por muito tempo se reconectam, ainda que brevemente, com a vida espiritual e comunitária de sua paróquia local.

Os números historicamente baixos sugerem que esse contato ocasional está diminuindo. Para alguns, isso indica uma perda de tradição; para outros, simplesmente uma evolução da preferência social. Contudo, dentro da Igreja da Inglaterra, permanece uma esperança, por mais modesta que seja, de que, ao demonstrar hospitalidade e flexibilizar preconceitos, o antigo costume de casar-se diante do altar possa encontrar uma relevância renovada em uma sociedade em rápida transformação.

Fonte: https://es.zenit.org/2025/11/25/la-iglesia-catolica-se-convierte-en-la-segunda-religion-que-mas-matrimonios-celebra-en-reno-unido/

De coração a coração: Evangelizar numa época de mudanças (2) (Parte 2/2)

Combate, proximidade e missão (Opus Dei)

De coração a coração: Evangelizar numa época de mudanças (2)

Esta é a missão que o Senhor nos confia: levar aos outros o contato com alguém vivo, deixar entrever, em nossa vida concreta, que Cristo é real, que ele pode realmente estar presente em nossa história, em nossas relações e em nossas fraquezas.

21/11/2025

De coração a coração

São Josemaria considerava a amizade o caminho principal da vida do apóstolo e percebia a força das relações interpessoais. O apostolado de “amizade e confidência”[12] implica querer o bem do outro, querer o bem que é o outro, construir relações autênticas e falar com o coração. “Quando te falo de ‘apostolado de amizade’, refiro-me à amizade ‘pessoal’, sacrificada, sincera; de tu a tu, de coração a coração”[13].

Em 2019, o Padre escreveu uma carta mais extensa para lembrar que a amizade não é apenas uma parte do apostolado de um cristão comum, mas está no núcleo de sua missão. A amizade não é algo que se pratica, mas algo que se é: sou amigo, sou uma mão aberta, um rosto que busca o encontro em tudo. “Quando uma amizade é assim, leal e sincera, ela não pode ser instrumentalizada: simplesmente um amigo deseja transmitir ao outro o bem que experimenta em sua vida. Normalmente faremos isso sem perceber, por meio do exemplo, da alegria e de um desejo de servir que se expressam em mil pequenos gestos. No entanto, ‘o valor do testemunho não significa que se deve manter em silêncio a palavra. Por que é que não havemos de falar de Jesus, contar aos outros que Ele nos dá a força de viver, que é bom conversar com Ele, que nos faz bem meditar as suas palavras?’ A amizade desemboca assim, naturalmente, na confidência pessoal, cheia de delicadeza e respeito à liberdade”[14].

Este estilo apostólico não faz barulho; costuma passar despercebido nos jornais, nos congressos e nos planos pastorais. Sua discrição não nasce de uma tendência ao secretismo, mas de uma realidade mais profunda: o fato inevitável de que uma parte essencial da verdadeira história se forja na vida diária. Uma grande escritora do século XIX intuiu isso: “o bem crescente do mundo depende em parte de atos não históricos; e que as coisas não estão tão ruins para você e eu como deveriam estar, é em parte devido ao número que viveu fielmente uma vida oculta, e descansou em tumbas não visitadas”[15].

Este estilo apostólico, do qual a Igreja necessita cada vez mais, transforma o mundo de dentro para fora. Ele vai devagar, é verdade, mas chega mais fundo. Ele toca o coração. E o coração tocado pela graça pode se desorientar, pode se desviar, mas fica marcado profundamente. É assim que os verdadeiros cristãos normalmente fazem: transmitem de coração a coração. Cor ad cor loquitur, o coração fala ao coração, como dizia o lema cardinalício de São John Henry Newman. Assim nasceu a Igreja, com poucos homens e mulheres transformados pelo encontro com Jesus. Assim renasce tantas vezes hoje também, por meio de conversas simples entre amigos, palavras sinceras e gestos autênticos, que indicam uma Presença viva.

Este lento, mas poderoso fluir da vida de uma pessoa para a outra deve adaptar seu curso a cada circunstância. Como em cada época ao longo da história, temos a apaixonante tarefa de procurar o modo de “transmitir, de acordo com os tempos – adaptando-se à linguagem dos homens, compreendendo sua mentalidade – a mensagem cristã a todas as almas”[16]. Quase sempre se tratará de uma transmissão pessoal, sem a necessidade de grandes ações ou manifestações. “Acredita em mim: o apostolado, a catequese, de ordinário, tem de ser capilar: um a um. Cada homem de fé com seu companheiro mais próximo. Aos que somos filhos de Deus, importam-nos todas as almas, porque nos importa cada alma”[17].

Os primeiros cristãos “não tinham, em virtude de sua vocação sobrenatural, programas sociais nem humanos a realizar; estavam, porém, penetrados por um espírito, por uma concepção da vida e do mundo, que não podia deixar de ter consequências na sociedade em que viviam”[18]. No fundo, esta é a missão que o Senhor nos confia: ser testemunhas, não apenas mestres. Mais do que transmitir uma série de ensinamentos e princípios morais, devemos proporcionar aos outros o contato com alguém vivo. Deixar entrever, em nossa vida concreta, que Cristo é real. Que Ele pode realmente estar presente em nossa história, em nossas relações e em nossas fraquezas. É esse contato com Cristo vivo, com Cristo ressuscitado que levará uns e outros a perguntar, como na manhã de Pentecostes: “O que devemos fazer” (At 2, 37), o que devo que mudar em minha vida? Onde posso conhecer mais sobre Deus? Como posso conhecê-lo melhor? Então será o momento de falar, de ensinar, de orientar.

São John Henry Newman, recém declarado doutor da Igreja por Leão XIV, dirigia-se assim ao Senhor: “Fica comigo, e começarei a resplandecer como Tu, a brilhar tanto, que possa ser luz para os outros. A luz, Jesus, virá toda de Ti, nada dela será minha; serás Tu quem resplandecerá sobre os outros através de mim. Brilhando sobre os que me rodeiam, permite-me louvar-te como te agrada. Permite-me pregar-te sem pregar, não com palavras, mas por meio do meu exemplo, da força de atração, da influência harmônica de tudo o que eu fizer da inefável plenitude do amor que existe por Ti em meu coração”[19].

É chamativo que quem escreveu e pregou tanto sobre a fé rezasse dessa forma. Assim, fica claro que não se trata de ficar em silêncio: Deus quer que estejamos preparados para dar a razão de nossa esperança (cfr. 1 Pd 3, 15); nossas palavras e nossas obras só serão eficazes se nosso coração estiver cheio do fogo de Cristo (cfr. Lc 24, 32). Quem for apóstolo deste modo talvez não veja os frutos imediatamente, ou não os veja de forma espetacular. Mas Santa Maria e São João ao pé da cruz tampouco os viram, nem São Paulo no cárcere, assim como muitos cristãos ao longo da história. E, no entanto, transformaram o mundo. Porque a Igreja não renasce por meio de movimentos de massa, mas pela ação silenciosa e paciente do fermento, pela transmissão da vida que temos dentro de nós. Essa é a grande responsabilidade que Deus coloca em nossas mãos. A Igreja, e esta parte da Igreja que é a Obra, somos cada um de nós. Por isso, São Josemaria perguntava aos primeiros: “Se eu morrer, você continuará com a Obra?”[20].


[12] São Josemaria costumava referir-se assim ao apostolado neste contexto de amizade que proporciona a abertura mútua do coração. Cfr. L. Flamarique, Amizade, em Diccionario de San Josemaria Escrivá de Balaguer, Monte Carmelo, Burgos 2013.

[13] São Josemaria, Sulco, n. 191

[14] F. Ocáriz, Carta pastoral, 1/11/2019, n. 18. Cfr. Francisco, Christus vivit, n. 176.

[15] Eliot, George. Middlemarch: Um Estudo da Vida Provinciana (p. 705). Edição do Kindle.

[16] São Josemaria, Carta 6, n. 30.

[17] São Josemaria, Sulco, n. 943

[18] São Josemaria, Carta 29, n. 22.

[19] São John Henry Newman, Meditations and Devotions, Longmans Green & Co, Nova York – Londres 1907, p. 365.

[20] S. Bernal, Salvador Bernal, Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, p. 414.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/de-coracao-a-coracao-evangelizar-numa-epoca-de-mudancas-ii/

Os Padres do Deserto e a Eucaristia como remédio contra os demônios

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Aleteia Espanha - publicado em 26/11/25

O que os Padres do Deserto nos dizem para guiar nossa vida espiritual em circunstâncias muito específicas? Ninguém escapa da luta contra os demônios.

Menem, o Grande, cujo nome significa pastor em grego, foi um Pai do Deserto dos séculos IV e V. Ele é o Abba (Pai) mais frequentemente citado nos Apotegmas do deserto e cita fortemente a importância da Eucaristia. Pais do Deserto em um de seus aforismos, ele evoca o "veneno dos anjos malignos" que afeta os monges:

“Está escrito: ‘Como a corça anseia pelas águas correntes, assim a minha alma anseia por ti, ó Deus meu’ (Salmo 42,1). Na solidão, os cervos comem muitas serpentes, e como o veneno os queima, eles correm para a fonte; a queimação do veneno se acalma quando bebem. O mesmo acontece com os monges que vivem no deserto. O veneno dos anjos maus os queima: portanto, aos sábados e domingos, eles anseiam se aproximar das fontes que são o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e serem purificados de toda a amargura dos anjos maus” (Poemen, 30).

A onipresença dos anjos malignos

O comentário feito pelo Abade Poemen (ou Pastor, é o mesmo nome) sobre o primeiro versículo do Salmo 41 (42) é muito bonito: aqueles cervos sedentos são nossos modelos, eles têm sede da Água Viva que flui do lado de Cristo.

Mas a aplicação proposta pelo grande ancião nos surpreende: os monges que vivem no deserto enfrentam constantemente anjos malignos e acabam absorvendo veneno, por isso têm sede e anseiam encontrar na Eucaristia dominical a purificação que os libertará da amargura contraída pelo contato com os demônios.

O que podemos dizer, nós que vivemos no mundo e temos que lidar constantemente com o Inimigo? É difícil para nós acreditarmos que almas totalmente devotadas a Deus estejam tão expostas à pressão dos anjos malignos.

No entanto, Santo Agatão, outro Padre do Deserto, nos adverte: "Não há nada mais difícil do que a oração, porque os demônios não poupam esforços para interromper esse poderoso meio de nos desarmar."

O remédio da Eucaristia

A primeira conclusão a que se chega com o conselho de Poemen é que a luta está em toda parte. Se a vida monástica não é fácil, nenhuma vocação cristã está isenta dela. Ninguém entra para um convento em busca de segurança, assim como a vida matrimonial não é garantia de equilíbrio e virtude tranquila.

A segunda lição é esta: para todos, a Eucaristia é o remédio: ela nos mantém preparados para a luta, sendo ao mesmo tempo a doce consolação dos nossos esforços para seguir a Cristo.

Fonte: https://pt.aleteia.org/2025/11/26/os-padres-do-deserto-e-a-eucaristia-como-remedio-contra-os-demonios/

Em Porto Alegre, depois de 87 anos, o Seminário São José não tem mais seminaristas

Seminário São José em Gravataí (RS) | Marcos Koboldt/ACI Digital

Por Marcos Koboldt

19 de nov de 2025 às 12:52

A falta de vocações levou a arquidiocese de Porto Alegre à decisão de fechar o Seminário São José. Inaugurado em 1938, o seminário serviu de residência e escola para muitos padres e bispos quando estavam em seu processo de formação, especialmente no ensino médio e a etapa do propedêutico. No início deste semestre, os últimos residentes - cinco seminaristas da etapa do propedêutico, ano inicial de transição para o seminário maior - foram transferidos para Porto Alegre.

Segundo o bispo-auxiliar da Arquidiocese de Porto Alegre dom Juarez Albino Destro, a decisão foi tomada para oferecer aos jovens um local mais apropriado. “A ala onde funcionava, de fato, o seminário deve ser reformada”, explica Dom Juarez.

O Seminário São José dividia o espaço com a Casa de Retiros, local destinado para receber encontros, palestras, retiros e eventos. “Na época em que se reformou o prédio para ser casa de encontros, retiros, eventos, deixou-se a ala de habitação dos seminaristas para ser reformada com as entradas provenientes da casa de encontros - valores com a locação seriam revertidos para a reforma daquela ala. Desta forma, o plano é reformar a ala do seminário que ainda não foi reformada, completando-se a inteira e possibilitando novamente ser habitada. O que falta definir é o futuro do prédio, podendo continuar inteiramente dedicado a receber retiros e eventos ou se irá reservar um espaço para os seminaristas”, completa o bispo auxiliar de Porto Alegre.

Tristeza com a saída do seminário e menos vocacionados

 A decisão de transferir os últimos seminaristas de Gravataí para Porto Alegre provocou tristeza em ex-alunos que passaram pelo local. É o caso do jornalista Rodrigo Jankosi, 40 anos, que fez a etapa do Propedêutico no ano de 2009.

“Fui forjado nas Pastorais Sociais da Igreja Católica. Foi ali que despertou em mim o interesse pela vida religiosa. O processo de discernimento vocacional durou cerca de cinco anos, até que cheguei ao Seminário São José, em Gravataí, para cursar o propedêutico. Ali se abria uma nova janela de conhecimentos e vivências que levo comigo para toda a vida. Ao saber da saída dos últimos seminaristas das dependências do seminário, um sentimento estranho me tomou. Penso que as novas gerações de vocacionados talvez não tenham a oportunidade de viver as experiências que aquele espaço mágico nos proporcionava. Rezo para que a Arquidiocese não se renda, mais uma vez, à especulação imobiliária e não permita que aquele lugar sagrado seja entregue às incorporadoras”, declarou Jankosi.

Também ex-aluno do Propedêutico no Seminário São José, o professor e músico João Fernando Schafer de Brum, 40 anos, ingressou no ano de 2005 quando estava no primeiro ano do Ensino Médio e fez o propedêutico três anos depois. Em sua avaliação não há sentido em manter um grupo pequeno de seminaristas em um local tão grande como o Seminário. “Quando fiz o Ensino Médio, moravam na casa mais de 50 seminaristas das duas etapas. Alguns anos depois retornei para ministrar aulas de música e o número já era bem menor. Se couber uma crítica penso que o trabalho de animação vocacional caiu demais. Entendo que com a internet as coisas se complicaram, mas há pouco empenho em buscar novas vocações. Muitas vezes podemos perder bons candidatos pois eles não sabem como é a rotina do Seminário”, ponderou Schaefer.

Seminário são José e a cidade de Gravataí

A história do Seminário são José é uma parte essencial da identidade histórica e cultural da cidade de Gravataí. A ideia de sua fundação surgiu no contexto de expansão da vida religiosa no Rio Grande do Sul durante a década de 1930. As obras tiveram início em 1936, com ampla mobilização da comunidade católica local, e seguiram em ritmo constante até março de 1938, quando o seminário foi solenemente inaugurado. A data escolhida, 19 de março de 1938, coincidia com a festa litúrgica de São José e com o jubileu de 25 anos de episcopado de dom João Becker, arcebispo de Porto Alegre entre os anos de 1912 e 1946.

Até o ano de 1950, a administração e a formação dos seminaristas estavam sob a responsabilidade da Companhia de Jesus. Após o encerramento do contrato com os Jesuítas, a arquidiocese de Porto Alegre assumiu diretamente a condução da instituição, dando continuidade à formação de seminaristas do clero secular.  Nesta época, o Seminário São José ocupava uma área de 300 hectares - hoje o total é de aproximadamente 10 hectares.

Em 1967, acompanhando as transformações pedagógicas e eclesiais do período pós-Concílio Vaticano II, o seminário passou a se chamar Escola Vocacional São José, incorporando também leigos e religiosos ao corpo docente. A nomenclatura e o currículo foram adaptados ao ensino de primeiro e segundo grau. O funcionamento da instituição era sustentado por diferentes fontes: a produção agrícola da granja do Seminário, as contribuições dos pais dos alunos e o apoio constante da Mitra Arquidiocesana, além da generosidade de benfeitores conscientes da importância das vocações religiosas.

 Nesse mesmo período, parte das turmas foi transferida para o Seminário São João Vianney, na cidade de Bom Princípio, distante 60 quilômetros da capital Porto Alegre, e criou-se o Curso de Aperfeiçoamento, voltado a preparar melhor os seminaristas para os estudos superiores de Filosofia e Teologia.

Segundo registros históricos, até 1985 passaram pelo Seminário 2.936 alunos, dos quais 285 foram ordenados padres e vários tornaram-se bispos. Em 1986, por exemplo, o Seminário de Gravataí contava com 41 alunos na 7ª série, 19 na 8ª série e 22 no curso de aperfeiçoamento.

O administrador Pedro Stein, 48 anos, passou pelo Seminário São José neste período. Aos 12 anos, em 1989, ingressou para estudar na sétima série. Ele conta que o testemunho de seu pároco foi decisivo para dar uma resposta ao que Deus inspirava em seu coração.

“O tempo que passei no Seminário São José de Gravataí foi muito importante para a minha fé. Lá eu aprendi a rezar melhor, a conhecer mais sobre Jesus e a viver com outras pessoas que também queriam seguir a Deus. Tudo o que vivi lá me ajudou a ser uma pessoa melhor e mais próxima de Jesus, e eu vou guardar pra sempre tudo o que aprendi nesse tempo tão especial”.

Morador de Gravataí, o professor de história e pesquisador Amon da Costa recorda que o trabalho formativo realizado no interior dos muros do Seminário São José trouxe benefícios para toda a cidade. “Mais do que um centro de formação sacerdotal, o Seminário São José consolidou-se como espaço de educação, cultura e espiritualidade que marcou profundamente a história social e religiosa de Gravataí. Seus muros testemunharam não apenas a formação de padres e bispos, mas também de líderes comunitários, professores, missionários e cidadãos comprometidos com o bem comum e com a fé cristã”.

*Jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no ano de 2004. Entre 2004 e 2014 trabalhou como repórter em diferentes empresas de comunicação de Porto Alegre. Entre os anos de 2022 e 2024 foi Assessor de Comunicação da Arquidiocese de Porto Alegre.

https://www.acidigital.com/noticia/65549/em-porto-alegre-depois-de-87-anos-o-seminario-sao-jose-nao-tem-mais-seminaristas

Catequese do Papa: recuperar a confiança na vida para gerar vida

Audiência Geral, 26/11/2025 - Papa Leão XIV (Vatican News)

Na Audiência Geral desta quarta-feira, 26/11, Leão XIV convidou os fiéis a redescobrirem a esperança que nasce da Ressurreição e a renovarem a coragem de viver e de gerar vida em um mundo marcado pela desconfiança e pelo medo.

Thulio Fonseca – Vatican News

A Praça São Pedro acolheu milhares de peregrinos na manhã desta quarta-feira, 26 de novembro, para a Audiência Geral com o Papa Leão XIV. Dando continuidade ao ciclo de catequeses sobre o tema do Jubileu 2025 – “Jesus Cristo, nossa esperança”, o Pontífice refletiu hoje sobre a força iluminadora da Ressurreição diante dos desafios atuais, propondo como tema: “Esperar na vida para gerar vida”.

Logo no início, o Papa recordou que a Páscoa de Cristo “ilumina o mistério da vida” e permite contemplá-la com esperança, mesmo quando esta parece árdua ou marcada por sofrimento. A existência humana – afirmou – é recebida como dom: não a escolhemos, mas somos chamados a acolhê-la, nutrindo-a continuamente com cuidado, proteção e vitalidade.

Esse dom suscita, desde sempre, as grandes perguntas do coração humano: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido desta viagem? Perguntas que revelam que viver “evoca um significado, uma direção, uma esperança”.

Um mundo adoecido pela falta de confiança

O Pontífice diagnosticou uma das grandes feridas do nosso tempo: a falta de confiança na vida. Muitos, observou, já não a percebem como possibilidade e dom, mas como ameaça, algo a ser temido para não se frustrar. Diante dessa postura, o convite de Leão XIV foi claro: recuperar a coragem de viver e de gerar vida, testemunhando que Deus é “Aquele que ama a vida”, como proclama o Livro da Sabedoria:

“Sem esperança, a vida corre o risco de parecer um parêntese entre duas noites eternas, uma breve pausa entre o antes e o depois da nossa passagem pela Terra. Esperar pela vida, pelo contrário, significa antecipar o destino, acreditar com certeza naquilo que ainda não podemos ver ou tocar, confiar e entregarmo-nos ao amor de um Pai que nos criou porque nos amou e quer que sejamos felizes.”

Gerar vida, explicou o Papa, é participar da lei estrutural da criação, que culmina no dom recíproco entre homem e mulher. Mas também significa promover o ser humano em todas as dimensões: apoiar a maternidade e a paternidade, fortalecer economias solidárias, cuidar da criação, praticar a escuta e oferecer presença e auxílio concreto.

Papa Leão XIV durante a Audiência Geral   (@Vatican Media)

Entre Caim e Abel: a liberdade ferida

A catequese recordou ainda que a liberdade humana torna a vida um drama, como narra a história de Caim e Abel. A rivalidade, a inveja e a violência continuam a marcar a nossa história.

“Mas a lógica de Deus é outra”, sublinhou o Santo Padre. Deus permanece fiel ao seu desígnio de amor e continua a sustentar a humanidade, “mesmo quando, seguindo os passos de Caim, ela obedece ao instinto cego da violência nas guerras, nas discriminações, nos racismos, nas múltiplas formas de escravidão, quando ela se desvia pelo caminho da violência”.

A esperança que sustenta mesmo em meio às trevas

Leão XIV concluiu lembrando que a Ressurreição de Cristo é a força que sustenta o discípulo, especialmente quando as trevas do mal obscurecem o coração e a mente:

“Quando a vida parece ter-se extinguido, bloqueada, eis que o Senhor Ressuscitado passa novamente e caminha conosco e por nós. Ele é a nossa esperança.”

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

terça-feira, 25 de novembro de 2025

De coração a coração: Evangelizar numa época de mudanças (2) (Parte 1/2)

Combate, proximidade e missão (Opus Dei)

De coração a coração: Evangelizar numa época de mudanças (2)

Esta é a missão que o Senhor nos confia: levar aos outros o contato com alguém vivo, deixar entrever, em nossa vida concreta, que Cristo é real, que ele pode realmente estar presente em nossa história, em nossas relações e em nossas fraquezas.

21/11/2025

Trata-se de uma das parábolas mais breves de Jesus e que tem todo o sabor de sua infância. “O Reino dos Céus é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado” (Mt 13, 33). Na Nazaré do século I, não havia padarias; as donas de casa cuidavam de todo o processo de elaboração do pão: moer o grão, amassar a farinha, misturá-la com o fermento e, por fim, assar a massa no forno. Santa Maria fazia assim, enquanto os olhos do Menino Jesus não perdiam nenhum detalhe[1].

Vinte séculos depois, na outra margem do Mediterrâneo, um menino da mesma idade assistia, durante as férias de verão, com prazer a esse ritual: “Eu gostava, nas minhas temporadas de verão, quando menino, de ver o pão sendo feito. Naquela época, não pretendia tirar consequências sobrenaturais: interessava-me porque as empregadas me traziam um galo, feito com aquela massa. Agora me lembro com alegria de toda a cerimônia: era um verdadeiro ritual preparar bem o fermento — uma pelota de massa fermentada, proveniente da fornada anterior —, que se juntava à água e à farinha peneirada. Feita a mistura e amassada, cobriam-na com uma manta e, assim protegida, deixavam-na repousar até inchar a mais não poder. Depois, posta em pedaços no forno, saía aquele pão bom, vistoso, maravilhoso. Porque o fermento estava bem conservado e preparado, deixava-se desfazer — desaparecer — no meio daquela quantidade, daquela multidão, que a ele devia a qualidade e a importância”[2].

Como o fermento

O Reino de Deus é como o fermento. Para transformar a massa não é necessário muito fermento: basta que ele esteja realmente vivo e bem misturado, a ponto de não se poder distingui-lo do resto da massa[3]. Então, produz-se esse processo discreto, aparentemente inócuo, mas incomparável: a fermentação, que permite produzir o pão. “Que nosso coração se encha de alegria pensando em ser isso: levedo que faz fermentar a massa (...); chegar a todos os corações, realizando em todos o grande trabalho de transformá-los em pão bom, que seja a paz – a alegria e a paz – de todas as famílias, de todos os povos: iustitia, et pax, et gaudium in Spiritu Sancto; justiça, paz e gozo no Espírito Santo”[4].

Com o tempo, São Josemaria se referiria com muita frequência a essa parábola do Senhor[5], pois enxergava nela uma imagem muito eloquente para descrever o dinamismo apostólico do Opus Dei: cristãos perfeitamente integrados à sociedade, chamados a vivificá-la a partir de dentro, como fermento[6]. Nesse sentido, embora o mundo secularizado possa ser visto às vezes como um ambiente hostil, ele é, na verdade, o meio natural para o carisma do Opus Dei. E vice-versa: a Obra, como um elemento da família da Igreja, responde especificamente à necessidade de encarnar a mensagem cristã em todas as esferas da vida de um mundo secularizado.

São Josemaria compreendeu desde bem cedo que a Obra não veio resolver um problema circunstancial da sociedade ou da Igreja[7], pois o mundo sempre precisará do estímulo divino que o renove em suas próprias profundezas. Ao mesmo tempo, esse dom do Espírito Santo à Igreja não é casual, mas acontece em um momento de transição de uma “sociedade cristã” para um mundo de “missão” apostólica. Em uma época na qual o cristianismo já não está no centro da vida cultural e institucional, a voz mais clara e de maior credibilidade que podemos oferecer é a de nossa vida concreta, vivida com Cristo e junto aos outros. É o momento de conversas autênticas, de rostos próximos, de corações que se abrem. É o momento de um apostolado que exige a presença de Jesus por meio de seus discípulos em todos os cantos do mundo.

Testemunhas antes que mestres

O homem contemporâneo, como escreveu São Paulo VI, “O homem contemporâneo escuta de melhor boa vontade as testemunhas dos que os mestres, e se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas”[8]. Este é um apostolado que parte, mais do que percebemos, do que vivemos. Aqui, mais do que respostas ou argumentos brilhantes, o decisivo é uma vida com Cristo e a simplicidade de deixá-la transparecer. São Josemaria sugeria isso certa vez: “Na verdade, basta que os deixeis conversar com vocês”[9]; basta levar o fogo de Cristo no coração e caminhar junto com os outros – é esse o sentido original de conversar – pelo caminho da vida.

Há uma fome oculta no coração de muitas pessoas. Uma necessidade de sentido, de beleza, de verdade que muitas vezes não se expressa com palavras religiosas, mas que se faz sentir no cansaço diário, nas dúvidas, nas ansiedades e nas fragilidades. É precisamente aí que podemos entrar com delicadeza, não como mestres, mas como companheiros de jornada. Com humildade, que é “andar na verdade”[10], contaremos a eles o que nos sustenta, o que nos dá paz, onde encontramos força, o que nos faz ter esperança. Compartilharemos nossa vida interior, nossa busca e nossa relação de amizade íntima com o Senhor, mostrando também — e talvez principalmente — nossa vulnerabilidade, pois é nela que melhor se vê a graça.

“Se procedermos assim, daremos aos que nos rodeiam o testemunho de uma vida simples e normal, com as limitações e defeitos próprios da nossa condição humana, mas coerente. E ao perceberem que somos iguais a eles em todas as coisas, os outros sentir-se-ão impelidos a perguntar-nos: Como se explica a vossa alegria? Donde vos vêm as forças para vencer o egoísmo e o comodismo? É então o momento de lhes descobrir o segredo divino da existência cristã, de lhes falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, de Maria; o momento de procurar transmitir, através das nossas pobres palavras, a loucura do amor de Deus que a graça derramou em nossos corações”[11].


[1] Cfr. F. M. William, Vida de Maria, a Mãe de Jesus, Herder, Barcelona 1982, p. 151.

[2] São Josemaria, Carta 1, n. 5

[3] “Para ser levedo, é necessária uma condição: que passeis despercebidos. O levedo não surte efeito se não penetra na massa, se não se confunde com ela” (Carta 1, n. 5). “Uma única coisa deve distinguir-nos: não nos distinguimos. ´Por isso, para algumas pessoas que gostam de chamar a atenção ou de fazer palhaçadas, somos esquisitos, porque não somos esquisitos” (Ibid., n. 8).

[4] Ibid., n. 5.

[5] Cfr.por exemplo, Amigos de Deus, n. 257; Carta 29, nn. 7-8; Forja, n. 973.

[6] Cfr. São Josemaria, Em diálogo com o Senhor, n. 12.

[7] Cfr. São Josemaria, Instrucción, 19/03/1934, nn. 6, 8, 14.

[8] São Paulo VI, Discurso aos membros do "Consilium de Laicis", 2 de outubro de 1974: texto original em francês, em: AAS 66 (1974), pp. 567-570.

[9] São Josemaria, palavras de uma tertúlia por volta de 1958, anotadas em P. Rodríguez:“Omnia traham ad meipsum”. O sentido de João 12, 32 na experiência espiritual de Mons. EscriváRomana 13 (1991/2) p. 349.

[10] Santa Teresa de Jesus, Castelo interior ou moradas 6, 10.

[11] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 148

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/de-coracao-a-coracao-evangelizar-numa-epoca-de-mudancas-ii/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF